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1.2 A estrutura argumentativa do De beata uita (I-IV)

1.2.2 A natureza da beatitude e a posse de Deus (II, 7 – III, 17-22)

1.2.2.2 O alimento próprio da alma (II, 8)

Em seguida, Agostinho afirma que, assim como o corpo necessita de alimento para o crescimento e vitalidade, a alma também necessita de alimentos. E qual é o alimento da alma? Conforme Mônica, a mãe de Agostinho, os alimentos da alma são as coisas do intelecto ou a

scientia113. Porém, tendo Trigésio se mostrado dúbio a esse respeito, ela argumenta que é de theoriis et cogitationibus – ideias e pensamentos – que a alma se alimenta, tendo em vista que

é por intermédio deles que a alma pode perceber seja o que for. Se os alimentos da alma são as ideias e pensamentos, logo, a fome da alma é proporcional ao grau de conhecimento pela ciência ou as artes liberais. Pode-se mesmo afirmar que “as almas dos homens mais sábios

108GILSON, É., op. cit., p. 130. 109

beata u., II, 7: Propter corpus.

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idem, ibidem: Modum, inquam, suum a natura constitutum habent omnia corpora, ultra quam mensuram progredi nequeant.

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idem, ibidem: tamen ea mensura minora essent, si eis alimenta defuissent.

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idem, ibidem: Et nemo dubitat cibis subtractis omnium animantium corpora macescere.

estão mais cheias e são maiores do que as almas dos ignorantes”114. Por outro lado, também

pode-se afirmar “que as almas dos que não são versados em nenhuma ciência nem aprenderam as artes liberais estão como que em jejum e, por assim dizer, esfomeados”115, ou

seja, estão cheios de vícios e desmedida (nequitia)116. Isso representa esterilidade e, por assim dizer, a própria fome das almas117. Pois, do mesmo modo que um corpo sem alimento fica, a maior parte das vezes, cheio de doenças e de sarna (deformidades que, no corpo, revelam fome), assim a alma do ignorante está cheia de doenças que manifestam a sua fome de ideias e pensamentos, aproximando-se do próprio nada118. A nequitia (desmedida) é a mãe de todos os vícios, pois, como queriam expressar os antigos, ela não é coisa nenhuma, ou seja, é o nada, o não-ser119. Dessa forma, Agostinho aponta para dois tipos de condições da alma, a saber: frugalitas e nequitia, que trataremos no terceiro capítulo.

Isso posto, os homens que se encontram na condição de nequitia são denominados de perdidos e a alma do ignorante é desmedida e cheia de vícios. E se os ignorantes possuem

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beata u., II, 8: De qua re cum dubitanter streperent: Nonne, inquam, conceditis hominum doctissimorum animos multo esse quam imperitorum quasi in suo genere pleniores atque majores?

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idem, ibidem: Recte igitur dicimus eorum animos, qui nullis disciplinis eruditi sunt nihilque bonarum artium hauserunt, jejunos et quasi famelicos esse.

116Carvalho traduz o termo latino nequitia simplesmente como “nequícia”. Porém, o termo nequitia possui vários

sentidos, por exemplo, “malícia”, “maldade”, “perversidade”, “injustiça”, “corrupção”. Aliás, a irmã Nair de Assis Oliveira traduz nequitia como “maldade, malignidade” (Cf. SANTO AGOSTINHO. A Vida Feliz. Trad. de Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulinas, 1993, p. 30-31). Por outro lado, nequitia também possui o sentido de “desregramento, desmedida, imoderação”. Portanto, optei traduzir nequitia por “desmedida”, e esta opção é melhor explicitada no terceiro capítulo desta dissertação.

117Cf. beata u., II, 8. Conforme Carvalho, “a partir de Sócrates, o fundo da esterilidade é a ignorância (Cf. Platão,

Teeteto, 149 sg.). Platão considera a ignorância a causa de todos os males (Cf. Leis, 688; Timeu, 88b)” (apud

SANTO AGOSTINHO. Diálogo sobre a felicidade, op. cit., p. 100).

118E aqui, no II, 8, ao tratar da dualidade frugalitas (virtude) e nequitia (vício, desmedida), ressaltando a nequitia

como o próprio “nada” – aquilo que flui, que se dissolve, liquefaz e quase sempre perece, o não-ser –, o hiponense segue a filosofia de Plotino para quem o mal é a privação de bem, identificado com o “nada”, o não- ser. Em Enéadas I, 8 [51], tratado intitulado “Sobre o que são os males e de onde provêm”, Plotino assevera que “os que investigam de onde provêm os males, seja o que sobrevenham aos seres, seja o que concernem a uma classe de seres, começariam sua investigação adequadamente se estabelecessem previamente no estudo o que é o mal e qual a natureza do mal. Pois assim se conheceria também de onde provêm, onde reside e a quem sobrevem, e, em geral, se chegaria a um acordo se existe na realidade das coisas” (Enéadas, I, 8, 1). Porém, como o conhecimento de cada coisa se realiza por semelhança – e aqui Plotino retoma um pressuposto platônico (Cf. PLATÃO. Timeu 50e, 52b) –, então, surgiria um problema (Cf. Enéadas, I, 8, 1). Ou seja, “com qual das faculdades que há em nós, podemos conhecer a natureza do mal? Porque como a inteligência e a alma são formas, as formas constituiriam também o objeto de seu conhecimento e as formas seriam o objeto de seu desejo” (Enéadas, I, 8, 1). Porém, conforme Plotino, não se pode imaginar o mal como forma, pois ele é ausência de todo bem (Cf. Enéadas, I, 8, 1). Nesse caso, é imprescindível agora indagar sobre a natureza do bem. “O bem é aquilo de que dependem todas as coisas e aquilo que desejam todos os seres, tendo-o por princípio e estando necessitados dele. Ele, ao contrário, não tem carência de nada, se basta a si mesmo, nada necessita, é a medida e limite de todas as coisas, doando de si inteligência, essência, alma, vida e atividade centrada na inteligência” (Enéadas, I, 8, 2). Com isso, Plotino deixa nítido que o bem é o ser, e o mal é o não-ser, o próprio “nada” (Cf. Enéadas, I, 8, 2-3).

119No original latim, Agostinho assim se expressa, “etenim ipsam nequitiam matrem omnium uitiorum, ex eo

quod nequidquam sit, id est ex eo quod nihil sit, ueteres dictam esse uoluerunt” (beata u., II, 8). Ou seja, “a

nequícia é a mãe de todos os vícios porque, como queriam dizer os antigos, ela não é coisa nenhuma, ou seja, é o nada”.

alma a ser nutrida, assim como sucede com o corpo, é imprescindível distinguir dois gêneros de alimento para ela: um saudável e útil, e outro, doentio e pernicioso. Para nutrir-se do alimento salutar é necessário que a alma deseje esse alimento, sendo que este desejo deve ser superior ao apetite do corpo. Mesmo porque, o bem a ser possuído pela alma não pode ser perecível, pois isto significaria permanecer numa condição famélica, desmedida e infeliz. Com isto, Agostinho pode agora introduzir a questão sobre o verdadeiro bem que de fato pode conceder a beatitude à alma.