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1.1 A PERSPECTIVA SÓCIO-HISTÓRICA E DIALÓGICA DA LINGUAGEM

1.1.4 Alteridade e responsividade

Bakhtin (2010, p. 311) afirma que “[...] o acontecimento da vida do texto, isto é, a sua verdadeira essência, sempre se desenvolve na fronteira de duas consciências, de dois sujeitos.”. Essa afirmação coloca a linguagem no limite entre o individual e o social, como realização entre duas subjetividades constituídas socialmente, através da expressão, definida por Bakhtin (VOLOCHÍNOV) nos seguintes termos:

A expressão “é tudo aquilo que, tendo se formado e determinado de alguma maneira no psiquismo do indivíduo, exterioriza-se objetivamente para outrem com a ajuda de algum código de signos exteriores”. [...] A expressão comporta, portanto, duas facetas: o conteúdo (interior) e sua objetivação exterior para outrem (ou também para si mesmo). (BAKHTIN (VOLOCHÍNOV), 2010 [1929], p. 115)

A expressão engloba o enunciado e comporta um dualismo entre mundo interior/ mundo exterior, dado que todo enunciado consiste numa ação/resposta de uma subjetividade (mundo interior) a outra(s) subjetividade(s) (mundo exterior). A filosofia da linguagem, proposta

pelo Círculo, mais objetivamente em Marxismo e Filosofia da Linguagem (2010 [1929]), distancia-se das demais correntes de estudos linguísticos, exatamente por situar a linguagem no limiar das relações sociais, sendo caracterizada, especialmente, pelo aspecto ativo da compreensão do interlocutor. Nesse contexto, o texto é tomado não como unidade de significado da linguística, como um dado acabado e objetivo, mas como fruto da atividade humana de produção de sentidos, equivalendo mesmo à própria ação humana, conforme alude Bakhtin:

A atitude humana é um texto em potencial e pode ser compreendida (como atitude humana e não ação física) unicamente no contexto dialógico da própria época (como réplica, como posição semântica, como sistema de motivos). (BAKHTIN, 2010 [1979], p. 312)

A compreensão, conceito caro aos teóricos do Círculo, está diretamente relacionada ao conceito de ato/ação. Esse conceito, por sua vez, nada tem a ver com ação, no sentido de movimento, mas como posicionamento/resposta diante do já-dito e de outros ditos em devir. É em função das noções de compreensão e resposta (responsividade) que o outro e a relação de alteridade (relação entre subjetividades distintas) são fundamentais para a abordagem da linguagem na perspectiva dialógica, segundo a qual, a palavra corresponde à função da pessoa do interlocutor a quem o enunciador se dirige.

Isso significa dizer que a linguagem é concebida em associação com os sujeitos. Por isso, tomar um enunciado como objeto de análise equivale a tomar igualmente seu autor, a intenção diretiva ao interlocutor, ao qual ele dirige sua palavra no curso do processo enunciativo, o contexto em que esses interlocutores interagem e a compreensão que o interlocutor assume do enunciado que lhe foi dirigido. Em outros termos, tomar integralmente a relação de alteridade que liga duas consciências no transcurso de suas existências sociais.

A tomada da palavra como função do outro faz de sua significação um traço que une os interlocutores, realizando-se, apenas, no processo de compreensão ativa e responsiva. Por essa razão, diz-se que todo enunciado é orientado a alguém e espera desse uma resposta ativa, ainda que sob a forma de uma compreensão interior, pois “[...] compreender a enunciação de outrem significa orientar-se em relação a ela, encontrar o seu lugar adequado no contexto correspondente.” (BAKHTIN (VOLOCHÍNOV), 2010 [1929], p. 137).

Toda palavra, quando enunciada, espera uma resposta, uma compreensão (posicionamento) em relação ao seu dizer e se constitui, simultaneamente, como resposta (compreensão/posicionamento) a outra palavra que lhe precedeu, na esteira discursiva que compreende a comunicação verbal, sendo assim um ato (BAKHTIN, 2010 [1979], p. 320) que pertence à cadeia dialógica, entrando em relação semântica com outros atos (palavras enunciadas) que se confrontam com ele, fazendo da palavra arena ideológica. Como elucida Bakhtin (VOLOCHÍNOV):

Compreender é opor à palavra do locutor uma

contrapalavra. [...]. A significação não está na

palavra nem na alma do falante, assim como também não está na alma do interlocutor. Ela é o efeito da interação do locutor e do receptor

produzido através do material de um determinado complexo sonoro. [...]. Só a corrente da

comunicação verbal fornece à palavra a luz da sua significação. (BAKHTIN (VOLOCHÍNOV), 2010 [1929], p. 137, grifos do autor)

Não existe compreensão sem uma contrapalavra, isto é, sem resposta. A resposta, que determina a responsividade de que trata o Círculo, implica num posicionamento valorativo (axiológico) diante do enunciado que se realiza na linguagem, através de outro enunciado, ou mesmo do silêncio em relação àquele, numa compreensão ativa interior, que não se exterioriza verbalmente. O termo “resposta”, utilizado na teoria bakhtiniana, encerra uma ideia mais complexa do que sua noção mais corriqueira, apesar desta também ser uma resposta nessa acepção. Ela importa no âmbito do dialogismo, pois compromete o indivíduo nas inúmeras posições que assume no contexto social e, nesse ponto, a filosofia da linguagem do Círculo funde-se com a filosofia do ato do mesmo, advindo, dessa fusão, a noção de enunciado como ato – resposta responsável. Responsável pois provém de um sujeito consciente, que se responsabiliza pela posição que assume (verbalmente ou silenciosamente), a partir de uma dada posição social, e ato-resposta pois responde ativa e valorativamente a outros (enunciados e sujeitos).

Depreendemos, assim, que resposta e compreensão são fatores condicionantes da linguagem, mas também das relações entre homens e, em última instância, da dialética que determina os intermináveis processos de estabilizações e alterações das estruturas sociais e respectivas ideologias de suporte, sendo as mudanças de significação que

constituem os enunciados sempre uma reavaliação, “[...] o deslocamento de uma palavra determinada de um contexto apreciativo para outro.” (BAKHTIN (VOLOCHÍNOV), 2010 [1929], p. 140). As palavras (enunciados) constituem-se, desta forma, além do tema e da significação, do acento apreciativo, pois sua expressão pelo sujeito, quando dita ou escrita, é sempre acompanhada da valoração/apreciação que esse introjeta nela, o que faz de toda enunciação um posicionamento subjetivo e ideológico.

O aspecto apreciativo da palavra enunciada remete à noção de refração do signo linguístico. Conforme sustenta a filosofia marxista da linguagem, explicitada na obra de Bakhtin (VOLOCHÍNOV, 2010 [1029]), toda palavra – signo ideológico por excelência –, quando enunciada, reflete uma dada construção da realidade, ao mesmo tempo que a refrata, pois corresponde a uma tomada de posição do sujeito a respeito do que enuncia. Portanto, não equivale a um reflexo perfeito da realidade material, mas de uma construção dessa realidade, apreendida e recriada pelo indivíduo que a toma como objeto de sua enunciação, haja vista ser atravessada pela perspectiva de um sujeito que se constitui socialmente, através de suas experiências e relações.

A relação de alteridade é fundamental para a construção de sentidos que, conforme diretrizes do Círculo, se dá na diferença, no confronto entre consciências e valorações. O outro (alter) é o princípio de estruturação e organização enunciativa que guia o projeto de dizer do sujeito e justifica seu enunciado como unidade do processo dialógico da linguagem. O(s) outro(s), interlocutor(es) a quem o enunciado do sujeito se dirige, está intrinsecamente implícito nesse enunciado, antes mesmo de sua materialização discursiva, pois o enunciador já antecipa possíveis reações-respostas (atitudes do interlocutor) na elaboração interior do discurso, antes mesmo de realizá-lo verbalmente. Nesse processo, as relações que se estabelecem entre os interlocutores são também definidas nos contextos em que se inserem essas relações, sendo esses contextos, consequentemente, determinantes para a produção discursiva.

Toda instância interativa, logo, toda enunciação, realiza-se num determinado campo que, por sua vez, insere-se num contexto social mais abrangente e, por essa razão, “[...] a situação social mais imediata e o meio social mais amplo determinam completamente e, por assim dizer, a partir do seu próprio interior, a estrutura da enunciação.” (BAKHTIN (VOLOCHÍNOV), 2010 [1929], p. 117). Explicitamos, na subseção a seguir, como o contexto social interfere nos enunciados dos sujeitos e nas

relações que esses estabelecem entre si e com os enunciados seus e dos outros.