• Nenhum resultado encontrado

1.2 A estrutura argumentativa do De beata uita (I-IV)

1.2.2 A natureza da beatitude e a posse de Deus (II, 7 – III, 17-22)

1.2.2.3 Quem possui a Deus é feliz (II, 10-11)

Quiçá imitando Sêneca, Agostinho estabelece sua pergunta fundamental: “Queremos todos ser felizes?”120. Para Agostinho, “é próprio de todos os homens quererem ser felizes”121.

Mas, ao perguntar-se pela natureza da beatitude, Santo Agostinho se dá conta de que o ser humano só pode ser feliz se tem o que quer, porém também não é feliz quem tem tudo o que quer. Tal pensamento acha-se no Hortensius, onde Cícero assevera que não podem ser felizes aqueles que vivem imoderadamente, pois não há infelicidade maior do que desejar o que não convém. Nesse aspecto, de acordo com Cícero, ter o que se quer é distinto de ser feliz, pois nem sempre o ser humano deseja aquilo que convém, podendo estar submisso à perversidade da vontade122. Isso posto, vemos que não basta ter o que se apetece, ao contrário, é necessário saber o que se pode desejar para alcançar a vida feliz.

Primeiramente, é imprescindível admitir como evidente ser infeliz quem não é feliz e, que, consequentemente, é infeliz quem não possui o que quer. Portanto, havendo

120

beata u., II, 10: Beatos nos esse uolumus, inquam?. Conforme Bonnie Kent, a importância da felicidade na

ética de Agostinho dificilmente pode ser superestimada (Cf. KENT, B. Augustine’s ethics. In: STUMP, E.; KRETZMANN, N. (ed.). The cambridge companion to Augustine. Cambridge: Cambridge University Press, 2002, p. 107). Mesmo porque, de suas muitas obras, o De beata uita é o ponto inicial da reflexão agostiniana sobre a questão da beatitude, que perdurará até o fim de sua carreira (Cf. idem, ibidem). E esta reflexão concorda com um pressuposto da filosofia clássica, ou seja, de que todos os seres humanos desejam a vida feliz (Cf. idem,

ibidem).

121

trin., XIII, 20, 25: Beatos esse se uelle, omnium hominum est. A tradução de De trinitate aqui citada pertence à

seguinte edição em língua portuguesa: SANTO AGOSTINHO. A Trindade. Tradução e comentário de Agustinho Belmonte; revisão e notas complementares de Nair de Assis Oliveira. Col. Patrística. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2005.

122Eis como se expressou Cícero no Hortensius: Ecce autem, ait, non philosophi quidem, sed prompti tamen ad

disputandum, omnes aiunt esse beatos qui uiuant ut ipsi uelint. Falsum id quidem: Velle enim quod non deceat, idem ipsum miserrimum. Nec tam miserum est non adipisci quod uelis, quam adipisci uelle quod non oporteat. Plus enim mali prauitas uoluntatis affert, quam fortuna cuiquam boni (beata u., II, 10). Ou seja, “Eis que

aqueles que precisamente não são filósofos, mas que, no entanto, se inclinam para as discussões, afirmam que quem vive conforme quer é feliz. Mas isto é seguramente falso; querer o que não convém, isso mesmo é que é a maior infelicidade. Quem não alcança o que quer não é tão infeliz como quem quer alcançar o que não convém. De fato, a perversidade da vontade ocasiona mais males do que a fortuna nos traz bens”.

aquiescência a esta assertiva, pode-se então inserir a seguinte indagação: “O que o homem precisa desejar para ser feliz?”. No De moribus ecclesiae catholicae I, 3, 4123, Agostinho

define as condições para a vida feliz, e tenciona à luz da razão, estabelecer o que deve ser a vida do ser humano124. Ora, a vida do ser humano deve ser feliz, e, segundo Agostinho, “não há ninguém que não se encaixa nessa proposição, mesmo antes de terminar seu enunciado”125.

Dessa forma, Agostinho elenca três condições negativas – que tratam de comportamentos específicos que não conduzem à vida feliz – e uma quarta condição positiva, na qual se pode ser feliz.

Quanto às três condições negativas, primeiramente, na concepção de Agostinho, não será feliz aquele que não possui o que deseja, seja qual for o objeto do seu desejo. Em segundo lugar, também não será feliz aquele que possui o que deseja, se o que deseja é nocivo. E, por fim, também não será feliz aquele que não ama o que possui, mesmo que seja muito bom. Mesmo porque, “aquele que arde em desejos do que não pode conseguir, ele mesmo é a sua crucificação”126. Nesse aspecto, “aquele que obtém o que não deveria amar,

fatalmente se engana, e não está saudável aquele que não deseja o que deveria obter”127. Por

essa razão, consoante Agostinho, em nenhuma destas condições está a alma livre de miséria; e como a miséria e a felicidade não podem estar simultaneamente no homem, é por isso, que nenhum destes é feliz. Sendo assim, para Agostinho, há apenas uma quarta condição em que se pode dar a vida feliz, pelo amor e posse do sumo bem. Então, fica nítido que desejar o que é nocivo e terreno denota infelicidade.

Porém, há muitas pessoas afortunadas que possuem em demasia bens terrenos e, que, não obstante, vivem de modo agradável. E mais, “a nada do que querem renunciam”128.

Contudo, quem possui bens terrenos em demasia pode viver atormentado pelo temor de perder o que se possui e ama. Em vista disso, uma indagação é suscitada: quem teme perder o que possui e ama é feliz de modo pleno? Decerto, conforme Agostinho, é evidente que não é feliz quem teme perder o que possui e ama, tendo em vista que os bens que dependem das circunstâncias do acaso podem perder-se. E mesmo que alguém esteja seguro de não perder

123A tradução de De moribus ecclesiae catholicae pertence à seguinte edição em língua espanhola: AGUSTÍN, S.

De los costumbres de la Iglesia. In: Obras completas de San Agustín. Escritos apologéticos (1º). Tomo V. Trad. de P. Teófilo Prieto, OSA. Madrid: BAC, 1975. Disponível em <http://www.augustinus.it/spagnolo/costumi/index2.htm>. Acesso em: 14 abr. 2013.

124Cf. mor., I, 3, 4. 125

idem, ibidem: neque quisquam est in hominum genere, qui non huic sententiae, antequam plane sit emissa, consentiat.

126

idem, ibidem: qui appetit quod adipisci non potest, cruciatur.

127

idem, ibidem: qui adeptus est quod appetendum non esse, fallitur et qui non appetit quod adipiscendum esset, aegrotat.

128

todos os bens terrenos que possui, tal não pode satisfazer-se com eles. Mas, supondo que, alguém vivesse na abundância e cercado de todos esses bens terrenos, impondo um limite ao seu desejo e que, satisfeito com tais bens, os gozasse da forma mais completa, conveniente e agradável, tal seria feliz? Não será por causa desses bens que tal pessoa será feliz, mas sim pela moderação da sua alma.

Sendo assim, para ser feliz é necessário que o ser humano procure um bem sempre permanente, eterno e imutável, ou seja, um bem que “não pode ser destruído por nenhum revés da fortuna”129. E só há um ser que é sempre permanente, eterno e imutável – Deus.

Portanto, quem possui e conhece a Deus é feliz. Dessa forma, quem possui a Deus nada pode lhe faltar e, por conseguinte, vive de maneira moderada, sem o temor de perder o bem que possui e ama.