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Agostinho e os maniqueus: análise a partir 'das duas almas'

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Academic year: 2017

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(1)

Daniel Fuj isaka

Agost inho e os m aniqueus:

análise a part ir “ das duas alm as”

( versão corrigida)

(2)

Agostinho e os maniqueus:

análise a partir

"das duas almas"

(versão corrigida)

(3)

Daniel Fuj isaka

Agost inho e os m aniqueus:

análise a part ir “ das duas alm as”

( versão corrigida)

Dissertação de mestrado apresentada ao programa de

Pós-Graduação em Filosofia do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Mestre em Filosofia sob a orientação do Prof. Dr. Lorenzo Mammì

(4)

Peram bulou sem rum o. O sol j á se punha. Um a angúst ia espantosa se apoderava dele nos últ im os t em pos. Não tinha nada de especialm ente aguda ou azeda, m as em anava dela algo de constante, de eterno; fazia pressentir anos e anos dessa dor fria, dessa angúst ia m ortal sem escape; fazia pressentir toda a eternidade num instante. Essa sensação costum ava atingi- lo com m ais força ao cair da tarde.

(5)

Agradeço ao professor Lorenzo Mam m ì que, desde a graduação, tem m e inspirado e de m uitas m aneiras m e orientado na disciplina filosófica; pela análise fina e atenciosa que dedicou a todas m inhas questões; pela leit ura porm enorizada de todos os textos que lhe enviei. Esse trabalho busca de algum m odo im itá- lo em inteligência e sensibilidade.

Ao professor Moacyr Novaes, a quem devo a prim eiro faísca que culm inou na pesquisa filosófica. Foi quem , ainda nos prim eiros anos da graduação, após singela apresentação de um sem inário, dirigiu- m e palavras encoraj adoras que m e incent ivaram a prosseguir.

Aos professores Carlos Arthur R. do Nascim ento, José Carlos Estêvão e Carlos Eduardo de Oliveira que no início do m estrado contribuíram im ensam ente com significativos apontam entos sobre o proj eto, além de m e receberem tão bem em nossa com unidade filosófica.

Aos professores que m e aj udaram na qualificação, Moacyr Novaes e Cristiane N. A. Ayoub. Suas contribuições foram determ inantes.

Aos funcionários da secretaria do Departam ento de Filosofia. Aos colegas do CEPAME. Aprendo e m e divirto m uito com vocês. Aos m eus pais, Kazunori e Matilde Fuj isaka, pelo suporte em todo cam inho.

Aos queridos am igos e irm ãos, Lucas Fuj isaka e Alexandre Polac, pela revisão do text o.

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FUJI SAKA, D. Agost inho e os m aniqueus: análise a a partir das “ duas alm as” . 2014. 228 f. Dissertação ( Mestrado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Hum anas. Departam ent o de Filosofia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014.

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alm a com o incorpoream ente una – m om ento em que pecado é definido com o estado negativo de ser - , deve considerar a cisão original e supra individual: “ um involuntário instalado no seio do voluntário” . Reintroduz-se a questão “ das duas alm as” no plano geral da filosofia do bispo, em registro notoriam ente dist into: interioridade e confissão.

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ABSTRACT

FUJI SAKA, D. Augustine and the Manichaeans: analysis from "two souls". 2014. 228 p. Thesis ( Mast er) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Sociais. Departam ento de Filosofia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014.

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in t he philosophy of the bishop in dist inguished register: interiority and confession.

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SUM ÁRI O

SUM ÁRI O ... 1

INTRODUÇÃO ... 6

TEMA E DIVISÃO ... 6

SITUAÇÃO MEDIANA DA ALMA. ... 12

VERDADE E MITO: A GNOSE ANTI-GNOSTICA ... 16

PARTE I–A QUESTÃO MANIQUEIA NAS CONFISSÕES III ... 23

I,1O CONTEXTO PASSIONAL DA QUEDA (ITAQUE INCIDI) ... 23

I,1,1AS PAIXÕES E OS ESPETACULOS ... 25

I,1,2A FALSA E VERDADEIRA MISERICORDIA ... 33

I,1,3A EXORTAÇÃO AO CONTROLE DAS PAIXÕES PELO DISCURSO RACIONAL (FILOSOFIA) ... 37

I,1,4SALVAÇÃO DAS PAIXÕES PELA PAIXÃO. ... 39

I,2A QUEDA E O DELIRIO DOS LOQUAZES (IN HOMINES DELIRANTES LOQUACES). VERDADE E FALSIDADE DAS PALAVRAS. ... 43

I,2,1A QUEDA NAS PALAVRAS ... 43

I,2,2VERDADE E PALAVRAS SUPERADAS (TRANSGREDI) ... 47

I,2,3A FALACIA DE MISTURAS DE SILABAS (CRISTOLOGIA) ... 48

I,2,4PRESENÇA E DISTANCIA DE DEUS (SOTERIOLOGIA) ... 55

SEMELHANÇA: INTERIORIDADE E ANTERIORIDADE DO AMOR. ... 57

EXTERIORIDADE E DESSEMELHANÇA (REGIO DISSIMILITUDINIS) ... 61

I,3A GNOSE RESISTE: SOBRE AS DUAS ALMAS (DISCURSO RACIONAL) ... 72

I,3,1VERDADE E SER ... 72

I,3,2PECADO E CULPABILIDADE ... 75

PARTE II-SOBRE AS DUAS ALMAS ... 82

II,1INTRODUÇÃO ... 82

II,1,1UM TRATADO ENTRE A MISERIA HUMANA E A MISERICORDIA DIVINA. ... 88

II,1,2A ALMA COMO PRIMEIRA CONSIDERAÇÃO OU PRIMEIRO DESLOCAMENTO INTERIOR (PRIUS CONSIDERATUS) ... 92

II,1,3ENTRE A OPINIÃO DE DOUTISSIMOS E A DIALETICA ... 96

II,2VIDA E ALMA ... 103

II,2,1VIDA E DERIVAÇÃO ... 103

II,2,2ARGUMENTO DECISIVO: SUBSTANCIA INCORPORAL ... 105

II,2,3A UTILIDADE E ENGANO DA REPRESENTAÇÃO SENSIVEL (ET BONI INSTRUUNT, ET MALI FALLUNT) ... 120

(14)

II,3DISCERNINDO AS NATUREZAS. ... 129

II,3,1A DEFINIÇÃO DE HOMEM (QUID HOMO). ... 129

II,3,2PERCEPÇÃO DOS CORPOS. ... 132

II,3,3DEFECTIBILIDADE E CONSERVAÇÃO DOS SERES ... 134

II,3,4A VIDA DOS PEQUENOS E SUPERIOR AOS CORPOS DOS ASTROS. ... 136

II,3,5OS VICIOS DA ALMA SÃO SUPERIORES A LUZ SENSIVEL ... 140

II,3,6IRREDUTIBILIDADE DO SER PELO SEU OPOSTO. ... 142

II,4–ONTOLOGIA E ETICA.ALCANCE DE DUAS DEFINIÇÕES ... 149

II,4,1A NATUREZA DA ALMA E A VIDA MORAL ... 149

II,4,2PECADO E UNIDADE DA ALMA ... 152

II,4,3COGITO AMPLIADO: SER, VIVER-QUERER, PENSAR. ... 156

II,4,4DEFINIÇÃO DE VONTADE ... 161

II,4,5DEFINIÇÃO DE PECADO E A SUA ORIGEM ... 170

II,5UNIDADE E FALIBILIDADE DA ALMA ... 178

II,5,1DOIS GENEROS DE COISAS BOAS, INFERIOR E SUPERIOR, NA MESMA ALMA ... 182

II,5,2APROPRIAÇÃO DAS “PARTES DA ALMA” POR AGOSTINHO. ... 186

II,5,3PECADO: HABITO (CONSUETUDO) E IMITAÇÃO. ... 192

II,5,4ADMIRAVEL TENSÃO ENTRE ASCENSÃO DE HABITO. ... 199

CONCLUSÃO -ARREPENDIMENTO E CONFISSÃO. ... 205

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Lista de abreviações

Algum as Obras de Agostinho1:

beata v. de beata vita (386) c. acad. contra academicos (386) c. Adim. contra Adimantum (393/4)

c. adv. leg. contra adversarium legis et prophetarum (420) c. don. contra partem Donati post gesta (411)

c. ep. fund. contra epistulam quam vocant ‘fundamenti’ (396) c. ep. Parm. contra epistulam Parmeniani (400)

c. ep. pel. contra duas epistulas pelagianorum (420/1) c. Faust. contra Faustum manichaeum (397/9) c. Fel. acta contra Felicem manichaeum (404) c. Fort. acta contra Forunatum manichaeum (392) c. Iul. contra Iulianum (421/2)

c. Iul. imp. opus imperfectum contra Iulianum (429/30) c. mend. contra mendacium ad Consentium (420) c. Sec. contra Secundinum manichaeum (398) civ. de civitate dei (413 426/7)

dial. de dialectica (387)

disc. chr. de disciplina christiana (398)

div. qu. de diversis quaestionibus LXXXIII (388/96)

div. qu. Simp. de diversis quaestionibus VII ad Simplicianum (396) doctr. chr. de doctrina christiana (396 [completed 427])

duab. an. de duabus animabus contra manichaeos (391/2) en. Ps. enarrationes in Psalmos (392/417)

ep. (epp.) epistula (epistulae) (386 430) de secta donatistarum (405) exp. prop.

Rom. expositio quarumdam propositionum ex epistola ad Romanos (394) f. et symb. de fide et symbolo (393)

Gal. exp. epistolae ad Galatas expositio (394/5) Gn. c. man. de Genesi contra manichaeos (388/90) Gn. litt. de Genesi ad litteram (401 15)

Gn. litt. imp. de Genesi ad litteram imperfectus liber (393/4; 426/7) haer. de haeresibus (428)

imm. an. de immortalitate animae (387)

Io. ep. tr. tractatus in Iohannis epistulam ad Parthos (406/7) Io. ev. tr. tractatus in evangelium Iohannis (406 21?)

(16)

lib. arb. de libero arbitrio (387/8 391/5) mag. de magistro (389/90)

mend. de mendacio (394/5)

mor. de moribus ecclesiae catholicae et de moribus manichaeorum (388) mus. de musica (388/90)

nat. b. de natura boni (398) nat. et gr. de natura et gratia (413/15) ord. de ordine (386)

pat. de patientia (417/18)

perf. iust. de perfectione iustitiae hominis (415) praec. praeceptum

qu. ev. quaestiones evangeliorum (399/400) quant. an. de quantitate animae (387/8)

retr. retractationes (426/7) Rom. inch.

exp. epistolae ad Romanos inchoata expositio (394/5) s. (ss.) sermones (392 430)

s. dom. m. de sermone domini in monte (393/6) sol. soliloquia (386/7)

spir. et litt. de spiritu et littera (412) trin. de trinitate (399 422/6) util. cred. de utilitate credendi (391/2) vera rel. de vera religione (390/1)

NOTAS D E TRAD U ÇÃO E FON TE D AS OBRAS D E AGOSTI N H O

Os textos latinos foram tom ados do site www.augustinus.it , Patrologia lat ina organizada por J. P. Migne. Cit tà Nuova Editrice and Nuova Biblioteca Agostiniana

(17)

.

UNI VERSI DADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FI LOSOFI A, LETRAS E CI ÊNCI AS HUMANAS DEPARTAMENTO DE FI LOSOFI A

(18)

IN TROD UÇÃO

TEM A E D I V I SÃO

A dissertação pretende exam inar o trat am ento filosófico que Agostinho confere ao m aniqueísm o. Para tal, situarem os a discussão no em bate contra o dogm a gnóstico das “ duas alm as” , que, com o verem os nas Confissões, não é questão pequena no pensam ento do hiponense.

É necessário ident ificar, de part ida, algum as hipóteses condutoras de nossa leitura. Já foi dito que a passagem de Agostinho pela doutrina gnóstica possibilitou, no corpus de suas obras antim aniqueias, a elaboração de um a “ ontologia inteiram ente renovada”2, na m edida em que deu ocasião para um a profunda alteração do corporalism o para a descoberta da interioridade com o espírito, de natureza incorpórea.3 A passagem do m aniqueísm o ao neoplatonism o ofereceria ao hiponense, com o prim eira conversão, “ um a nova visão de m undo”4, ou sej a, passagem do corporalism o às realidades espirituais.

Mas, a nosso ver, a questão m aniqueia na filosofia agostiniana não pode ser reduzida com o oposição ao corporalism o. Nosso exam e parte de outro lugar: o hiponense, j á na apropriação dos instrum entos neoplatônicos5, é um cristão que pretende “ batizar” o neoplatonism o e, nesse sentido, o exam e do livro I I I das Confissões

2 cf. O. du Roy. L’int elligence de la foi en la Trinit é selon Saint August in: genèse de sa t héologie t rinit aire j usqu’en 391., 1966, p.82

3 Cf. G. Lanfont e, apud Madec, G. Not es sur l’int elligence august inienne de la foi, I n: Révue des. Ét udes August iniennes 17, 1971. L’experience des erreurs m anichéenes a eu pour effet que la Sagesse chrét ienne d’August in devait , pour ansi dire à priore, présent er des elem ent s d’ont ologie. p. 125.

(19)

m ostrará que há na passagem do m aniqueísm o ao cristianism o neoplatônico m ais do que um a “ ontologia totalm ente renovada”6, de

m odo que o problem a que cerca a adesão à gnose m aniqueia não deve ser reduzido à questão da natureza do m undo. Prova disso, com o verem os, é que Agost inho levará para esse novo m odelo ontológico, em que a alm a se descobre de natureza inteligível e interm ediária entre os sensíveis e os inteligíveis im utáveis no tem po, os antigos problem as levantados pela gnose. Esta reintrodução da agenda m aniqueia no m odelo ontológico neoplatônico causará profunda alteração dessa renovada ontologia, m as j á superada filosofia.

Ensej am os, pois, am pliar nossa com preensão acerca da questão gnóst ica e pensar algo m ais do que apenas “ elem entos de ontologia” , de m odo que nossa hipótese inicial considera que há dois tratam entos da questão do m al, ou pecado para Agostinho. Um deles, um a resposta ao m ito dogm ático m aniqueu, trata pecado com o “ um a declividade negativa” ou m om ento negativo do ser individual (defectus da vontade) , com o diria P. Ricoeur7. Outro tratam ento

considera pecado com o m iséria (m iser) , um a doença da alm a que acabará por lançar as bases da doutrina do pecado original. E isso é im portante: o pecado original não está na origem da m etafísica m oral de Agostinho, m as é fruto da experiência fracassada: um m om ento m isterioso da at ividade hum ana que não pode ser analisável, apenas com preendida na narrativa pessoal. É a distância entre a pura indeterm inação da vontade do eu quero sem constrangim ento (nulo cogente8) e a insuficiência do eu não posso querer com plet am ente. A

6 Ver not a 3

7 Ricoeur, Paul. O “ pecado original” : est udo de significação, I n O conflit o das int erpret ações. Ensaios de herm enêut ica. Port o: Res Edit ora, 1989, p. 270

(20)

esse últim o, J. L. Marion refere com o im potência de “ querer querer”9

que, segundo Agost inho nas Confissões VI I I , é base da falibilidade da condição hum ana em “ poder querer” . Com efeito, m ais do que “ poder de querer” , é im potência de “ querer querer” que desvela o m istério m onstruoso (m onst rum cf. conf. VI I I ) da insuficiência hum ana e da “ alienação da vontade a ela m esm a” .10

São, portanto, dois tratam entos dado ao pecado desenvolvidos em m om entos distintos para problem as diferentes. Por isso, é com um nos estudos agostinianos referir ao segundo m om ento, pecado com o m iséria, com o um desenvolvim ento posterior de m aturidade, consolidado definit ivam ent e nos escritos cont ra Pelágio. É possível, no entanto, am enizar essa leitura disj untiva, salientando a forte presença conceitual de m iséria e m isericórdia j á num texto essencialm ente antim aniqueu de 392, Sobre as Duas Alm as, portanto vinte anos antes do prim eiro tratado anti- pelagiano11, o que significa que o tratam ento de pecado com o m iséria, result ado trágico do pecado original, teria sua origem bem antes da oposição de Pelágio contra a doutrina agostiniana da graça. Adem ais, o tratado Sobre as Duas Alm as antecede as Confissões em quase dez anos, o que aponta para o fato de que a im potência da vontade de “ querer querer” ( livro VI I I das Confissões) j á estava dada, ainda que não plenam ente desenvolvida, na polêm ica m aniqueia. Evidentem ente, o segundo m om ento será, em nossa dissertação, apenas anunciado e pressuposto no estilo confessional, que j á se m ostrava no t ratado de 392. Assim , não avançam os para a análise cerrada de textos que descrevem a vontade cindida, visto que im plicaria a análise de obras da m aturidade de Agostinho, bem com o o exam e das ricas páginas

9 cf. J. L. Marion.Au Lieu de Soi. L’approche de saint August in. 2008, p. 235 10 idem , p. 239

(21)

do m om ento de sua conversão descritas em Confissões VI I I . O intuito é apenas identificar o quanto os dois tratam entos de pecado estão im bricados e devem ser entendidos m ais com o continuidade do que ruptura.

Há, defendem os, m ais a pensar nos textos contra os m aniqueus do que declividade do ser. Em sum a, a tragicidade do pecado com o elem ento inerente à m iséria é carregada desde sua experiência gnóst ica m ais profunda ( o que lhe valeria críticas fut uras de Juliano de Eclano, que lhe acusaria de nunca ter superado o efeito trágico da gnose) . Pretendem os a partir do tratado Sobre as Duas Alm as (De duabus anim abus, 391) , descrever com o Agostinho assum e a noção neoplatônica sobre a natureza da alm a, retendo o que conceitualm ente lhe interessa, com o, por exem plo, a interioridade e a substância incorporal da alm a; m as, quando da inclusão do pecado e da falibilidade da vontade da alm a, o aparato neoplatônico, possivelm ente recolhido em Plotino, encontrará seu lim ite na teoria da progressão da alm a intelectiva à segunda hipóstase, a I nteligência (Nous) , exigindo adequação aos conceitos intuit ivos de pecado e vontade. Essa é um a obra privilegiada para traçar os aspectos da natureza da alm a, ao passo que desvela a condição finita do hom em no quadro particular do pensam ento ético daquele que quer conhecer tanto a si m esm o quanto o que lhe transcende. Poderem os encontrar o hiponense “ lutando” contra a gnose e desenvolvendo novos conceitos para ant igos problem as.

(22)

considerado na m issão tem poral de discernir e valorar naturezas apreendidas12 (percipi) e que obriga o filósofo a produzir conceito13.

Esse dado perm itirá explorar tanto as m arcas profundas14 que os escritos contra os m aniqueus im prim iram no filósofo, quanto reconhecer o m anej o perspicaz de sua t radição filosófica.

DI V I SÃO

Dividirem os este trabalho em duas partes: a prim eira sit ua a polêm ica sobre “ as duas alm as” a partir das Confissões, I I I ,1- 7, passando por trechos do livro V e VI I , com o obj etivo de levantar a referida questão m aniqueia em plano geral e explorar o pano de fundo da gnose que atraíra o j ovem estudante de retórica em Cartago. Em seguida, analisam os em porm enor o tratado de 392, Sobre as Duas Alm as, a fim de verificar com o Agostinho recoloca a angúst ia interior da gnose em novos m oldes conceituais.

Propom os quatro m ovim entos para análise de Sobre as Duas Alm as:

1) Vida e alm a: I ,1 – I I ,2

2) Discernindo as nat urezas. I I I ,3 – VI ,8 3) Ontologia e m oral: VI I ,9 – XI I ,18

4) Unidade e falibilidade da alm a: XI I I ,19 - XV,23

12 cf. Gn. c. m an. I I ,9,12

13 a experiência do pecado ant ecede o conceit o; cf. Ricoeur, consult ar nossa seção ‘Verdade e m it o’.

14 cf. Markus, Robert . “ I t is undoubt edly linked wit h his conversion from

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Pretendem os dem onstrar nesse tratado com o o filósofo reconduz estrategicam ente a discussão para o cam po da interioridade hum ana, associando vida e alm a com o bens com preendidos pelo intelecto e irredutivelm ente verdadeiros ( 1) para que, em seguida, a alm a possa passar a j ulgar os valores das nat urezas apreendidas e, assim , organizá- las internam ente ( 2) . Agostinho procura derruir o dogm a m aniqueu a partir de definições intuitivas de vontade e pecado ( 3) ; e ao descobrir a absolut a indeterm inação da vontade com o único elem ento do m óbile hum ano, convoca a teoria das “ partes da alm a” , segundo a tradição neoplatônica, para pensar o pecado com o cisão da m ente intelect iva ( 4) . Ao final, o esforço de reconhecer ontologicam ente a alm a com o una – m om ento em que pecado é definido com o estado negativo de ser - deve considerar a cisão original e supra individual: “ um involuntário instalado no seio do voluntário”15. Finalm ente, cria- se oportunidade para pensar a relação possível entre verdade e confissão.

Antes de analisarm os as Confissões e Sobre as Duas Alm as, com o intuito de esclarecer nossa leitura, apresentam os dois estudos propedêuticos ao exam e da questão das “ duas alm as” em Agost inho: prim eiram ente, referim os o com entário Sobre o Genêsis contra os Maniqueus I I ,9,12 ( 388/ 9) com o propósito de situar, com o ponto de partida de nossa dissertação, a alm a criada e ordenada em sit uação m ediana entre coisas sensíveis e inteligíveis. Em seguida, recorrem os ao estudo de Paul Ricoeur16, a fim de fundam entar nossa proposta de

15 Ricoeur, P. O “ pecado original” : est udo de significação, I n O conflit o das int erpret ações. Ensaios de herm enêut ica. Port o: Res Edit ora, 1989, p. 281

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leitura que parte do entendim ento de dois tratam entos para a noção de pecado.

SI TUAÇÃO M ED I AN A D A ALM A.

CF. COMENTÁRI O DEGÊNESI S CONTRA MANI QUEUS I I ,9,12

De partida, a alm a, em situação m ediana, atribui um peso m oral do qual não se pode escapar17. Vej am os, pois, um texto

inserido no corpus das obras antim aniqueias, datada do m esm o período do tratado, Com entário sobre o Gênesis contra os Maniqueus ( 388/ 9) . Ali, a alm a, única responsável por realizar os m ovim entos em direção aos obj etos sensíveis e inteligíveis, deve dirigir- se ao puro ser, sem , contudo, deixar de ut ilizar (uti) as coisas corporais:

Mas a árvore da vida plantada no m eio (m edio)18 do

paraíso significa aquela sabedoria pela qual é preciso que a alm a entenda que está ordenada em situação interm ediária (m editullio) entre as coisas, pois, em bora tenha subordinada a si toda a natureza corpórea, a alm a entende que tem acim a de si a natureza de Deus. Portanto, que a alm a não se desvie para a direita, atribuindo a si o que não é, nem para a esquerda,

17 E. Gilson ressalt a que a quest ão ét ica perm anece unida à m et afísica de

Agost inho. Cf: “ Assim , a ant ropologia e a psicologia de sant o Agost inho est ão suspensas por um a m oral que lhes confere a razão de suas caract eríst icas essenciais. Num a dout rina desse gênero, um a vez que o hom em é ant es de t udo sua alm a, algum as operações poderão ser at ribuídas propriam ent e ao hom em , ainda que som ent e a alm a t om e part e nelas.” Gilson, E. I nt rodução a Sant o Agost inho. 2007, p. 99.

18 Madec t raduz por “ m itan” . I n “ Diagram m e August inienne” Volum e 25, I ssue 1/ 2,

(25)

m enosprezando por negligência o que é. Com efeito, esta é a árvore plantada no m eio do paraíso19.

Na verdade, trata- se de m anej ar o cam po de ação m oral em estreita relação com o pensam ento20. A vida m oral se dá pelo

m ovim ento da alm a, cuj a vontade necessariam ente livre dirige o hom em sem qualquer constrangim ent o, tanto em direção a isso ( inteligível) quanto àquilo ( sensível) . Não há sustentação m oral sem im ediata relação do agente com os obj etos de desej o.

Na exegese alegórica que Agost inho faz do Gênesis, a “ árvore da vida no m eio do paraíso” significa que “ a alm a está ordenada no m eio das coisas” , o que significa que a tarefa essencial da natureza hum ana parte de sua condição interm ediária na ordem hierárquica das coisas criadas. O lugar naturalm ente ordenado da alm a, desde a criação, é no m eio da criação (ordinata in m editullio) , de onde surge o desafio ou a responsabilidade de não se m enosprezar, rebaixando- se às coisas sensíveis, pois a alm a não é de natureza corpórea; nem se arrogar m ais inteligível do que realm ente é, porque a int im idade com Deus não resulta em que o hom em sej a Deus21.

Então, “ não ir à esquerda negligenciando o que se é ( quod est)” significa não t om ar as representações sensíveis com o fator de naturalização e verdade. E “ não atribuir a si o que não é” significa não arrogar que a alm a part ilhe da m esm a natureza de Deus. Com

19 Gn. c. m an. I I , 9, 12. Lignum aut em vit ae plant at um in m edio paradisi,

sapientiam illam significat , qua oport et ut intellegat anim a, in m editullio quodam rerum se esse ordinat am , ut quam vis subiect am sibi habeat om nem nat uram corpoream , supra se t am en esse int ellegat nat uram Dei: et neque in dext eram declinet , sibi arrogando quod non est ; neque ad sinist ram , per neglegent iam cont em nendo quod est : et hoc est lignum vit ae plant at um in m edio paradisi.

20 A. I . Bout on- Touboulic com ent a sobre est a passagem : “ A ordem é

inseparavelm ent e ont ológica, noét ica e ét ica” . I n: B. A. 50; p. 71.

(26)

efeito, há um a j usteza fina onde a alm a deve se posicionar e, diferentem ente de todos os outros seres, que não escolhem o lugar onde estão, pois é natural que se conform em à sua m edida, ao hom em é dada possibilidade de m obilidade “ ontológica” , o que por si estabelece um estat uto de liberdade de partida, visto que perm anece sem pre a opção de declinar- se do eixo da ordem natural.

Contra a gnose, Agostinho vai explorar principalm ente a dinâm ica dessa declinação, que não passa de um a falácia do espírito. Quando a alm a “ abandona o bem ” , alim ent a- se do que é m ut ável com o se o alim ento fosse im ut ável. O problem a, pois, não é o alim ento sensível em si, m as a ilusão de que o sensível sej a a própria nutrição espiritual. A crítica de Agostinho dirige- se para esse m ovim ento enganoso no interior da alm a, pelo qual se pretende que a im agem fantasiosa (phantasm ata) sej a o verdadeiro alim ento, visto que o sofism a m aniqueu transform a as j ustas representações sensíveis (fantasias) em desordenadas ilusões. O que pode parecer derruidora crítica aos sensíveis, é m ais um a análise do engano ou do ato da alm a enganar- se.

(27)

“ natureza da alm a em sua j usta ordenação” (ordinat as integritas naturae)22.

Não se trata som ente de engano da capacidade raciocinante, no sentido de um a confusão m ental de ordem exclusivam ente dialético- racional. Há um a “ fruição” fora do lugar, pois, ao tom ar para si o que é próprio ao divino, o hom em cai em soberba (superbia) , adentrando num a difícil condição. Ora, se a soberba é alim entada, há um interesse do hom em que em erge de um ganho m om entâneo23.

A condição de autoposicionam ento de si em relação à ordem é um a tarefa relacional, ou sej a, a alm a deve “ aprender por experiência” , percebendo e internalizando as coisas que a rodeia.

E no m om ento deste pecado (superbia) a pena que segue é que a alm a deve aprender por experiência qual a diferença entre o bem que abandonou e o m al em que caiu.24

E se cabe ao hom em “ aprender pela ‘experiência’ (experiendo discit) a distância entre inteligíveis e sensíveis” , há ao m enos dois passos im portantes: prim eiro, a alm a deve discernir seus m odos de percepção; segundo, a alm a deve aprender as razões pela qual aj uíza e qualifica as representações.

A m issão hum ana é conhecer a si m esm a. Após a queda, tem de partida o desafio de “ entender que a alm a está ordenada no

22 Cf. Gn. c. m an. I I , 9, 12.

23 Consult ar Gilson, Et ienne. O Espírit o da Filosofia Medieval. 2006. O est udioso

reconhece em Agost inho a m esm a est eira socrát ica do oráculo de Delfos. “ Para se conhecer é necessário pôr- se em seu devido lugar ( ...) no fundo est e é o verdadeiro sent ido do preceit o de Sócrat es” , p. 286.

24 Gn. c. m an. I I , 9, 12. Et cum hoc eius peccat um poena fuerit consecut a,

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m eio das coisas”25, entre sensíveis e inteligíveis. Essa situação

interm ediária é o cenário pelo qual a alm a deve exercitar sua capacidade raciocinante para a reconciliação com o Bem abandonado. Entenda- se que há dois m odos de m ovim entar- se para os sensíveis. Um é j usto e com põe a trilha de ascensão a Deus; o outro é falacioso. Assim , “ cair no m al” não é o m esm o que m over- se para baixo, pois o baixo não é idêntico ao m al. O que é m al é ser absorvido pela ilusão de que o baixo sej a alto. Ora, Agostinho terá que contrapor tal confusão m ental à perspicácia (acies m entes) m aniqueia.

Com o desvencilhar- se de tal engodo? Com o, por fim , executar a tarefa de reconstituição de um a natureza capaz de j ulgar e ordenar internam ente as criaturas e, assim , reordenar- se em acordo (convenientia) com o Criador? Buscará a hom ologia estoica26

com o a concórdia da razão reflexiva à natureza, onde a vida sej a necessariam ente um a vida de deveres ordenados segundo o cálculo da razão? E o pecado, que insiste em “ m ilitar contra nós m esm os” ? Com o entendê- lo? São questões que serão colocadas por Agostinho ao longo da polêm ica contra os m aniqueus. O proj eto não é pequeno, com o bem indica o teor dos questionam entos. E nem poderia ser, se o que se alm ej a é com bater as questões levantadas pela gigantom aquia gnóstica. Agost inho enfrentará as dificuldades tanto com inteligência quanto com honestidade: m arcas de um filósofo que se viu constantem ente envolvido pelos problem as que investigou.

VERD AD E E M I TO: A GN OSE AN TI-GN ÓSTI CA

Foi talvez Paul Ricoeur quem m elhor t raçou as linhas de forças da questão da m ilícia interior no contexto do m ito da origem

25 idem , qua oport et ut int ellegat anim a, in m edit ullio quodam rerum se esse

ordinat am

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do pecado. O herm eneuta propõe um “ estudo de significação” , cuj a intenção é elucidar as “ m otivações profundas” da elaboração de um conceito por trás de um m ito, o pecado original no caso. Diz que “ refletir sobre a significação é, de certa m aneira, desfazer o conceito, decom por as suas m otivações por um a espécie de análise intencional”27. Mas o que parece ser um procedim ento derruidor, “ desfazer o conceito” , é tam bém reencontrar os m otivos que dirigiram a produção de sentido e significado; em um a palavra, abrir o sím bolo que antecede a racionalização do m ito. Assim a narrativa da ficção m ít ica descola da história, m as não basta, diz Ricoeur: “ excluir o m ito da história, é preciso retirar dele a verdade que não é histórica”28. Agostinho, assim , teria sido o prim eiro a elaborar o conceito do pecado original, ao passo que teria com preendido e m antido a riqueza da verdade m ít ica do m al dej á lá29, reposicionando a questão à partir da releitura paulina do m ito adâm ico ( cf. apóstolo Paulo, Rom anos 5,12 e 1930) . Em outras palavras, trata- se de explorar a verdade para além dos lim ites da linguagem racional e reconduzir- se à verdade cont ida no sím bolo m ítico e escondida com o “ linguagem cifrada” , isto é, “ inexprim ível em linguagem direta e clara” . Assim , o m ito aparece com o linguagem “ m ais profunda” que dá acesso à experiência prim ordial da condição hum ana. Ao recusar a linguagem especulativa, nos deparam os, diz Ricoeur, com os m itos que são: “ não um a falsa explicação por m eio de im agens e fábulas, m as um a narrat iva tradicional, que se refere aos eventos que

27 cf. Paul Ricoeur. O “ pecado original” : est udo de significação, I n O conflit o das int erpret ações. Ensaios de herm enêut ica. Port o: Res Edit ora, 1989, p. 265

28 idem , p. 279 29 idem , idem

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aconteceram no início do tem po”31. O pecado original conteria o

m istério da linguagem cifrada, com o alternat iva de expressão da linguagem para o acesso de significações da iniquidade praticada. É um a tentativa de alcançar o ponto em que a linguagem explicativa não consegue chegar.

Por isso, para o herm eneuta, torna- se im portante voltar aos sím bolos dos m itos da origem do m undo e da origem do pecado. No caso do m ito gnóstico- dogm át ico, trata- se de expor o “ pseudo- saber” para elucidar o “ verdadeiro sím bolo” . Ricoeur tom a com o hipótese de trabalho que o pecado original tenha dupla caracterização no pensam ento do hiponense. Por um lado, o conceito seria “ anti-gnóstico” nos seus fundam entos m etafísicos; por outro lado, diz: “ a teologia do m al deixou- se conduzir para o próprio terreno da gnose e deste m odo elaborou um a conceptualização com parável à sua” . Portanto, um a “ gnose anti- gnóst ica” .

Agostinho teria assum ido o “ m esm o im pulso da gnose” ao tom ar a questão do m al com o saber. Assim , o pecado original, com o m ito racionalizado da origem do m al, é saber e conceito e, diria P. Ricoeur: é quase gnose ( com o se fosse gnose) , ou gnose anti-gnóstica. É gnose, na m edida em que aceita a agenda gnóstica e conceitua ( racionaliza) o m ito da origem do m al com o pecado original, m antendo o enunciado de um m al dej á lá com patilhado e universal ( cf. Rm . 5 todos pecaram em Adão – om nes pecauerum in Adam32) , m as ant i- gnóstico nas form ulações de fundo m etafísico, a

saber, “ o m al não tem natureza, o m al não é qualquer coisa; o m al não é m atéria, não é substância, não é m undo. Ele não é em si, é nosso” .

31 idem , p. 279

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Seguir toda argum entação de Ricoeur pelos textos agostinianos dos quais o estudioso retira suas interpretações seria abrir um a invest igação que ultrapassaria o obj etivo dessa dissertação. É suficiente, para nosso interesse, m arcar dois tratam entos da questão do m al no contexto da significação do m ito do pecado original. I . Bochet traça um a linha que divide o artigo em dois m om entos: ét ico e trágico. O prim eiro se dá no quadro dos textos anti- m aniqueus, enquanto que o últim o nos textos contra Pelágio33.

No sentido ético, podem os entender a questão a partir de m otivações de fundo “ apologéticas — para com bater a gnose“ , pelo qual a teologia crist ã teria sido levada a “ inscrever- se sob o m odo de pensam ento gnóst ico” . A fim de com preender m elhor tal proposição, central no artigo, Ricoeur explicita e sintetiza a questão do m al com o exterioridade:

Se a gnose é gnose, isto é, conhecim ento, saber, ciência, é porque, fundam entalm ente — com o o têm m ostrado Jonas, Quispel, Puech e outros —, o m al é para ela um a realidade quase física, que investe de fora contra o hom em ; o m al está fora; é corpo, é coisa, é m undo, e a alm a foi encarcerada dentro; esta exterioridade do m al fornece im ediatam ente o esquem a de um a qualquer coisa, de um a substância que infecta por contágio34.

A form ulação cosm ológica e exterior do m al, segundo a gnose, faz do exterior um a potência capaz de tom ar a força a alm a interior. O m al chega em nós com o substância, com o se fosse algo físico, para englobar a alm a. Adm itindo, adem ais, a existência do dogm a das duas alm as, o m al chega não é m ais o m undo de fora, e sim a própria alm a, no seu polo oposto, a alm a m á. Nesse quadro, “ o

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m al é a própria m undaneidade do m undo”35 e m undo é a alm a. Se,

pois, o m al é espelhado na realidade aním ica de um a alm a m á, entende- se m elhor o que sej a “ pecado com o destino interiorizado” , ou com o referim os, um a tragicidade aním ica.

Por aí, percebe- se que, talvez, I . Bochet é rígida dem ais na dem arcação do artigo de Ricoeur, pois o que o fenom enólogo pretende é encontrar na tragicidade do m ito gnóst ico o pano de fundo da discussão pelagiana. Afirm a: “ A int enção do pseudo- conceito do pecado original é então: incorporar à descrição da vontade m á, tal com o ela é elaborada contra Mani e a gnose, o tem a de um a quase-natureza do m al”36.

No sentido trágico do pecado original, im porta descobrir o sentido de “ original” . A prim eira resposta de Agostinho tinha conduzido a origem do pecado para a vontade e para dentro do hom em . Mas essa é um a resposta provisória, pois um a nova form ulação é requerida quando se t rata de relacionar pecado e culpabilidade em ergidas da experiência m oral fracassada.

A vontade define o pecado, m as não explica a sua origem . A segunda resposta aparentem ente retrocede a prim eira: o pecado parece ter um a origem involuntária, ou m elhor, um a origem voluntária com partilhada, portanto, supra individual. Desse m odo, o conceito do pecado original est á fundado num paradoxo m isterioso e, agora, “ o m al é um a espécie de involuntário no seio do próprio voluntário” .37

A tragicidade do pecado na gnose é o inverso do m ovim ento de com eço individual, “ o inverso da declividade38 individual” .

35 idem , p. 269

36 idem , idem

37 Ricoeur, opera cit ., p. 281.

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se com preender a perpetuação do pecado, um a continuação do defectus da vont ade com o um tipo de “ tara hereditária” transm itida a todo o gênero hum ano por um prim eiro hom em , ancestral de todos os hom ens: “ cada um de nós tam bém o encontra ( m al) , encontra- o dej á lá, em si m esm o e fora de si, antes de si. Para toda a consciência que desperta para a assunção de responsabilidade, o m al é dej á lá” .

Destarte, Ricoeur identifica Agostinho com o o responsável pela conceptualização do pecado original com o m ito racionalizado. Mas, segundo o herm eneuta, a crít ica ao procedim ento racional do filósofo cristão não esconde a genialidade do criador do conceito. Reconhece- se que o bispo teria ent endido m elhor o m istério do pecado do que Pelágio. Teria com preendido m uito bem o que há de espantoso nessa m iséria- doença (m iris m orbis) , decifrando- a na linguagem em otiva da confissão. Refere que a “ m iséria antecede a consciência” e, portanto, não pode ser analisável exclusivam ente pelas faltas particulares nem pelo pensam ento especulat ivo.

Ricoeur conclui que no m istério do pecado reside, sem dúvida, “ o m istério últ im o do pecado: nós com eçam os o m al, por nós entra o m al no m undo, m as com eçam os o m al apenas a partir de um m al dej á lá, de que o nosso nascim ento é o sím bolo im penetrável”39

Dados os dois planos, eticidade e tragicidade, que envolvem a noção de pecado, partam os para a leitura do Sobre as Duas Alm as, a fim de esclarecer o m odo pelo qual Agostinho m anej a, talvez pela prim eira vez, os dois planos do problem a da relação entre pecado e culpabilidade. I m porta esclarecer que não pretendem os buscar geneticam ente a origem do conceito do pecado original. Trata- se de perceber e explicitar as linhas de forças da questão e recuar para o

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contexto e experiência que o próprio autor ofereceu e associou ao conceito.

Out ra im bricação: ont ologia e m oral

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PARTE I A QUESTÃO M AN I QU EI A N AS CON FI SSÕESI I I

I niciam os, assim , nossa leitura do livro I I I das Confissões com duplo interesse, buscando as nuances da im bricação de duas noções de pecado: com o ser ( ou ausência de ser, defectus da vontade individual) e com o m iséria ( herança de um a im potência) . Verem os na parte final com o vont ade, pecado e culpabilidade desem bocam no problem a da existência da alm a m á, reconduzindo à análise do tratado de 392.

I,1 O CON TEX TO PASSI ON AL D A QUED A (I TAQU E I N CI D I)

A partir do livro I I I das Confissões, Agostinho descreve a form ação intelect ual40 com o j ovem estudante de retórica em Cartágo.

Ocorre o prim eiro encontro com a seita gnóstico- cristã, logo após a im pactante leit ura do protréptico de Cícero41. O trecho que m arca a sua adesão à seita gnóstico- cristã encontra- se em Confissões I I I ,6,10 e estende- se até V,14,25. A descrição m inuciosa circunscrita nesse longo trecho do livro é proporcional ao próprio tem po em que Agostinho havia perm anecido int im am ente vinculado ao dogm a de Mani. São nove anos os quais Agost inho retom a a fim de expor os m otivos e desej os que cercaram tal peregrinação.

Em I I I ,6,11: “ E assim , caí no m eio de hom ens orgulhosam ente delirantes” .42 Essa pequena sentença pode indicar dois m om entos que divisam o livro. O prim eiro refere- se aos m otivos que atraíram Agostinho ao m aniqueísm o. O conectivo “ assim ” ( itaque) rem ete ao contexto anterior e deixa claro que a queda no

40 Consult ar Breyfrogle, T I n: PAFFENROTH, Kim , & KENNEDY, Robert Pet er. A Reader's Com panion t o August ine's Confessions. 2003.

41 cf. conf. I I I ,5,9

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m eio dos m aniqueus ( incidi in hom ines superbe delirant es) não é acidental no seu it inerário de form ação intelectual- espiritual.43 Há,

pois, pelo m enos duas possibilidades de contextualização: a prim eira, aquela im ediatam ente ao texto anterior ( parágrafo 9) , refere- se a soberba que im pede a adesão à fé cristã, na m edida em que o estilo sim ples das Escrituras é preterido pelo estilo grandioso de Cícero. Esta opção tem a t endência de reduzir toda a questão da adesão ao m aniqueísm o à exegese e estilo dos volum es escriturísticos. A segunda possibilidade de retom ada contextual parece m ais plausível, pois retrocede à descrição da tensão entre paixão e com paixão desde as prim eiras linhas do livro I I I , passando pelo desej o das ficções teatrais ( cap. I - I I ) , pelo am biente com petit ivo dos estudos liberais ( cap. I I I ) e pelo conteúdo protréptico- filosófico do Hortênsio de Cícero44 ( cap. I V) .

Se tom arm os por base a questão m aniquéia com o eixo tem ático do livro I I I , é possível analisar o livro a partir da seguinte divisão:

• Contexto da queda 3.1.1 – 3.5.9

o As paixões e os espetáculos ( m iséria- m isericórdia) o O protréptico de Cícero, Hortênsio. Prim eria exortação

à cura da alm a pela filosofia

o O “ nom e de Cristo” . Conj unção entre afeto

( m isericórdia) e sabedoria

43 Ut ilizam os o t erm o espirit ual em sent ido de com plet ude, am pliando o usual t erm o “ form ação int elect ual” , a fim de aprofundar o ser do hum ano, que abarca e supera sua int elect ualidade. Para um a análise dos ‘at rat ivos’ do m aniqueísm o ao j ovem Agost inho, bem com o as causas de afast am ent o, consult e- se CAMBRONNE, Pat rice. August in et l'Église : Jalons d'un it inéraire Not es de lect ure (Confessions, I I I - I V, 10) . I n: Vit a Lat ina, N° 115, 1989. pp. 22- 36

(37)

• A queda. 3.05.09 – 3.7.11:

o 3.6.10 A queda nas palavras, e necessidade de

superá-las

o 3.6.11. Os degraus da “ descensão” .

o Anterioridade do am or. (interior int im o m eo) o Regio dissim ilitudinis

o Caso das ficções.

• 3.6.12. ( V,10,18) . Ontologia e experiência m oral.

o Verdade e ser (vere quod est et privat io boni) . o Pecado e culpabilidade. Confissões V,10,18.

o Apresentação do dogm a gnóstico das duas alm as.

Desde j á, no contexto da ‘queda m aniquéia’, a divisão ensej a afastar da análise certa interpretação do período m aniqueu de Agostinho com o questão reduzida à ontologia. Na verdade, o problem a do m al e sua posterior solução (privat io boni) são precedidos de um laborioso desenvolvim ento de Agostinho acerca da possibilidade de distinção entre verdade e falsidade a partir dos dados da exterioridade. Sabe- se bem que tal tem át ica aparece de m odo m uito evidente em diálogos da j uventude com o, por exem plo, nos Contra Acadêm icos ou Solilóquios. E nas Confissões I I I , a nosso ver, Agostinho tem de novo o tem a da verdade e falsidade colocado a sua frente, m as em outro registro.

(38)

Agostinho explicit a suas paixões, em ergidas dos espetáculos, e as contrapõem à pura paixão encarnada, a m isericórdia de Cristo. Elabora- se a reflexão a partir da problem atização do binôm io m iséria e m isericórdia, onde a m isericórdia ou com paixão hum ana é apresentada com o elem ento de sem elhança e distância da pura m isericórdia, só encontrada no nom e de Cristo.

Agostinho com eça pela crítica das m isérias suscitadas pelos espetáculos teatrais45 ao afirm ar: “ Arrebatavam - m e os espetáculos teatrais, cheios de im agens das m inhas m isérias e de alim ento próprio para o fogo das m inhas paixões”46. O hiponense traça um corte preciso para aprofundar o entendim ento entre as relações possíveis do sofrim ento e os fundam entos éticos dos m óbiles das ações hum anas. De início, note- se que a im agem é m edicinal e a associação da m iséria e m isericórdia com doença, loucura, ou saúde não é acidental; ao contrário, oferecerá im portante chave de leitura das linhas que seguem . As paixões em ergidas dos espetáculos teatrais, longe de reverterem em m isericórdia e com paixão ao sofredor, apenas produzem deletério prazer por dor e sofrim ento da cena teatral, inflam ando ainda m ais o fogo de sua m iséria, ou doença da alm a. A busca pela com preensão dessa doença leva Agostinho a descrever o deleite pela dor encenada. Agostinho quest iona- se:

45 O´ Donnell enfatiza o t em a da curiosit as com o o t em a cent ral do livro e principal fat or da queda no m aniqueísm o. Apesar da palavra est ar ausent e no t ext o, insist e na recorrência no de vera relig. 52. Cont rariam ent e, G. Madec e Theiler ( apud O´ Donnell) seguem a t em át ica do im pact o sobre as paixões e em oções: “ G- M, Theiler P.u.A. 60, and BA all at t em pt t o sit uat e t his t ext in t he t radition of ancient discussions of t he em ot ional im pact of t he t heat er. ( ...) ” . A que O´ Donnel obj ect a: “ Dom inant is surely his own not ion of t he connect ion t o curiosit as” .

I n: ht t p: / / www9.georget own.edu. Aqui, livro I I I , seguim os a t em át ica do im pact o em ocional do t eat ro, no ent ant o, parece ser plausível a relação dos espet áculos t eat rais e a curiosit as, principalm ent e no livro VI quando do episódio da at ração de Alípio aos “ espet áculos dos gladiadores” cf. conf. VI ,8,13

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Mas por que quer o hom em condoer- se ao ver cenas dolorosas e trágicas, quando de m odo algum deseja suportá- las? Todavia, o espectador anseia por sentir esse sofrim ento, que, afinal, para ele constitui um prazer. Que é isto senão um a m iserável insanidade ( m iserabilis insania) ? 47

Há um deslocam ento de perspectiva. Os espetáculos e as tragédias que Agostinho assist ia quando j ovem não eram tão surpreendentes quanto aquele cenário que em ergia de sua interioridade. A vil fruição da dor que não se m ove em auxílio ao sofredor expõe a clausura do prazer que não transcende a si m esm o. Assim , o prazer pelo prazer não com ove a alm a do espectador a auxiliar o sofredor, apenas interessa- lhe a fruição de assistir fora o que não quer ver dentro ( introspecção)

Em A Verdadeira Religião ( 391) , Agostinho descreve o “ espetáculo eterno” com o o recolhim ento na alm a de todas as coisas por recordação, a fim de adm oestar o espectador a contem plar a “ prim eira beleza perdida” para a qual tudo converge em harm onia ( convenient ia) prazeirosa:

Aquele que se deleita com o espetáculo da verdade im ut ável, não se at ira de cim a de seu corpo, isto é, das coisas visíveis, para conhecer coisas tem porais e interiores. O que há pois que não possa servir de recordação à alm a daquela prim eira beleza perdida, quando até seus próprios vícios o fazem ?48

Surpreendentem ente, até a história dos vícios servirá de tinta ao art ista que coordena (ordinata) seus eventos com o

47 conf. I I I ,2,2 Quid est , quod ibi hom o vult dolere cum spect at luct uosa et t ragica, quae t am en pat i ipse nollet ? Et t am en pat i vult ex eis dolorem spect at or et dolor ipse est volupt as eius. Quid est nisi m iserabilis insania?

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pinceladas im pressas na alm a49, pois se alguém “ questionar acerca

do prazer, nada encontrará a não ser a convenientia”50. Não se trata

do prazer pelo prazer, m as do prazer com o transcendência, com o passagem por via contem plativa e confessional, afinal o contraste entre a beleza im anente à alm a e o vício dos prazeres revelam a diferença do “ não sou idênt ico a sum a convenitent ia” (Confitere te non esse quod ipsa est) . O term o “ convenientia” , traduzido frequentem ente por harm onia, rem ete a ordem segundo a razão, um acordo de todas as coisas que convergem para a com pletude de tudo que existe. De sabor evidentem ente estóico, o enunciado deixa claro, porém , que a “ sum a convenient ia” não se ident ifica à razão; de fato, o ser que está em perfeito acordo consigo m esm o não se encerra na razão, m as está para além dela. Nesse contexto, a transcendência da alm a não se dá por identidade, m as por atestação da diferença:

Reconheça portanto o que sej a a sum m a convenientia. Não vás para fora, m as voltes para dentro ; no interior do hom em habita a verdade ; e se encontras a m utabilidade na tua natureza, transcenda a t i m esm o. E em transcendendo a t i m esm o, não se esqueça que transcendes a alm a que raciocicina51.

Desse m odo, a hist ória pessoal do vício (vit ium) expõe um a realidade interior m utável, quando com parada à verdade im utável inerente à alm a.

Quase dez anos depois, Agostinho dá cont inuidade ao proj eto de ascensão por revisão interior do próprio prazer. Analisando o prazer do espectador do teatro (histrionis) , ele diz :

49 Cf. vera relg. XXXI V,72 I t a per hanc sum m us ille art ifex opera sua in unum finem decoris ordinat a cont exuit .

50 I dem . Quaere in corporis volupt at e quid teneat , nihil aliud invenies quam convenientiam : nam si resist ent ia pariant dolorem , convenient ia pariunt volupt at em .

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Daí o m eu am or pelas dores, m as não pelos que m e atingissem profundam ente, pois eu não desej ava suportar as dores que am ava contem plar; as ficções que eu via e ouvia tocavam - m e a superfície da alm a 52.

Tal crítica aos desej os provindos das ficções parece passar m enos pela exclusão das paixões ( ataraxia) do que pela incapacidade de intensificá- las na interioridade. A m era fruição do espectador im pedia a introspeção de um sofrim ent o ainda m aior e m ais real. Não por acaso, aquelas tragédias hum anas encenadas apenas “ tocavam superficialm ente” (raderent superficie) o problem a do seu sofrim ento, tangenciando e ocultando as profundezas do sofrim ento pessoal de quem apenas assist ia ao sofrim ento alheio. A superficialidade narrada da j uvent ude é recuperada na alm a, pelo exercício confessional, a fim de penetrar na int erioridade desse evento. O cenário interior que Agostinho quer ver e retratar nas Confissões parece ser, desde o início, um proj eto de intensificação passional. Note- se tam bém , assim com o sugere Breyfogle53, que Agostinho, ao tecer a crítica à

superficialidade do espectador, alm ej a despertar o espírito do seu leitor, dentre os quais m uitos m aniqueus54, pelas descrições de suas dores e am ores que, por exem plo, se intensificarão no episódio do luto pelo am igo55, com o estratégia literária de criar credibilidade e em patia ( por testem unho e atestação)56 com o seu leitor.

Sem entrar na questão da com unicação dos conteúdos internos de um a consciência a outra, im porta notar que Agostinho

52 conf. I I I ,2,4 Et inde erant dolorum am ores, non quibus altius penet rarer ( non enim am abam t alia perpet i, qualia spect are) sed quibus auditis et fict is t am quam in superficie raderer. Tradução Maria J.L. Am arant e

53 Breyfogle, T. I n: PAFFENROTH& KENNEDY. A Reader's Com panion t o August ine's Confessions. 2003. p. 38

54 Sobre a audiência m aniquéia das Confissões, consult e- se KOTZÉ, Annem aré. August ine's Confessions: Com m unicat ive Purpose and Audience.; Bost on: Brill, 2004

55 conf. I V

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vislum bra dentro de si um cenário com posto pelas paixões que são ainda m ais intensas do que aquelas suscitadas pelas ficções cênicas. Pode- se dizer, então, que desse ponto de vista, Agostinho ensej a, nas Confissões, radicalizar a experiência passional ao seu lim ite

Até aqui, cum pre- se bem aquilo que fora anunciado no prólogo do livro I I . O bispo anunciava o proj eto de elevação da alm a por um itinerário retrospectivo, de “ retorno ao passado pelos antigos cam inhos” , a fim de experim entar o am argor de suas errâncias e consequente “ recom posição da dispersão para a unidade de si” . Essa “ unidade de si” passará pelo resgate dos desej os, puros e im puros, a fim de perm it ir ao filósofo o aprofundam ento das relações de diferença e identidade com seu criador, ou sej a, passará necessariam ente pela sua dispersão. O desej o pela dor com o fruição da carne é assim sintom a de um a doença, enquanto que a m isericórdia é o puro desej o que dignifica a presença do lam ento. A cura das paixões da alm a, no entanto, consiste m enos em procurar as causas de um prazer corporal do que exortar a alm a por um a tom ada de consciência da diferença entre unidade e dispersão, doença e saúde, m iséria e m isericórdia. Ou sej a, não se trata de um procedim ento diagnóstico que visa curar a si m esm o, m as de, pela consciência do pecado com o fruto de determ inação espiritual, poder aprofundar o conhecim ento de si pela análise de seus “ am ores por dores” . Para Agostinho, a cura é um horizonte, um encontro com a pura m isericórdia.

A estratégia que passa necessariam ente pela experiência pessoal, análise histórica da vida do errante, retira o pecado dos bastidores da tragicidade para um a at ividade que coloca lado a lado verdade e pecado57. Mas o cam inho do peregrino confessante é

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árdua, pois o pecado dos pecados, a soberba (superbia) , opera j ustam ente no ocult am ento da consciência a si m esm a. Agostinho, no entanto, não desespera: não grita, nem se cala; vê no exercício confessional um a possibilidade produtiva, da qual é possível alm ej ar a elevação.

Trata- se de buscar a superação de um a condição que faz o hom em “ andar em círculos com o peso da m orte e o testem unho do pecado” .58 A confissão abre essa circularidade fechada do pecado e

espera encontrar a presença divina out rora obnubilada no “ espetáculo eterno” da narrativa confessional:

Aquele que se alim enta interiorm ente com a palavra de Deus não procura no deserto desta vida o prazer( ...) Aquele que se deleit a com o espet áculo et erno da verdade im utável não se precipita de cim a de seu corpo, isto é, das coisas visíveis pelos olhos do corpo para conhecer coisas tem porais e inferiores.59

No livro I I I das Confissões, Agost inho parece m ontar aos olhos do espectador, ao seu leitor e a si m esm o, cenários que adm oestam tanto os olhos carnais quanto espirituais. O espetáculo tem poral é com preendido e interiorizado com o m em ória do pecado, isto é, passado presentificado e confessado à luz do espetáculo eterno.

O espetáculo terreno expõe a circularidade do pecado e revela um a presença velada:

Sem pre estavas presente em tua severa m isericórdia, entrem eando de am argos desgostos os m eus prazeres

58 conf. I ,1,1 et hom o circum ferensm ort alit at em suam , circum ferens t est im onium peccat i sui

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ilícitos, a fim de que eu aprendesse a procurar a alegria sem ofender- te60

Agostinho perscruta a história da ausência de si a si m esm o para descobrir a perene presença da m isericórdia. Obviam ente, busca- se pela prim azia do espiritual ou inteligível, o que não resulta na exclusão da percepção corporal; ao contrário, a proposta é j ustam ente traçar a história dos espetáculos, ou m elhor, a história do espectador em relação aos espetáculos encenados. Na linguagem do confessante: ” A recordação é am arga, m as espero sentir tua doçura, doçura que não engana, feliz e segura” 61 O retorno a si, ainda que

exponha os “ ant igos cam inhos” que o distanciaram da origem , pode ao final ser exatam ente o novo cam inho para um a revelação salutar: “ tu estas sem pre presente” , pois a sem elhança não se perdeu naqueles cam inhos. O espetáculo do pecado com o história m arcada pela espantosa doença da alm a (m iris m orbis), quando int eriorizada e presentificada, transform a em um m irabolante “ espetáculo eterno” .

I nsist im os, então, que a falácia m aniquéia a ser exposta não é tanto a do outro; m as a sua m esm a. Por diversas vezes, Agostinho declara- se, quanto ao m aniqueísm o, ser enganado e enganador62, de m odo que não há coerção que lhe sej a exterior. Resulta, que ser enganado é, ao m esm o tem po, enganar, e o polem ista que confessa verá a si m esm o no horizonte da bat alha. O cam po de batalha do polem ista cristão não é, pois, a doutrina, m as a interioridade daquele incidiu na falsidade.

A seguir, a m isericórdia verdadeira é identificada ao nom e de Cristo. Se ant es, Agost inho opõe m isericórdia divina, a pura

60 conf. I I ,1,1 Nam t u sem per aderas m isericordit er saeviens, et am arissim is aspergens offensionibus om nes illicit as iucundit at es m eas. Tradução de M. J. L . Am arant e

61 conf. I I ,1,1 recolens vias m eas nequissim as in am arit udine recogit at ionis m eae, ut t u dulcescas m ihi, dulcedo non fallax, dulcedo felix et secura.

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paixão, à fruição do prazer cênico; agora, no encontro com o Hortênsio de Cícero, busca ident ificar a sabedoria à m isericórdia verdadeira.

I,1 ,2 A FALSA E V ERD AD EI RA M I SERI CÓRD I A

Mas ao sofrim ento próprio cham am os ordinariam ente de m iséria; e à com paixão das dores alheias, m isericórdia. Que m isericórdia é essa dos assuntos fict ícios e cênicos, se não induz o espectador a prestar auxílio, m as som ente o convida à angúst ia e a aplaudir ao dram aturgo na proporção da dor que experim enta?63·

Prim eiro, um a questão de precisão de vocabulário. Miséria, aqui, refere- se ao sofrim ento, no uso com um da palavra, e m isericórdia alude à com paixão ao outro quando em sofrim ento. Agostinho, então, espanta- se com o próprio prazer na m iséria dos personagens fictícios: “ Mas, afinal, que com paixão ( m isericórdia) é essa das cenas fictícias do teatro?”64. A resposta é dada por contraste: Deus se com padece dos hom ens de um m odo m ais verdadeiro:

Essa m isericórdia é m ais verdadeira (verior

m isericordia) . E a dor, neste caso, não t ira dela prazer algum . Se é louvável aquele que por dever de caridade sofre com a m iséria alheia, quem é genuinam ente m isericordioso preferiria que não houvesse m otivo para sofrim ento. ( ...) . Portanto, Senhor m eu Deus, que

63 conf. I I I ,2,2 quam quam , cum ipse pat it ur, m iseria, cum aliis com pat it ur, m isericordia dici solet . Sed qualis t andem m isericordia in rebus fictis et scenicis? Non enim ad subveniendum provocat ur audit or, sed t ant um ad dolendum invit at ur et act ori earum im aginum am plius favet , cum am plius dolet . I nfelizm ent e, a t radução de ... não percebe o j ogo ent re m iséria e m isericórdia, saúde e loucura e t raduz m isericórdia por com paixão. Nossa t radução m ant ém o vocábulo m iséria e m isericórdia.

64 conf. I I I ,2,2 Sed qualis t andem m isericordia in rebus fictis et scenicis? conf.

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am as os hom ens, tua com paixão é m uito m ais profunda e m ais pura que a nossa, pois não está eivada de dor algum a. E quem estaria à altura de tal m issão?65

A exposição da falsa m isericórdia gerada pelas ficções teatrais serve para apresentar um cam inho de salvação dos desej os que por sua vez possa conj ugar o par sofrim ento e m isericórdia em subst ituição ao par sofrim ento e prazer.

Ao contrário da m isericórdia hum ana, a verdadeira m isericórdia não busca o sofrim ento com o fonte de fruição e deleite, m as aceita o sofrim ento na m edida em que entende que o reconhecim ento de sua presença é indicat ivo da ausência divina. A m isericórdia verdadeira em oposição à m isericórdia hum ana faz m ais do que expor a diferença entre divino e hum ano; de fato, introduz o tem a das paixões ao alcance do filósofo.

A introdução das paixões com o elem ento de ascensão do pensam ento, segundo E. Auerbach, é típica do período. Em seu ensaio, Gloria Passionis, o filólogo localiza na ant iguidade t ardo antiga o m om ento da elaboração da noção de passio com o “ sofrim ento e enlevo dialeticam ente relacionados” .66 I ntroduz- se, então, um sentido

65 conf. I I I ,2,3 Haec cert e verior m isericordia, sed non in ea delect at dolor. Nam et si approbat ur officio carit at is qui dolet m iserum , m allet t am en utique non esse quod doleret , qui germ anit us m isericors est ... Nonnullus it aque dolor approbandus, nullus am andus est . Hoc enim t u, Dom ine Deus, qui anim as am as, longe alt eque purius quam nos et incorrupt ibilius m isereris, quod nullo dolore sauciaris. Et ad haec quis idoneus?

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totalm ente novo ao pathos ant igo, pois sofrim ento e fervor não se atêm com o elem entos dist intos, m as estão dialeticam ente relacionados: “ o am or de Deus, que O levou a tom ar para Si os sofrim entos dos hom ens, é, ele próprio, um m otus anim i icom ensurável e ilim itado”67.

Este dado é de grande im portância para entender o que Agostinho está fazendo nas Confissões, pois se o hiponense recusara o choro que nascia do prazer eticam ente estéril das cenas teatrais68,

não negará adiante a m isericórdia verdadeira, cuj a dignidade reabilitará a legitim idade das paixões hum anas na elevação do hom em a Deus. Se o prim eiro m ovim ento recusava o prazer do choro provocado pelo ator, o segundo acolhe a com paixão e m isericórdia ao próxim o, a fim de fornecer à lam entação novo estatuto de dignidade ascensional.

A paixão é reposicionada com o elem ento restaurador de toda um a cadeia em otiva afetada pela errância. A paixão não é apenas um produto final de um rem odelam ento m oral; de fato, ela é o m eio pelo qual o peregrino abre cam inho para o retorno rum o a

de pert urbações, viver a t ranquilidade perfeit a da razão. Ao cont rário, a perfeição, segundo Am brósio, é alcançada som ent e por “ aquele a quem a carne não pode fazer volt ar da glória da paixão” (quem caro iam revocare non posset a gloria passionis) . Fugir do m undo, assim , não é fugir das paixões do m undo, m as da inj ustiça prat icada no m undo. A encarnação do Verbo é det erm inant e nessa passada, vist o que gloria passionis, para o período t ardo ant igo, é identificado ao “ sofrim ent o glorioso” do Crist o encarnado: paixão que t ant o sofre quant o enleva. Assim , segundo o aut or, sofrim ent o e fervor est ão conj ugados dialet icam ent e: “ o am or de Deus, que O levou a t om ar para Si os sofrim ent os dos hom ens, é, ele próprio, um m ot us anim i incom ensurável e ilim it ado ( p.81) . Aproxim a- se, ent ão, da noção m oderna de paixão com o encant am ent o e sofrim ent o. ( p.95) . cf. Gloria Passionis I n: AUERBACH, Erich. Ensaios de lit erat ura ocident al. São Paulo: Edit ora 34, 2007. p. 77- 95

67 idem , p. 81

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casa ( patria)69. Agostinho, assim , reconhece que é necessária certa

afinidade com o sofrim ento a fim de salvaguardar a m isericórdia com o paixão divina na qual o hom em participa. Ora, tom ar o sofrim ento com o elem ento de ascensão à virt ude e a Deus não é, certam ente, um a agenda do sábio greco- rom ano70. Este rivalizava a insânia da alm a à presença da razão, pois a razão seria, por si m esm a, garant ia de sanidade e cura das paixões71. Cícero, por

exem plo, aposta no esforço da “ m editação racional” (cogitat ione) para sanar a alm a das paixões pelo cult ivo das virt udes

Com m áxim a atenção devem os perceber o seguinte: o tem po tem o poder de aplacar o sofrim ento, m as a força da cura não está no passar do tem po e sim na m editação cot idiana (cogitatione diuturna)72

Diferentem ente, Agostinho não opõe razão e paixão, nem espera que o tem po aplaque o sofrim ento; na verdade, recupera o sofrim ento (aegritudo) pela narrativa confessional para propor um a nova terapêutica. A terapêutica agostiniana, assim , não recusa o sofrim ento, e, por isso, pode fazer o retorno am argo às m em órias de sua dispersão73. E m esm o que tal am izade entre sofrim ento e razão pudesse causar algum estranham ento ao ideal antigo do sábio, o estudante de retórica insistia na presença do sofrim ento e da paixão pelo seu íntim o parentesco com a m isericórdia divina. O caso do luto pelo am igo m aniqueu, descrito no livro I V, é um exem plo dessa reabilitação dos afetos por intensificação e não por supressão das em oções pelo controle da razão.

69 cf. conf. I I I ,6,11

70 vide not a ant erior

71 cf. Cícero, Tusculanas I I I ,8. Consult ar Menezes, A. A hist ória do discurso sobre as paixões nas Tusculanas de Cícero. I n: Cadernos Espinosanos XXI V, 2011

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Mas, se guardarm os o percurso narrativo, verem os Agostinho tributar à Cícero a prim eira exortação à cura das paixões da alm a por exortação à sabedoria e filosofia.

I,1 ,3 A EX ORTAÇÃO AO CON TROLE D AS PAI X ÕES PELO D I SCURSO RACI ON AL (FI LOSOFI A)

O ciclo de form ação de retórica levaria o estudante de Cartago ao protréptico de Cícero, Hortênsio74. Este livro, hoje

perdido, fez a prim eira exortação pela cura da alm a pela razão, ou sej a, por um controle das paixões por via filosófica. Agost inho testem unha sua im portância: “ O livro é um a exortação à filosofia e cham a- se Hortênsio. Devo dizer que ele m udou os m eus sentim entos e o m odo de m e dirigir a ti; ele transform ou as m inhas aspirações e desej os.”75. Com efeito, aos dezenove anos, o j ovem , exortado ao estudo da filosofia, diz: “ principiava a levantar- m e para voltar para Vós” , de m odo que seus sentim entos e desej os seriam transform ados pela exortação ao am or à sabedoria, ou “ filosofia em grego” . Percebe- se bem que o protréptico cum priu sua m eta de elevação conform e o registro de A. A. Long:

O term o protrépt ico dificilm ente pode ser traduzido por um a única palavra em inglês. Refere- se a um t ipo de discurso exortativo ou de adm oestação que, m esm o em form a de m onólogo ou perguntas- respostas, é concebido para fazer as pessoas refletirem acerca de

74 Consult ar B. St ock. August ine´ s I nner Dialogue... p., 35- 38; Madec, G. Le "Hort ensius" ,1969, pp. 165- 17

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suas convicções éticas e converter para um a m udança fundam ental de perspectiva e com portam ento. 76

O estudo da filosofia, que exortava à saúde das paixões, é reconhecidam ente “ um princípio de elevação e condução a Deus” ( et surgere coeperam , ut ad te redirem ) , visto que as vãs afeições carnais que haviam conduzido o j ovem hiponense at é então são contrapostas ao novo desej o de sabedoria da tradição filosófico-helenista: “ um incrível ardor do coração” pela “ Sabedoria im ortal”77.

Trata- se, pois, de im portante ponto de direcionam ento do discurso com o exercício de purificação m oral78:

Apenas m e deleitava, naquela exortação, o fato de essas palavras m e excitarem fortem ente e acenderem em m im o desej o de am ar, buscar, conquistar, reter e abraçar, não esta ou aquela seita, m as sim a m esm a sabedoria79.

Surge um a nova postura intelect ual- espirit ual do j ovem , que o lança à tradição racional- discursiva e ao am or à sabedoria ( filosofia)80. Sabe- se que, anos depois, o j ovem retor se servirá desta postura crít ica (époché)81 do sábio acadêm ico, que, por sua vez, o aj udará no afastam ento do m aniqueísm o82, m as nesse m om ento, com o j ovem estudante em Cartago, o convite à filosofia, à m aneira

7676 A. A. Long com ent a sobre o carát er exort at ivo do discurso do prot répt ico: “ t he t erm prot rept ic can scarcely be t ranslat ed by a single english word. I t refers t o a t ype of exhort at ive or adm onit ory discourse, eit her in m onologue or in quest ion- and answer form , designed t o m ake persons ret hink t heir et hical beliefs and convert t o a fundam ent al change of out look and behaviour.” Long, A. A. Epict et us: A St oic and Socrat ic Guide t o Life, 2002 p. 54

77 conf. I I I ,4,7

78 cf. Cam bronne, P. August in et l’Eglise ..., p. 23 79 conf. I I I ,4,8

80 cf. Tam bém , G. Cat apano. La philosophia e i philosophi nelle Confessioni, pp. 90-96

81 Consult ar nossa análise do prológo do duab. an.

Referências

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