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1 ,2 A ALM A COM O PRI M EI RA CON SI D ERAÇÃO OU PRI M EI RO

D ESLOCAM EN TO I N TERI OR (PRI US CON SI D ERATUS)

Prim eiram ente, é necessário estabelecer a im portância da reflexão acerca da alm a, a fim de realizar um a dupla recusa que: 1) que a alm a divina sej a da m esm a substância de Deus; 2) que a alm a m á, sendo vivente, exista e provenha da fonte de vida, Deus.

201 cf. Gn. c. m an. I I ,9,12

202 Et cum hoc eius peccat um poena fuerit consecut a, experiendo discit quid int ersit

int er bonum quod deseruit , et m alum in quod cecidit ( E no m om ent o dest e pecado a pena que segue é que a alm a deve aprender por experiência qual a diferença ent re o bem que abandonou e o m al em que caiu) . Gn. c. m an. I I ,9,12.

No debate público contra Fortunato, ocorrido poucos dias após o tratado de 392, Agostinho deixa claro a im portância estratégica de iniciar o debate contra a doutrina m aniqueia pela questão da alm a:

A: Sobre estas alm as que, segundo vocês, passam da m orte à vida por int erm édio de Cristo, qual é a causa delas terem precipitado na m orte? F: Prim eiro, negue se não há nada fora de Deus. A: Ao invés disso, se você não se im portar, responda qual é a causa dessas alm as terem sido lançadas à m orte? F: Ao contrário, diga você prim eiro, caso não se im porte, se algo existe fora de Deus ou se tudo está em Deus? 203

É possível perceber que os polem istas disputam pela paut a da discussão: por um lado, Agostinho possui um a ordem bem definida para com bater a doutrina m aniqueia, pois insiste que a investigação deve iniciar- se pela alm a; por outro, Fortunato insiste em iniciar pela questão acerca da origem do m undo. Assim , as prim eiras linhas do debate são m arcadas por um a quest ão de ordem de pauta. Agost inho se esforça para iniciar a discussão pela psicologia; Fortunato, pela cosm ogonia. De fato, verem os com o o m ovim ento de interiorização das naturezas é fundam ent al para a argum entação do hiponense, pois, som ente após o reconhecim ento de sua própria natureza, a alm a pode avaliar por aut oanálise o procedim ento valorativo que constit uíram as falácias e as falsas doutrinas por onde peregrinara.

203 Cont ra Fort unat um I ,4 AUGUSTI NUS dixit : Has anim as, quas de m ort e ad vit am

per Christ um venire fat em ini, quae causa praecipit avit in m ort em ? FORTUNATUS dixit: Hinc iam dignare prosequi et cont raire, si nihil praet er Deum . 5. AUGUSTI NUS dixit : I m o t u dignare respondere id quod int errogaris, has anim as quae causa m ort i dederit . FORTUNATUS dixit : I m o t u dignare dicere, ut rum aliquid sit praet er Deum , an om nia in Deo sint .

E. Gilson sintetiza bem a estratégia do hiponense: “ August in n’a cesse de codifier les résultats de son expérience personelle”204. Assim , em Sobre as Duas Alm as, a atividade de chorar pelas m isérias pessoais é um cam inho da interioridade e revela a exclusividade da postura im própria da alm a. Agost inho, então, passa a analisar os descam inhos de out rora em busca do entendim ento das questões que o envolviam e o enlaçavam . Nosso autor faz uso da im agem das sem entes plantadas na profundeza da alm a:

Pois havia m uitas coisas que eu devia ter feito para evitar que as sem entes da verdadeiríssim a religião, im plantadas salvificam ente (salubriter insita) em m im desde m inha infância, tivessem tão facilm ente e em tão poucos dias sido escavadas ( efossa) e extraídas da m inha alm a pelo erro e fraude de hom ens falsos e falaciosos.205

A im agem visa traduzir o que aconteceu no m ais profundo da alm a ( intus) , pois ali, por causa de suas im post uras, as sem entes foram extraídas, m as não pela força alheia a si m esm a, pelo contrário por concessão int erior. A m ente não se fiou na piedade e na dependência do Deus, nem se dedicou com sobriedade e diligência, e, conseqüentem ente, deixou que lhe extraíssem da profundeza da alm a as preciosas centelhas da verdade. Ainda que os m aniqueus vindo de fora tenham lhe apresentado a falsa doutrina das duas alm as, foi, ao final, ela m esm a que se deixou levar. Tal assalto causou um a condição hum ana adoecida e aprisionada. O vocábulo lat ino “ salubriter” , que traduzim os com o salvificam ente206, é na verdade im agem de sanidade que se opõe, no caso, à ausência da sanidade, a doença. Com efeito, a alm a foi assaltada e as sem entes da verdade

204 E. Gilson. I nt roduct ion à l’ét ude de saint August in, 1949,p. 31

205 duab. an. I ,1. Mult a enim erant , quae facere debui, ne t am facile ac diebus

paucis, religionis verissim ae sem ina m ihi a pueritia salubrit er insita, errore vel fraude falsorum fallacium ve hom inum effossa ex anim o pellerent ur

206 Seguindo Jourj om ( BA) e Roland Teske , m as Luis Pio ( BAC) t raduz com o saudavelm ent e.

lhe foram extraídas com o que escavadas ( efossa) do interior do solo da alm a. Extraída a capacidade de considerar as distinções necessárias quanto à hierarquia dos seres, sua natureza e força, Agostinho confessa ter se afastado por nove anos dos afetos do seu criador.

O engano que lhe subtraiu as sem entes da verdade instauradas na alm a parece ter um a origem prim eira que pode ser considerada um erro fundador:

Pois, se prim eiram ente eu tivesse sobriam ente e diligentem ente considerado com igo m esm o, com m ente piedosa e suplicante em Deus, aqueles dois gêneros de

alm a, aos quais os m aniqueus atribuíram naturezas

individuais e próprias, desej ando que um a fosse da própria substância de Deus e a outra nem sequer estivesse relacionada a Deus com o criador...207

É im portante notar que Agostinho conduz toda a gravidade da questão m aniquéia para o erro acerca da concepção de alm a. O erro é ainda m ais grave quando, por encadeam entos, acaba por determ inar conclusões quanto à natureza da substância divina. Em

m or. ( 388) Agostinho igualm ente anunciava o program a de

investigação necessário para o enfretam ento da questão m aniquéia:

“ Perguntem o- nos, pois, o que é superior ao hom em ? Encontra- se

difícil sabê- lo se prim eiram ente não for considerado ( prius

considerato) a questão sobre o que é o hom em em si m esm o”208. Se Agostinho busca pela verdade que transcende o próprio hom em , a investigação deve iniciar pela consideração de si m esm o. De m aneira

207duab. an. I ,1 Nam prim o anim arum illa duo genera, quibus it a singulas nat uras

propriasque t ribuerunt , ut alt erum de ipsa Dei esse subst ant ia, alt erius vero Deum nec condit orem quidem velint accipi, si m ecum sobrie diligent erque considerassem , m ent e in Deum supplici et pia...

208 cf. m or. 4. 6. Quaeram us igit ur quid sit hom ine m elius. Quod profect o invenire

análoga, a falsidade acerca do que é superior ao hom em deve ser exposta segundo a análise de si m esm o.

O alcance da análise da falácia acerca dos “ genêros de alm as” dá testem unho do quanto a questão é im portante a ponto de ser m esm o um pilar de todo sistem a m aniqueu. Note- se com o, de início, a doutrina “ d’aqueles dois gêneros de alm a” , segundo o texto supra citado, conduz à duas questões centrais: prim eiro, sendo um dos ‘gêneros’ de alm a da m esm a substância de Deus, o próprio do hum ano e do divino estão assim confundidos e acabam por conduzir o hom em ao estado de soberba por se pensar com o o próprio Deus. Segundo, que exista um a alm a que não sej a criada por Deus, resolveria o problem a da fonte do m al e do pecado, no entanto, com o consequência inaceitável, seria necessário pressupor um a fonte coeterna ao próprio Deus, que fosse a origem de tal genêro de alm a. Estas questões serão retom adas adiant e; por hora, basta salientar a estratégia program ática para o enfrentam ento da gnose.

Desde o início, o estudo reflexivo ( m ecum ) da natureza da alm a é ponto de partida para a análise de erros que, se tivessem sido devidam ente considerados, derruiria desde então toda a doutrina m etafísica m aniqueia209. Resta, pois, seguir a investigação sobre a possibilidade de conhecim ento do que é alm a, porque, afinal, alm ej a- se a exposição da falácia sobre o ser da alm a.

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