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2 O LÉXICO DE VOLVNTAS E MODVS NOS DIÁLOGOS DE CASSICÍACO E

2.8 Conclusão

Entendemos que os termos “vontade” e “medida” são os significados mais apropriados para uoluntas e modus respectivamente, pois não convém, no De beata uita, traduzir uoluntas por desejo. Até porque, o termo cupiditas, que é um substantivo do gênero feminino, pertencente a 3ª declinação do latim (cupiditas, cupiditatis), exprime mais o sentido de “desejo, apetite, cobiça, paixão ou desejo violento”. Na classificação quadripartida das paixões feita pelos estóicos (por exemplo, em Cícero), a cupiditas, que também se pode chamar libido, é uma tendência imoderada, e não submetida à razão216. Agostinho, por outro lado, “ao notar que se estabelecera o costume de se usar a palavra apenas num sentido negativo, quando seu objeto não era indicado, redefiniu cupiditas”217, declarando que a

vontade reta é o amor bom; e a vontade perversa, o amor mau: “e assim, o amor ávido de possuir o objeto amado é o desejo; a posse e o desfrute de tal objeto é a alegria; a fuga ao que é adverso é o medo; e sentir o adverso, se acontecer, é a tristeza. Semelhantes paixões, por conseguinte, são más, se mau o amor, e boas, se é bom”218. Então, conforme Gilson, “todos os

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conf., VI, 11, 19: Pereant omnia et dimittamus haec uana et inania: conferamus nos ad solam inquisitionem ueritatis. Vita misera est, mors incerta est; subito obrepat: quomodo hinc exibimus? Et ubi nobis discenda sunt quae hic negleximus? Ac non potius huius neglegentiae supplicia luenda? Quid, si mors ipsa omnem curam cum sensu amputabit et finiet? Ergo et hoc quaerendum. Sed absit, ut ita sit. Non uacat, non est inane, quod tam eminens culmen auctoritatis christianae fidei toto orbe diffunditur. Numquam tanta et talia pro nobis diuinitus agerentur, si morte corporis etiam uita animae consumeretur. Quid cunctamur igitur relicta spe saeculi conferre nos totos ad quaerendum Deum et uitam beatam? Sed exspecta: iucunda sunt etiam ista, habent non paruam dulcedinem suam; non facile ab eis praecidenda est intentio, quia turpe est ad ea rursum redire. Ecce iam quantum est, ut impetretur aliquis honor. Et quid amplius in his desiderandum? Suppetit amicorum maiorum copia: ut nihil aliud et multum festinemus, uel praesidatus dari potest. Et ducenda uxor cum aliqua pecunia, ne sumptum nostrum grauet, et ille erit modus cupiditatis. Multi magni uiri et imitatione dignissimi sapientiae studio cum coniugibus dediti fuerunt.

216Cf. FONTANIER, J-M. Vocabulário latino de filosofia: de Cícero a Heidegger. Trad. de Álvaro Cabral.

São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 53.

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idem, ibidem.

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ciu., XIV, 7, 2: Amor ergo inhians habere quod amatur, cupiditas est, id autem habens eoque fruens laetitia; fugiens quod ei aduersatur, timor est, idque si acciderit sentiens tristitia est. Proinde mala sunt ista, si malus

movimentos sensíveis da alma se reportam às quatros paixões fundamentais: o desejo (cupiditas), a alegria (laetitia), o medo (metus) e a tristeza (tristitia)”219.

Nesse caso, cupiditas é definido como “um amor que aspira a possuir seu objeto”220,

podendo ter dois aspectos – um positivo e outro negativo –, dependendo do seu direcionamento. Já uoluntas, como ressaltado anteriormente, é um movimento específico da alma, o movimento livre em direção de algo. Segundo Marianne Djuth,

Agostinho aplica o termo uoluntas ou uma expressão comparável, como

uoluntarius ou sponte, a aspectos tão diversos da alma como são os desejos, as

intenções ou finalidades, as escolhas, os anseios, as emoções e os afetos. Cada um desses aspectos é capaz de manifestar a presença da vontade na alma independentemente dos demais aspectos221.

Obviamente que o desejo (cupiditas) indica a presença da vontade (uoluntas) na alma. Porém, é imprescindível ressaltar que ao empregar uoluntas no De beata uita, Agostinho fala especificamente da vontade como o querer, e não dos aspectos diversos da alma, entre eles o desejo (cupiditas), deixando claro a partir de II, 8, sob a influência ciceroniana, que esta vontade necessita de uma medida – a sabedoria – pois sem ela, o ser humano cai na perversidade da própria vontade.

Por outro lado, no contexto do De beata uita, traduzir modus por medida é melhor do que modo, moderação, condição e limite. Mesmo porque, no caso de medida, a vantagem é que essa expressão designa o sentido elementar de modus – os outros são derivados –, ou seja, uma unidade de medida que necessariamente proporciona equilíbrio a todo o ser, evitando assim a desmedida, como veremos mais adiante em IV, 32-33, quando Agostinho tratará da sabedoria como medida da alma (modus animi).

Sendo assim, exposto o sentido que observamos na interpretação de uoluntas e

modus, fica preparado o caminho para o que se fará no próximo capítulo, quando se mostrará

a articulação entre as duas noções pela contraposição com a nequitia e a frugalitas.

E a fim de proporcionar uma visão estatística, estabelecemos uma tabela do léxico aqui articulado:

amor est; bona, si bonus. A tradução de De ciuitate Dei aqui citada pertence à seguinte edição em língua

portuguesa: SANTO AGOSTINHO. A cidade de Deus. Trad. de Oscar Paes Leme. Col. Pensamento humano. vol. 9. 2 ed. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2006.

219GILSON, É., op. cit., p. 253. 220FONTANIER, J-M., op. cit., p. 53.

221DJUTH, M. Voluntad. In: FITZGERALD, A. D. (Dir). Diccionario de San Agustín: San Agustin a traves

OBRAS Quantidade de ocorrências de uoluntas

Quantidade de ocorrências de modus

Contra academicos Não consta 2

De beata uita 2 14

De ordine Não consta 2

Soliloquia Não consta Não consta

Confessiones 23 10

De trinitate 63 6

Retractationes 18 Não consta

3 A CORRELAÇÃO ENTRE “VONTADE” E “MEDIDA” NO DE BEATA

VITA

Neste último capítulo, veremos que, para bem avaliar a relação entre vontade e medida no De beata uita, faz-se necessário analisar a contraposição entre nequitia e

frugalitas. Com efeito, Agostinho retoma a discussão ciceroniana sobre esses termos, para,

em seguida, demonstrar propriamente a correlação entre vontade e medida.