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1.1 A PERSPECTIVA SÓCIO-HISTÓRICA E DIALÓGICA DA LINGUAGEM

1.1.5 Esfera sociodiscursiva

Para tratarmos da noção de esfera14 discursiva, precisamos considerar as condições sobre as quais a arquitetônica teórica do Círculo foi sendo elaborada dialogicamente. Retomando os capítulos da obra de Bakhtin (VOLOCHÍNOV, 2010 [1929]), entendemos que o projeto bakhtiniano sedimentou-se no diálogo com as duas correntes de pensamento dominantes à época de sua produção, sendo inerentemente dialógico em sua própria elaboração. Desta feita, o diálogo que percorre toda a obra do Círculo, mas que aparece desenvolvido mais explicitamente em Marxismo e Filosofia da Linguagem (BAKHTIN (Volochínov), 2010 [1929]), busca superar a visão determinista e mecanicista do marxismo ortodoxo que prevê a subordinação dos produtos ideológicos aos fatos da base socioeconômica.

Nesse sentido, a noção de esfera da comunicação discursiva (ou da criatividade ideológica, ou da atividade humana, ou da comunicação social, ou da utilização da língua, ou simplesmente ideologia) é compreendida como um nível específico de coerções que, sem desconsiderar a influência da instância socioeconômica, constitui as produções ideológicas, sendo a lógica particular de cada esfera/campo. (GRILLO, 2010, p. 143)

Dessa forma, “[...] a esfera deve ser entendida como a versão bakhtiniana marxista de ‘instituição’, ou seja, uma modalidade socioistórica relativamente estável de relacionamento entre os seres humanos.” (SOBRAL, 2009, p. 121). Como consequência desse entendimento bakhtiniano, a acepção de esfera abarca um escopo mais amplo que as instituições definidas pelo Estado de uma dada sociedade,

14 Grillo (2010, p. 156) esclarece que a recente tradução do livro Estética da criação verbal, de

Mikhail Bakhtin, substitui, em muitos momentos, o termo esfera por campo. Entretanto, as traduções em inglês, francês e espanhol dos livros do Círculo mantêm o termo esfera. Seguimos Grillo, utilizando os dois termos como sinônimos no escopo desta pesquisa.

correspondendo aos lugares sociais em que decorrem relações específicas entre sujeitos, a recortes sócio-históricos e ideológicos.

Cada esfera/campo existe como unidade relativamente estável, numa arena de vozes sócio-historicamente constituídas, e as relações que se dão em seu interior são marcadas por embates e mudanças permanentes, que surgem nas/das próprias interações verbais entre os sujeitos sociais que circulam nela e em outros âmbitos específicos da realidade social. Bakhtin (VOLOCHÍNOV, 2010 [1929]) mesmo trata da questão em sua obra, afirmando que:

No domínio dos signos, isto é, na esfera ideológica, existem diferenças profundas, pois este domínio é, ao mesmo tempo, o da representação, do símbolo religioso, da fórmula científica, da forma jurídica, etc. Cada campo de criatividade ideológica tem seu próprio modo de orientação para a realidade e refrata a realidade à sua própria maneira. Cada campo dispõe de sua própria função no conjunto da vida social. É seu caráter semiótico que coloca

todos os fenômenos sob a mesma definição geral.

(BAKHTIN (VOLOCHÍNOV), 2010 [1929], p. 33, grifo do autor)

A compreensão do conceito de esfera/campo está inerentemente associada à palavra e à ideologia nos termos do Círculo. À palavra, por encerrar a condição de signo ideológico por excelência, em função das propriedades que possui (já enumeradas no corpo deste texto), especialmente pela capacidade de incorporar, semioticamente, as representações e ideologias de diferentes áreas da atividade humana, servindo a todas igualmente e transitando entre todas; assumindo, em cada uma, o sentido projetado pelo ponto de vista específico do grupo de indivíduos que a compõem. E à ideologia, por consistir na expressão do posicionamento do sujeito, por meio do material semiótico da palavra, expressando o horizonte social/axiológico do sujeito, isto é, refratando a visão axiologicamente recortada de mundo que sua posição social lhe viabiliza realizar.

Na perspectiva bakhtiniana, a ideologia compõe-se, dialeticamente, de dois polos antagônicos que se interpenetram e interinfluenciam: a ideologia oficial, que corresponde às esferas de domínio ideológico que sustentam a organização e as relações de uma dada sociedade – a ciência, a religião, a arte etc. – e que equivale a uma

estrutura relativamente estável e dominante que procura fixar uma concepção única de representação do mundo; e a ideologia do cotidiano, que corresponde às relações fortuitas do dia a dia, funcionando como gérmen dos sistemas de referência que irão compor a ideologia oficial e que equivale a um acontecimento relativamente instável. Conforme afirma Miotello (2012) a respeito do conceito de ideologia do Círculo:

Bakhtin e seus companheiros do Círculo não trabalhavam, portanto, a questão da ideologia como algo pronto e já dado, ou vivendo apenas na consciência individual do homem, mas inserem essa questão no conjunto de todas as outras discussões filosóficas, que eles tratam de forma concreta e dialética, como a questão da constituição dos signos, ou a questão da constituição da subjetividade. Bakhtin mesmo alerta que não aceita ser medíocre dialeticamente, e por isso vai construir o conceito no movimento, sempre se dando entre a instabilidade e a estabilidade, e não na estabilização que vem pela aceitação da primazia do sistema e da estrutura; vai construir o conceito na concretude do acontecimento, e não na perspectiva idealista. (MIOTELLO, 2012, p. 168)

A visão dialética da ideologia do Círculo inaugura uma perspectiva inovadora dos estudos ideológicos até então vistos pela ótica da hegemonia inquestionável das esferas dominantes e da submissão passiva dos sujeitos pertencentes às esferas “dominadas”. Nessa diretriz, a ideologia do cotidiano atinge um valor antes inalcançável. Essa visão dialética das relações e estruturas sociais fundamenta-se no intercâmbio verbal que decorre das relações intersubjetivas pelos discursos que transitam na realidade sócio-histórica das culturas humanas.

A interação se dá, assim, entre indivíduos organizados socialmente e coloca em jogo condições sócio-históricas das duas ordens, da ideologia do cotidiano e das esferas ideológicas, conforme explicita Grillo (2010, 2010, p. 144):

Na interação verbal, materializam-se a língua, os signos ideológicos, a intersubjetividade, a articulação fatores externos/internos à esfera. Ao tratar da interação verbal, o Círculo estabelece uma distinção entre a ideologia do cotidiano e os

sistemas ou esferas ideológicas constituídas. A ideologia do cotidiano está ligada à palavra interior e acompanha todos os gestos e atos da consciência humana. Ela é o ponto de partida para a constituição das esferas ideológicas, mas também sofre delas a influência.

A noção de esfera/campo cunhada pelo Círculo acaba gerando outro conceito que, juntamente com o tema e com a significação, constitui a essência da palavra (enunciado) – o acento de valor ou apreciativo – mencionada acima. Essa ligação entre apreciação e esfera decorre do fato de a constituição social do sujeito se dar mediante relações que trava ao longo de sua vida e que, por conseguinte, são delimitadas e influenciadas pelas instâncias (esfera/campo) sociais em que se sucedem. Disso decorre que:

[...] a enunciação de um signo é sempre também a enunciação de índices sociais de valor, isto é, a enunciação de um signo tem efeitos de sentido que decorrem da possibilidade de sua ancoragem em diferentes quadros semântico-axiológicos, em diferentes horizontes sociais de valor. (FARACO, 2009, p. 54)

E é por isso que Bakhtin afirma que:

As relações dos enunciados com a realidade concreta, com o sujeito real falante e com outros enunciados, relações que pela primeira vez tornam os enunciados verdadeiros ou falsos, belos, etc., nunca podem tornar-se objeto da linguística. (BAKHTIN, 2010 [1979], p. 330)

Em função dessa assertiva, o Círculo propõe a metalinguística como o estudo cujo objeto corresponde ao nível da essência da linguagem, do seu uso intersubjetivo no âmbito da sociedade, o nível do discurso/enunciado e não da frase ou do texto dissociado dos sentidos que lhe são atribuídos nas relações sociais. Na perspectiva da metalinguística, como toda relação social se delineia e se fundamenta num determinado campo da ação humana, o “espaço” em que se desenrola determinado enunciado é fundamentalmente parte viva desse, não sendo possível a

consideração do enunciado concreto dissociado de sua esfera de realização, influenciando essa, inclusive, na sua particularidade material. Dessa forma, o estudo das ideologias, para Bakhtin e para o seu Círculo, deveria seguir as seguintes regras metodológicas: (a) não separar a ideologia da realidade material do signo; (b) não dissociar o signo das formas concretas da comunicação; (c) não dissociar a comunicação e suas formas de sua base material. (MIOTELLO, 2012, p. 175)

Esta subseção encerra alguns dos conceitos que englobam os pressupostos teóricos que sustentam a perspectiva dialógica da linguagem do Círculo de Bakhtin e que julgamos imprescindíveis para a compreensão e fundamentação da pesquisa realizada. A subseção seguinte consiste na apresentação da base metodológica em que nos subsidiamos na delineação das etapas de análise da pesquisa e que estão igualmente fundamentadas nos princípios propostos pelo Círculo, embora não tenha sido sistematizada como modelo teórico por esse grupo. Trata- se da Teoria/Análise Dialógica do Discurso.