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Alteridades e comparações: o lugar da práxis improvisatória nas artes temporais Havendo colocado em perspectiva as dimensões que a figura do improvisacional adquire

improvisar + em dança + contemporânea 2.1 Os lindes da práxis

2.1.2. Alteridades e comparações: o lugar da práxis improvisatória nas artes temporais Havendo colocado em perspectiva as dimensões que a figura do improvisacional adquire

quando dilata as suas fronteiras para além dos domínios convencionais atribuídos a ela - fugando seus contornos num território vasto (e não pouco ambíguo) que se remonta, por uma lado, às atávicas manifestações do repente, mas que permanece enraizado à efemeridade dos atos cotidianos -, proponho-me levar a atenção agora para alguns momentos da história moderna em que a “Arte do Improviso” adquiriu visibilidade e singular prestígio. Por essa razão, tanto a tradição teatral quanto a musical oferecerão referências válidas para repensar os procedimentos e estratégias compositivas implicadas nas relações temporais que ambas partilham desde antigo com a dança. O conjunto destes domínios artísticos comunga no fato de serem expressões vívidas sujeitas ao eixo evolutivo da temporalidade e, por tanto, conectadas ao problema do ordenamento sintagmático do discurso. Contudo, não pretende reduzir os dados dessa perspectiva comparada a um sistema de correlatos lineares (correspondências especulares), mas tornar visível as peculiaridades que a práxis improvisatória adquiriu em cada caso: reconhecer as condições físico- materiais a partir das quais cada linguagem artística se ergue como expressão única.

A escolha inicial da Commedia dell’Arte (ou “Comedia da Arte Italiana”) deve-se ao fato dela ser um expoente histórico do uso da improvisação no domínio do teatro: um ocorrente “sistema de

enredos”, sempre hilário e burlesco, destinado às plateias abertas. Emergido na Itália do século XVI, tratou-se um tipo de teatro popular cujo cultivo e refinamento manteve-se vigente até começos do século XIX. Como género dramático foi uma original miscelânea que combinou elementos da literatura teatral renascentista com elementos carnavalescos (presentes nos vestuários extravagantes e na propensão ao uso de máscaras), recursos pantomímicos e destrezas acrobáticas. Contudo, seu impacto histórico pode ser rastreado na atualidade dentro das chaves compositivas que guiam às produções dramaturgicas do teatro independente (circuito Off), ancorado na concepção da co-criação coletiva, nas proposições formuladas pelo próprio ator, no recupero do gesto corporal e, especialmente, no uso da improvisação como elemento desencadeante. Ao longo do século vinte, este último aspecto adquiriu relevância e um considerável raio de influência a partir das encenações de Vsevolod E. Meyehold, Jaques Copeau, Jean-Louis Barrault e Dario Fo, os quais enfatizaram a importância do improviso na gestação das suas dramaturgias. De acordo com os estudos desenvolvidos pelos autores César Molina e Francisco Torres Monrreal em Historia Básica

del Arte Escénico (Madrid: Ed. Cátedra, 2002, p. 127 a 139) a Commedia dell’Arte diferenciou-se da

erudita pelo fato de abandonar a execução de roteiros a serem decorados integralmente (reproduzidos literalmente segundo as pautas da escritas), liberando nos atores a possibilidade da recriação repentina - razão pela qual foi rotulada também de Commedia all’Improviso. [38]

Dada a amplidão dos aspectos contidos no caso da Commedia dell’Arte, pretendo sublinhar aqueles que dialogam estreitamente com o tema que vem sendo estudado aqui. O autor catalão Ricard Salvat, em El teatro como texto y como espectáculo (Barcelona: Ed. Montesinos, 1995), ao abordar o caso da Commedia dell’Arte, resgata a figura dos canovacci (literalmente: panos de cozinha) como se tratando de um tipo de estrutura ideo-textual substituta dos roteiros inteiramente fixados pela escrita: “trilhas esquemáticas a partir das quais os atores improvisam” (p. 65).

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[38] Molina e Torres Monrreal propõem (p. 131) nove chaves aplicáveis ao caso da Commedia dell’Arte que permitem cartografar os caracteres que se mantiveram presentes ao longo dos três séculos que esta expressão durou: 1. Personagens fixos (papeis prototípicos). 2. Ser improvisada. 3. Proceder historicamente da arte dos juglares, bufões e malabaristas. 4. A mise en scène se resolver como uma criação coletiva. 5. Existir interatividade entre atores e plateia. 6. As funções se distribuírem em bandos (enamorados, amos, criados, etc). 7. Uso irreverente de disfarces e formas de travestismo. 8. Abuso do recurso cênico do quiproquo (originalmente, quid pro quo: se produzirem equívocos, mal- entendidos, confusões lógicas). 9. O ritmo e o ilusionismo ficcional primarem por sobre qualquer tipo de verosimilhança (realismo).

Nesses proto-roteiros, formatados através de uma descrição enunciativa de quadros/atos, condensava-se a progressão das ações dramáticas enfiando sequências hilárias de argumentos. Essas montagens, não pouco fragmentárias, resultaram do aproveitamento descentrado e irreverente dos enredos eruditos elaborados para as peças teatrais da época. Se repensado, a implementação de roteiros e tarefas a serem preenchidas na hora por ações físicas e gestos ocorrentes revelam-se como verdadeiros protótipos do atual work in progress [39]. Por essa razão, a

originalidade dos canovacci apresenta-se como um dado inestimável para as análises dedicadas à

práxis improvisatória, pois exibem desde o seu antecipado engajamento histórico a tensão dialética

que se estabelece entre a prescrição de restrições explícitas (marcação de roteiros) e os tempo- espaços que estes disponibilizam para o repentismo das ações.

Para apreciar a sofisticada trama argumental dos canovacci, barroca e altamente cambiante, resolvida por meio de prontos acordos cênicos e pelo revezamento vertiginoso de papeis entre os comediantes - uma mise en scène auto-regulada pela equipe de improvisadores -, observe-se no exemplo seguinte a singular concisão que caracterizou-os:

Sai à cena um rico veneziano e uma dama à qual este descreve as alegrias do amor. Subitamente, ele recebe uma carta que o afasta um instante da formosa cortesã que lhe acompanhava. Ausência que Pantaleão e o seu criado aproveitam para cortejá-la. Aparece então um nobre espanhol como rival privilegiado. Prosseguem [entre os pretendentes e os recém-chegados] cenas confusas e espancamentos. Serenatas disparatadas, batalhas quixotescas, toda uma bagunça. Por fim, trás uma reconciliação, são feitas as pazes e atores e espectadores se unem numa dança italiana. (SALVAT, 1995, p. 45. Grifo nosso)

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1. Pintura de Peeter Van Bredael: Commedia dell’arte (século XVIII). Cena sobre um tablado montado num espaço aberto. Observe-se a imediatez das ações (proxemia) com o local da plateia. 2. Gestus grandiloquente, extrovertido dos comediantes. 3. Caricatura que exibe os traços assimétricos e curvilíneos da composição corporal dos atores da Commedia: a fisicalidade de uma linguagem marcadamente signica e transgressora.

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[39] Veja-se, ao respeito, o livro publicado pelo crítico e curador paulistano Renato Cohen: Work in Progess na Cena

Uma expressão contemporânea, inequivocamente herdeira da Commedia dell’Arte - mas também de gêneros como o Café Concert ou o Cabaré - é o “Match de Improvisação”. Idealizado por Yvon Leduc e Robert Gravel em 1977 (diretores do Théâtre Expérimental de Montreal) com o propósito de fundar uma modalidade cênica que revivificasse a interação com a plateia e quebrasse o engessamento dos moldes convencionais, apelaram à transposição para o palco de um formato esportivo, parodiando as normativas do hockey sobre gelo (esporte nacional canadense) [40].

Resistido inicialmente pela comunidade de atores por causa da manifesta competitividade que o regulamento propiciava (ágon), rapidamente se reverteu num fascínio pela vertigem, pela adrenalina e alto risco que tal dispositivo injetava nos improvisadores (ilinx). Divulgado no começo em Quebec e nos países francófonos, os Match se espalharam prontamente pelo mundo hispânico (Argentina e Espanha, especialmente) até acabar se configurando numa Liga Profissional de

Improvisação Internacional (LPI) que hoje possui equipes de improvisadores/competidores em

numerosos países, altamente treinados, ranqueados, disputando-se cada ano a liderança mundial. Por se tratar de uma modalidade que exige extrema prontidão por parte dos improfighters, este sistema de improvisação requer que as equipes idealizem, em lapsos brevíssimos de tempo: estratégias para se revezarem; acomodar os gestos/ações às chaves estéticas do género que está sendo parodiado; dar estrita conta do conteúdo do título que deve ser alegorizado; encaixar o percurso da improvisação num tempo cronológico pré-estabelecido - dentre outras variáveis. O dispositivo que instrumentaliza o funcionamento deste “esporte cênico”, tal como se observa,

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[40] Corresponde indicar que a aparição dos Match na década de 1970 tem como precedente fundamental a obra de duas figuras pioneiras. Viola Spolin (Chicago, 1906), batizada de “a avó da impro”, foi a primeira artista norte-americana em formar uma geração de improvisadores. Ligada estreitamente a projetos sociais que lidaram com contextos críticos nos Estados Unidos (desemprego, alfabetização de imigrantes), desde os anos 1940 ela promoveu dinâmicas inter- disciplinares (músicos, atores, escritores, etc) que estimulassem o pensamento espontâneo, a imaginação, a

comunicação não-verbal e a fisicalização através do jogo teatral. Afeta ao trabalho com crianças e adolescentes, Spolin criou a Young Actors Company nos anos 1950, e pouco depois, nos fundos de um bar de Chicago, o primeiro Cabaret

Improvisado. Dentre os vários livros publicados cabe lembrar Improvisation for the Theatre (1965) e Games for the Classroom: a teacher's handbook (1975). O outro nome relevante é o educador e dramaturgo anglo-canadense Keith

Johnstone (Devon, 1933), criador do sistema de improvisação Theatresports. Empenhado em reverter a metodologia de formação do ator, Johnstone desenvolveu uma intensa pesquisa como docente a partir dos anos 1950 (Universidade de Calgary; Canadá), na qual o jogo e os mecanismos livre-associativos vinculados ao improviso cênico desempenharam um papel central. A sua concepção, enveredada ao treinamento/atuação, foi plasmada nos livros Impro: Improvisation and

the Theatre (1979) e Impro For Storytellers (1999): "Você não pode aprender nada sem falhar"; "Vá para o palco para

fazer relacionamentos, pelo menos você não estará sozinho"; "Não é a oferta o que conta, mas o que você faz com isso".

consiste numa sofisticada engenharia de ajustes inter-pessoais - uma construção coletiva e colaborativa - para aquém do ágon que motiva-o. Por sua vez, trata-se de um mecanismo que precisa ser afinado sistémica e regularmente durante os períodos prévios de treinamento, assimilando o arcabouço de referências poético-estilísticas a partir das quais o dispositivo opera [41].

O surgimento dos Viewpoints (pontos de vista), uma técnica de composição cênica desenvolvida em 1970 pela coreógrafa norte-ameicana Maria Overlie, introduziu no contexto da

Post Modern Dance nova-iorquina uma abordagem diferenciada da improvisação, originalmente destinada à produção do movimento/gesto dançado. A mesma foi readaptada para o treinamento teatral, anos mais tarde, pelas diretoras Anne Bogart e Tina Landa, sendo esta a sua versão mais conhecida. O sistema de Viewpoints idealizou um original conjunto de tasks (tarefas, comandos) a serem cumpridas pelo intérprete e, certamente, este é o traço estilístico e metodológico que caracteriza-o. Por esta causa parece-me oportuno citá-lo aqui, mesmo que tangencialmente, pois as referidas tasks possuem um estreito vínculo com o apanhado de objetivos múltiplos que os Match se propõem desenvolver no lapso de uma improvisação [42]. A diretora Anne Bogart (Cia. SITI), numa

entrevista outorgada à Revista O Percevejo (Julho/Dezembro, 2010), comenta ao respeito:

A ideia é que se você define as coisas com cuidado, então você tem que encontrar a improvisação dentro daquilo. É uma espécie de nível oculto, você sabe o ponto de partida e o ponto final, e aí a viagem pode ser um tipo único de improvisação. Entre aqui e aí há um monte _______________________

[41] Para interiorizar-se sobre o histórico das “Ligas de Improvisação” no contexto latino-americano (LPI de Argentina, México, Brasil, Chile, Colômbia, Uruguay), pode se acessar o link: <http://www.lpi.com.ar>. Este web-site, coordenado pelo mestre, diretor-dramaturgo e ator Ricardo Behrens, oferece um reconto dos acontecimentos destacados entre o ano 1988 e 2006, imagens fotográficas várias, artigos, etc. No entanto, para ter conhecimento sobre o regulamento formal que organiza os Match (dados referidos à quantidade de improvisadores e sistemas de alternância das equipes; tipos de géneros parodiados; papel dos árbitros; desempenho do público; tempos para os improvisos; etc) acessar o blogspot: <http://textosdematch.blogspot.com.br/2008/10/reglamento-del-match-de-improvisacin.html>

[42] Donnie Mather, integrante da “Cia. SITI”, no artigo Viewpoints e o Método Suzuki: uma palestra com Donnie

Mather (Revista O Percevejo; RJ: v. 2, n°2, 2010) oferece uma descrição sumária das tasks que esta técnica utiliza: 1. Tempo: o quão rápido ou o quão lento estou indo. 2. Duração: quanto tempo alguma coisa deve durar. 3. Resposta Cinestésica: “observar um cardume de peixes em movimento - por exemplo - ou um grupo desenvolvendo outro gesto”.

Cada artista começa a ter seu diálogo com essas ferramentas e, em última instância, este é um trabalho que se formata coletivamente. 4. Relação Espacial: a distância entre os corpos; uma história sobre onde estamos neste momento. 5.

Arquitetura: espaço real em que estamos trabalhando, permitindo que entre em diálogo conosco. 6. Topografia: como

se atravessa de um ponto para outro o palco. 7. Forma: ligada geralmente ao caráter abstrato, também pode ser muito cotidiana; a forma pode estar isolada em um corpo, ou estar em relação com a arquitetura de outro corpo. 8. Gesto: um desenho corporal que pode incluir muitas configurações diferentes; “aqui há um gesto, aqui há aves em movimento” (timing).

de variações, apesar de que, se tiver um público assistindo, pode se entender como uma mesma peça: parece que não se faz nada de diferente, mas sempre é diferente. (BOGART, 2010. Disponível em: <http://www.seer.unirio.br/index.php/opercevejoonline/view>)

Se observada in situ, a interatividade e conjunto de provocações à que é submetido o local onde têm lugar as sessões de Match de Improvisação - uma plateia que não se manifesta, unicamente, votando à equipe vencedora, mas é a responsável de rotular o inusitado título de cada improviso - revela-se como uma continuação histórica do modelo de “dramaturgia aberta” reconhecível já no roteiro dos canovacci: procedimentos de montagem/colagem da sequência de ações, exibida ao público como estratégia deliberada. A partir dos anos 1990, a avidez que este circuito cênico-esportivo gerou em algumas metrópolis, reconfigurou o perfil do espectador médio, atraindo massivamente nas salas alternativas de teatro às procedências mais diversas [43]. Para além

do formato originário, desenvolveu-se paralelamente um campo de pesquisas inquietado com a possibilidade de suprimir alguns aspectos regulamentares (por exemplo, a agonia da competição) para hierarquizar as potencialidades de outros - especialmente, a revisitação dos conteúdos paródicos/poéticos almejados nos “géneros”. O boom gerado pelos Match na agenda teatral desses anos (meados dos 80' em adiante) inspirou também outras formas de apropriação dessa modalidade improvisatória por parte dos artistas cênicos; criaram-se, por exemplo, estratégias regulamentares para serem aplicadas ao campo da dança: sessões em que as equipes de bailarinos (movers) brincavam, em cumplicidade com os pronunciamentos da plateia, com módulos de movimento/temas suscetíveis de serem repetidos e reciclados (instrumentalização de sequências, cánones, loops).

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[43] A LPI de Buenos Aires - uma cidade que abraçou com fervor esta variante espetacular da improvisação - teve como grandes introdutores, desde meados dos anos 1980, às companhias criadas pelo “Mosquito” Sancineto e Ricardo Behrens. A Cia. Sucesos Argentinos, pela sua vez, foi uma primeira bifurcação da modalidade dos Match, levando a atenção para as formas retórico-gestuais dos velhos noticiários projetados em cinema - uma estética vintage que se distanciava dos propósitos competitivos e problematizava, distintamente, as qualidades narrativas atreladas ao imaginário coletivo. Surgiram, assim mesmo, engenhosos meios de promover o tema das improvisações por meio de fotografias familiares dos próprios improvisadores que, ao serem escolhidas pela plateia, solicitavam que a crónica de um dos retratados fosse revivificada pela equipe (Cia. de Osqui Guzmán). Improvisou-se, para além do formato cenário despojado (mimeses hilárias e virtuosas) com objetos e instalações espaciais, e se propuseram formas de enunciação puramente físico-corporais, eliminando, por vezes, o uso da voz ou o referencial dos géneros.

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1. Membros da Ligue d'Improvisation de Paris numa sessão de Match. Na fotografia, dos improvisadores na pista, o árbitro agachado, no fundo os juízes e, aos lados, aguardando a sua entrada, os colegas das equipes. 2. Árbitro lembrando as regras do jogo aos capitães dos dois bandos. Observe-se que o desenho do campo, nesta versão original do formato dos Match de Improvisação, é uma réplica parodiada da pista de hóckey sobre gelo canadense. 3. Dois improvisadores montando uma situação; no fundo, os outros membros da equipe e, aos lados, o tabuleiro marcando a pontuação obtida até esse momento por ambos times. 4. Coletivo de Viewpoints espanhol “Espanca” durante um treinamento, focados na elaboração de uma composição espacial (task) a partir da diferença de níveis, orientação e projeção dos membros do corpo.

Continuando com a progressão temática prevista para este item (artes temporais), o histórico da práxis improvisatória dentro do campo da música é, além de remota e culturalmente profícua, de inestimável valor quando se trata de adotar uma perspectiva comparada que enriqueça a reflexão sobre procedimentos composicionais, transladáveis por analogia ao campo do movimento/dança. Para introduzir essa linha de considerações será pertinente manter presente os apontamentos observados no item 1.2.3., onde o caso da música foi apresentado como uma “pura língua” (puro significante) - no sentido da sua linguagem atingir o substrato do semântico- expressivo elipticamente, pela potenciação das valências contidas no signo sonoro. Acaso, por uma razão deste tipo, compreenda-se melhor o fato de que os músicos se comuniquem entre si apelando aos dados mais objetivos da língua/linguagem: aqueles que são úteis para mensurar ou identificar as partículas constituintes do discurso sonoro. Tal observação deve-se ao fato de que a sintaxe gramatical que opera na base deste meio expressivo somente pode ser sinalizada em relação às suas estruturas (à organização das progressões temporais ou, mais especificamente, ao lugar estratégico desempenhado pela “forma”).

Generalizando, poderia se afirmar que o vasto património de expressões musicais herdadas desde a antiguidade consiste num sem-numero de modalidades ligadas à prática do repente - hoje transbordadas na eclética produção da chamada “música popular”. Paradoxalmente, a noção de “improvisação musical”, como categoria diferenciada e suficientemente autónoma, é consideravelmente recente [44]; ela versa do contexto histórico do romantismo europeu de começos

escrita. Seguindo a reconstrução elaborada pela musicóloga argentina Pola Suárez Urtubey (Historia de la Música: La Pieza de Carácter; Bs. As.: Claridad, p. 276 a 291, 2004), Carl Czerny, famoso pedagogo da época, aluno de L. W. Beethoven e mestre de F. Liszt, abriu o caminho em 1829 com a publicação do tratado Systematische Anleitung zum Fantasieren auf dem Pianoforte (sistemática introdução à improvisação para pianoforte). Nele, o autor anexou à partitura da sua Fantasia-

Estúdio (Op. 200) um prólogo no qual expôs, de maneira visionaria, a arte de improvisar em música

como se tratando de:

Apresentar durante a improvisação, atendendo ao estímulo do momento, e sem preparação imediata especial, cada ideia original ou prestada de um tipo de composição musical [prévia] que, apesar de ter muito mais livre forma que a escrita, mesmo assim, deva ser formada numa totalidade organizada na medida em que isso seja necessário para continuar a ser compreensível e interessante. (CZERNY, 1829. Apud. SUÁREZ URTUBEY, 2004, p. 278. Grifo nosso)

Exemplar da publicação da Fantasia-Estúdio de Carl Czerny (Op. 200). Na parte superior da edição do tratado lê-se o texto do prólogo.

Na edição do livro Poética da Dança Contemporânea (Lisboa: Orfeu Negro, 2012) a crítica e historiadora francesa Laurence Louppe reflete sobre as linhas históricas que tensionaram as prestações e colaborações recíprocas entre coreógrafos e músicos. Nessa resenha, a autora traça a progressão de uma linhagem de coreógrafos cujo começo localiza-se nas inquietações professadas por Luis Horst (período correspondente à Modern Dance norte-americana dos anos 1920),

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[44] Tal como será exposto no item seguinte, tradicionalmente a arte de improvisar se posiciona de maneira antagónica e complementar à chamada “composição”, entendendo-se por tal a longa tradição que fixa por escrito o

desenvolvimento da obra. Transposta para o campo da dança, a figura da composição musical (materializada no desenho de uma “partitura”) se traduz como “coreografia”: choreo-graphos; uma ideo-partitura de movimentos.

voltados para a busca de uma base estrutural retirada de outras linguagens artísticas - especialmente, da música - que permitisse identificar mecanismos analítico-sintéticos a serem transpostos para a dança. No entender de Louppe (2012), tais procedimentos aplicados à composição do movimento, uma vez que atingiram um consistente desenvolvimento formal, explicam a ulterior assimilação e ruptura estética observável nas experimentações cinético-sonoras de Alwin Nikolais ou da dupla Cunningham/Cage. Os cursos ministrados por Robert Dunn no estúdio de Cunningham, destinados à geração de dançarinos/performers que iriam fundar logo o movimento da Judson Dance Theater (operações com o azar pós-duchampianas) seria, dentro dessa saga, o último elo da cadeia:

De entre as artes nas quais nos podemos inspirar figura em primeiro plano a música, que