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2.1 CONCEPÇÃO DO CÍRCULO SOBRE PESQUISA EM CIÊNCIAS

2.1.2 Pesquisador: o outro na interação

O pesquisador, na perspectiva de Bakhtin, corresponde ao segundo sujeito, aquele que reproduz, para os fins de sua pesquisa, o texto do outro (autor dos enunciados tomados para análise) e cria um texto emoldurador, que o comenta, avalia, objetiva (BAKHTIN, 2010 [1979], p. 309). Como apontado no início deste capítulo, o tripé ética, estética e epistemologia encontra-se em permanente articulação ao longo do desenvolvimento do pensamento do Círculo.

Ao abordarmos a questão do pesquisador na acepção bakhtiniana, tangenciamos, necessariamente, as duas matrizes (ética e estética) para chegarmos à terceira (epistemológica), basilar para os fins deste trabalho. Isso porque a atuação do pesquisador no processo de pesquisa ancora-se tanto na responsabilidade, decorrente da ética bakhtiniana, quanto nas concepções de acabamento e exotopia elaboradas pelo Círculo, inicialmente para dar conta da função estética.

Ao conceber a pesquisa no âmbito das ciências humanas como inerentemente dialógica, em função dos textos/discursos serem meio de acesso ao conhecimento das subjetividades que os engendram, Bakhtin e seus pares atribuem ao pesquisador, na função de interlocutor, a responsabilidade de atuar ativamente na compreensão do objeto de pesquisa, tomado não como materialidade acabada, mas como discursos que refratam pensamentos, sentimentos, valores, culturas, ideologias.

Como qualquer sujeito inserido numa interação comunicativa, o pesquisador, ao se predispor a analisar determinado texto, deve abrir-se para uma compreensão ativa responsiva, pois, para Bakhtin, só alcançamos a compreensão à medida que respondemos, posicionando-nos ao dito com que nos deparamos. Disso decorre que, para o Círculo, a qualidade da pesquisa em ciências humanas vincula-se à profundidade da

compreensão17, não podendo nunca se equiparar à simples explicação, pois essa dispensa a relação dialógica entre pesquisador e objeto, ao contrário daquela:

Na explicação existe apenas uma consciência, um sujeito; na compreensão, duas consciências, dois sujeitos. Não pode haver relação dialógica com o objeto, por isso a explicação é desprovida de elementos dialógicos (além do retórico-formal). Em certa medida, a compreensão é sempre dialógica. (BAKHTIN, 2010 [1979], p. 316, grifos do autor)

Por isso, Bakhtin defende que a compreensão dos enunciados/discursos é inevitavelmente dialógica, já que pressupõe a presença de seus sujeitos-autores e do sujeito-pesquisador como partes integrantes da produção de seus sentidos, através da participação ativa no diálogo em que se inserem:

A compreensão dos enunciados integrais e das relações dialógicas entre eles é de índole inevitavelmente dialógica (inclusive a compreensão do pesquisador de ciências humanas); o entendedor (inclusive o pesquisador) se torna participante do diálogo ainda que seja em um nível especial (em função da tendência da interpretação e da pesquisa) [...] Um observador não tem posição fora do mundo observado, e sua observação integra como componente o objeto observado. (BAKHTIN, 2010 [1979], p. 332, grifo do autor)

Assim, a compreensão é, então, também diálogo, pois une duas consciências que se confrontam dialogicamente, e este é, para Bakhtin (BAKHTIN, 2010 [1979], p. 325), o extremo da filosofia da linguagem e do pensamento das ciências humanas, as “terras virgens”.

Ver pela primeira vez, tomar consciência de algo pela primeira vez já significa entrar em relação com esse algo: ele já não existe em si nem pra si mas

17 Bakhtin aponta o critério da profundidade da compreensão como um dos critérios supremos

para o outro (já são duas consciências correlacionadas). A compreensão já é um importante momento (a compreensão nunca é uma tautologia ou uma dublagem, pois aí há sempre dois e um potencial terceiro). (BAKHTIN, 2010 [1979], p. 321)

A compreensão que o pesquisador tem do discurso resulta no texto de sua autoria e, portanto, implica na responsabilidade que esse assume diante do outro (interlocutor/autor dos discursos analisados) e de outros aos quais possa se reportar e, consequentemente, em sua assinatura, que singulariza seu lugar privilegiado no contexto interacional que compreende sua pesquisa, como relembra Amorim (2003), retomando Bakhtin:

“Somente somos iguais no plano teórico e abstrato; no plano empírico, cada um de nós ocupa um lugar singular e único”, diz Bakhtin. O lugar singular que eu ocupo é também o lugar da minha assinatura. Somente eu ocupo este lugar, somente eu posso assinar por e neste lugar. E a assinatura é aquilo que me torna responsável: capaz de responder pelo lugar que ocupo num dado momento, num dado contexto. (AMORIM, 2003, p. 14-15)

Em suma, a compreensão responsiva ativa institui a responsabilidade expressa na assinatura que singulariza a subjetividade de cada sujeito, nas diferentes posições que assume em sua vivência social, e, é neste sentido, que Bakhtin menciona o fato de não haver álibi para a existência, dado que nenhum outro pode assumir o lugar que determinado eu assume e vice-versa, consistindo, então, a responsabilidade e a assinatura que o sujeito assume no processo de compreensão responsiva ativa, o fundamento ético de sua existência (e, por extensão, de todo ato que exerce, inclusive o de sua pesquisa).

Por outro lado, seguindo o encaminhamento reflexivo que delineia sua visão de estética, Bakhtin incorpora o conceito de exotopia para tratar da questão da objetivação e do acabamento epistemológico, no âmbito das ciências humanas, simultaneamente à forma como o artista objetiva e confere acabamento à sua obra de arte.

O conceito de exotopia foi formulado por Bakhtin para tratar do lugar de tensão que encerra a obra de arte, em função da alternância de

olhares, posições e valores entre aquele que representa o que vê do que o outro vê e aquele cuja visão é representada na obra. Esse conceito foi considerado, pelos estudiosos bakhtinianos, como a dimensão ética da atividade estética e como elemento-chave para o entendimento da atividade de pesquisa (AMORIM, 2003, p. 14).

Exotopia equivale, assim, a desdobramento de olhares, consiste no excedente de visão que, no âmbito da pesquisa, o pesquisador consegue alcançar, em função da sua posição privilegiada que lhe possibilita um “olhar de fora”, não acessível àquele que está sendo observado:

[...] meu olhar sobre o outro não coincide nunca com o olhar que ele tem de si mesmo. Enquanto pesquisador, minha tarefa é tentar captar algo do modo como ele se vê, para depois assumir plenamente meu lugar exterior e dali configurar o que vejo do que ele vê. Exotopia significa desdobramento de olhares a partir de um lugar exterior. Esse lugar exterior permite, segundo Bakhtin, que se veja do sujeito algo que ele próprio nunca pode ver; e, por isso, na origem do conceito de exotopia está a idéia de dom, de doação: é dando ao sujeito um outro sentido, uma outra configuração, que o pesquisador, assim como o artista, dá de seu lugar, isto é, dá aquilo que somente de sua posição, e portanto com seus valores, é possível enxergar. (AMORIM, 2003, p. 14, grifo do autor)

O lugar exotópico que o pesquisador ocupa nas perspectivas estética e epistemológica de Bakhtin é, precisamente, o que confere a objetivação e o acabamento, tanto à obra de arte como à pesquisa em ciências humanas, a partir do ato do sujeito criador.

O que nos interessa aqui é que há algo comum em todos os momentos do pensamento bakhtiniano: o ético e a questão do valor se dão sempre no lugar do acontecimento, do singular e irrepetível, o que equivale a dizer, no âmbito do concreto e do histórico. Para tornar o pensamento não- indiferente, é preciso responder por ele levando em conta o contexto em que nos encontramos. E o contexto será sempre uma arena onde diferentes valores se afrontam, engendrados nas diferentes

posições sociais que ocupamos. O pensamento tornado ato é um pensamento valorado, um pensamento com entonação e que adquire, segundo a expressão de Bakhtin, “a luz do valor”. (AMORIM, 2003, p. 18-19)

Para Bakhtin e seu Círculo, só há ética na dimensão do evento, uma vez que é no acontecimento que o sujeito assume sua posição singular e se defronta com outras posições singulares assumidas por outros sujeitos igualmente singulares. Portanto, é no âmbito da ação que o pesquisador deve incorporar a teoria e o pensamento de forma responsável, para proceder com seu trabalho de análise; ou seja, a análise que compreende o fazer – pesquisa não se situa no âmbito de uma epistemologia desvinculada da vida, ao contrário, situa-se no âmbito desta, ao mesmo tempo em que lança mão daquela.

Como consequência, a objetivação e o acabamento decorrem do acontecimento em que a reflexão do pesquisador se torna ato de um processo dialógico, por meio do qual atribui sentido ao discurso analisado, sentido esse que reflete tanto o embate travado na arena de vozes que constitui esse discurso como aquele travado entre esse discurso constituído e o discurso do sujeito/pesquisador em constituição. Depreendemos, dessa consequência, a dimensão do pesquisador no fazer pesquisa em ciências humanas, sob a ótica do Círculo, que, antes de gerar uma dicotomia entre acontecimento e teoria, conjuga-os lançando mão do conceito de validade, diretamente relacionado ao conhecimento do analista/pesquisador.

Todo contexto infinito do conhecimento humano teórico possível – o da ciência – deve, para minha unicidade participante, tornar-se algo de responsavelmente reconhecido, o que não diminui nem deforma o que é verdade [istina] autônoma desse conhecimento, mas o completa até que se torne verdade [pravda] em sua validade compulsória. (BAKHTIN, 2010 [1986], p. 108, grifo do autor)

Cremos ter dado conta, mesmo que suscintamente, da abordagem particular que o Círculo de Bakhtin instaura como adequada a toda pesquisa que toma como objeto de estudo o texto, em sua condição de discurso e, portanto, imbricado com seus sujeitos autorais e com todos os

demais elementos contextuais nele implicados, bem como do papel de fundamental importância do pesquisador no processo de constituição dessa pesquisa. Na seção que segue, contextualizamos a pesquisa e, em seção subsequente, retomamos a ancoragem epistêmico-metodológica da ADD e sua constituição e apresentamos as descrições do campo, da disciplina estágio supervisionado em LP, do gênero relatório de estágio supervisionado de observação e dos participantes.