• Nenhum resultado encontrado

ENTRE A IMPORTÂNCIA E A PERSONIFICAÇÃO DA POLÍTICA

3.1 A PERSONIFICAÇÃO DA POLÍTICA PÚBLICA: UM ESTUDO A PARTIR DO PNAE DE SANTIAGO

3.1.2 Concertação social

A construção dos programas de alimentação escolar em um ambiente de cooperação institucional, onde os esforços e recursos de vários setores, atores e instituições convergem

para um objetivo comum, seria o ideal. A criação de sinergias entre as diversas instituições leva a uma ação qualificada e com maior potencial de alcance. No nível de município, o PNAE dialoga com vários agentes públicos e privados, o que exige uma atuação conjunta e sinérgica na implementação do programa, chamada de concertação social.

Utilizo a noção concertação social e, por vezes, apenas concertação, em vários momentos da tese. Esse termo ajuda a explicar a forma como os atores constroem as sinergias, a mesa de negociação e a atuação conjunta e não dissonante a favor ao PAE. Concertação é o ato ou efeito de conciliar, ajustar, decidir por acordo comum62. Para concertar uma ação é necessário discutir, gerir e mediar conflitos. A concertação é uma ação fundamental no processo de construção do projeto político e do espaço público em torno da alimentação em Santiago e determinante da personificação da política pública. É necessário convergir ações de diferentes formatos institucionais, modificar a atuação de diferentes atores, além disso, aprender a dimensionar e a gerir conflitos oriundos dessa atuação conjunta no espaço público construído.

A personificação da política pública tende a se efetivar quando se estabelece no local um ambiente de debate, conciliação, ajustes e criação de estratégias de ação conjunta. Trazer essa discussão para a tese e buscar elucidar o conceito do termo, mesmo que de forma breve, pareceu-me fundamental, uma vez que a noção “concertação social” é recorrentemente utilizada sem a devida clareza teórica. Assim, se a concertação social é fundamental para que ocorra a personificação da política pública, a mesma deve ser devidamente compreendida.

A noção concertação social começou a ser utilizada para explicar os processos de tomada de decisão, acordos e consensos obtidos em nível nacional entre as confederações sindicais, patronais e os poderes públicos (MARQUES e FERREIRA, 1991; FIORAVANTE, 2011). Nesse sentido, a concertação social se originou após o processo de redemocratização da sociedade e envolve uma tomada de decisão compartilhada entre governo, empregadores e associações de trabalhadores (FIORAVANTE, 2011). Esse modelo clássico de concertação, com a evolução das relações entre Estado e sociedade civil, tende a dar lugar a outro tipo de concertação, no nível micro e meso, no qual o poder público nem sempre está presente formalmente, mas desenvolve um papel indireto (Ibidem).

Para Fioravante (2011, p. 35), concertação social “refere-se ao mais alto nível de negociação e visa promover o interesse geral da sociedade, dela podendo resultar o pacto social”. O principal efeito da concertação social, para a autora, é o controle de situações

conflituosas pelos próprios atores sociais envolvidos. Nesse ângulo, conforme afirmam Marques e Ferreira (1991), a concertação contrapõe-se à representação de interesses em conselhos alargados, locais de encontro e de consulta. Ao contrário, caracteriza-se pelo recurso de negociação e criação de consenso, cujos parceiros não se propõem apenas a conhecer os diferentes pontos de vista mas como também a aproximá-los para a formulação de compromissos e equilíbrios. Os autores salientam que a concertação ultrapassou o nível macro e passou também a figurar nas esferas meso e micro. A noção, embora construída na mesa de negociação entre governo e sociedade civil em acordos macros da esfera política e econômica, hoje, ela é amplamente utilizada para expressar as negociações e pactos estabelecidos para a construção de um projeto local comum.

Do ponto de vista sociológico, a concertação social exprime uma integração social, na qual os elementos de estabilidade, coordenação funcional e consenso preponderam sobre os elementos de dissenso, conflito e mudança (FIORAVANTE, 2011). A autora também discute que a concertação social pode ser formal ou informal, provocada ou espontânea e, ainda, pode ser configurada como uma medida conjuntural, mais pontual, ou como uma política permanente.

Em Santiago, observa-se uma “concertação social informal” 63 em torno do PAE, construída pelos atores sociais envolvidos. Não há regulamentos, programas de governo municipal específicos, programas de instituições ou projetos interinstitucionais estabelecidos, regrados e reconhecidos para a implementação do PAE. Essa questão pode ser um potencial ou um agravante, dependendo da ótica utilizada para análise. Um potencial porque surgiu de forma espontânea, em que os atores sociais, ao reconhecerem o PNAE como uma importante política de desenvolvimento, engendraram uma série de ações, mesas de discussão, organização dos agricultores, debates nas escolas com foco na construção de um PAE diferenciado. Nesse viés, a concertação social não surgiu a partir de um projeto, o qual muitas vezes é gestado por poucos e deve ser executado por muitos, ou de forma intencional induzida por essa ou aquela instituição. Embora a mudança na legislação tenha proporcionado o ambiente favorável para o estabelecimento de um processo diferenciado, a adesão das instituições e a ação diferenciada dessas na construção do projeto político sobre alimentação em Santiago se estabeleceu em uma mesa de discussão, negociação e construção de uma atuação conjunta.

63

É chamado de concertação social informal porque a mesma foi estabelecida sem um regulamento ou projeto municipal, pactuado entre as instituições a priori para a implementaçao do PAE a partir das mudanças estabelecidas na legislação em 2009.

De acordo com a presidenta do STR e da Coopersaf, a discussão sobre o mercado institucional da alimentação escolar existe há muito tempo em Santiago64, porém nunca tinha sido implementado porque os agricultores não encontraram o apoio necessário no poder público municipal. O principal obstáculo para a participação dos agricultores no mercado institucional da alimentação escolar antes de 2009 era a necessária concorrência por licitação, o que automaticamente os excluía do processo. Esse debate, já existente na sociedade santiaguense, pode ter sido um dos elementos motivadores da concertação social para implementação do PNAE a partir de 2009.

No entanto, a inexistência de acordos ou projetos formais locais pode ser um agravante e, talvez, seja determinante para que uma série de ações necessárias por parte do poder público municipal, principalmente, não seja tomada, tal como, políticas públicas específicas voltadas ao fortalecimento e viabilização dos mercados locais. Os agentes de articulação do PNAE, os que fazem parte do poder público local, afirmaram que não há a existência e nem o debate de políticas públicas mais específicas na prefeitura, embora já existam várias ações nesse sentido. Um dos agentes de articulação entrevistado declarou: “uma das estratégias

para melhorar a quantidade e a diversidade dos produtos seria a criação de uma política pública municipal”. Outro citou o município de São Francisco de Assis como exemplo de

política pública municipal. Em São Francisco de Assis, a falta de agroindústrias familiares era considerada um problema para a compra de alimentos processados para a alimentação escolar, desse modo, o município, em 2006, desenvolveu um programa municipal chamado “Programa Pacto São Chico – Produtos Jeito Caseiro”, que tinha por objetivo fomentar a criação de agroindústrias de pequeno porte e construir o mercado local para esses produtos (BALEM et al, 2013). Hoje, há 22 agroindústrias no município e os agricultores além de acessar o mercado da alimentação escolar, comercializam em circuitos curtos.

Mesmo não havendo políticas públicas municipais formalizadas, é possível perceber uma atuação da prefeitura, tanto a parte da SMEC como a parte da SMAP, em favor do desenvolvimento da AF do município. A prefeitura viabilizou a infraestrutura para a realização das feiras, tem executado obras nas propriedades, tais como terraplanagem, açudes e estradas. Outra questão notável, por parte do poder público municipal, é a defesa da atuação da ATER, exclusivamente para atender a AF. Embora seja uma atuação mais difusa, está direcionada ao projeto político de fortalecimento da AF e dos mercados de circuitos curtos.

64

De acordo com as ATAS do Hortomercado, o grupo de agricultores que fazem feira nesse local vem discutindo a possibilidade de comercializar para a alimentação escolar desde 1996. Esse assunto será aprofundado no capítulo quatro.

Assim, a ausência de programas formalizados e políticas públicas municipais específicas culminam na consolidação das ações já estabelecidas, porém, essas formalidades e especificidades talvez venham a acontecer devido ao processo de amadurecimento da ação diferenciada e do espaço público em consolidação.

Pode-se inferir que a concertação social surgiu de forma espontânea em Santiago, embora a mudança na legislação em 2009 tenha criado as condições para o desenvolvimento de um PAE diferenciado. O marco legal e as ações em nível federal criaram o ambiente necessário e trouxeram à tona a discussão da alimentação saudável como um contraponto à alimentação industrial. Todavia, esse cenário nacional não é suficiente para induzir a personificação da política pública. A decisão de personificar a política, criando um projeto político e contribuindo com um espaço público diferenciado foi dos atores e das instituições de Santiago.

A concertação em torno do PAE de Santiago pode ser definida como uma microconcertação social. Para Marques e Ferreira (1991), a microconcertação ocorre quando há dificuldade na aplicação de acordos obtidos nos níveis macro e médio, nesse caso, considera-se como nível macro o PNAE enquanto programa nacional. Dessa maneira, o local desenvolve uma mesa de diálogo e de definição de estratégias para a implementação da política no município. A concertação social é condição para a ocorrência da personificação na política pública. Do contrário, não se colocaria na mesa de debates no local as diferenças, as dificuldades e os avanços que ainda são necessários. A afirmação de um dos agentes de articulação da política pública ilustra essa questão.

Há uma atuação conjunta das instituições boa e bem tranquila, a gente conversa e discute as situações que são limites, que precisam melhorar. O conjunto, além de ter uma boa integração, consegue conversar bem tranquilamente. As instituições têm um objetivo comum, que é a melhora da vida desse produtor e a melhoria da alimentação escolar.

Embora não exista uma agenda de reuniões rotineira entre as instituições envolvidas, os agentes recorrentemente afirmaram nas entrevistas que, quando há problemas ou questões que precisam ser resolvidas ou encaminhadas, sentam-se para conversar. E, no momento de elaboração das chamadas públicas, no qual eles estão todos presentes, aproveitam para dialogar sobre o processo.

Fioravante (2011) salienta que a duração da concertação reflete o grau de maturidade e estabilidade do grupo. A concertação social do PAE em Santiago ocorreu efetivamente a partir de 2009, embora o mercado institucional da alimentação escolar já fosse debate na sociedade.

Compreende-se, pelo grau de comprometimento dos atores socais, pelos avanços já obtidos no município e, principalmente, pelo fato da política estar personificada no local, que a concertação tende a ser permanente. No entanto, isso dependerá da habilidade dos atores sociais em buscar soluções para o principal fator desagregador e gerador de conflito do PAE, a “falta de produtos”. A produção abaixo da demanda acordada no início de cada ano com os agricultores, talvez, reflita muito mais do que questões técnicas e pontuais.

Cabe considerar que, pelo grau de discussão no município, a tendência é buscar soluções para o problema e não utilizá-lo como um elemento desagregador. Se o projeto político traz consigo a afirmação da política como “um terreno estruturado por escolhas, expressas nas ações dos sujeitos, orientados por um conjunto de representações, valores, crenças e interesses” (DAGNINO, PANFICHI E OLVERA, 2006), deve-se destacar que a ação dos atores e o sistema de mediação realizado pelos articuladores da política é fundamental nesse processo. Nesse sentido, seria ingenuidade acreditar que em todos os locais/municípios haverá um aproveitamento do potencial do PNAE enquanto política de desenvolvimento. Quando não há atores comprometidos e um projeto político local estabelecido, a política não se personifica e tende a ser aplicada apenas como cumprimento da lei, gerando distorções. Talvez isso, em longo prazo, gere um debate e o surgimento de uma personificação, uma vez que haverá os exemplos de outros locais, assim, a temporalidade tende a ser diferente de um local para outro.