• Nenhum resultado encontrado

a improvisação-dança como linguagem 1.1 Progressões sintático-gramaticais

1.1.1. Um tempo-espaço articulado

Seria um questionamento desnecessário, o apelo a um mero subentendido conceitual, formularmos a pergunta: “a improvisação é ou opera como uma linguagem?”. Todo indica hoje, com efeito, que todo é linguagem. Assim, não apenas a improvisação estaria sujeita a estas considerações, mas cada desdobramento que aqui será revisitado sucessivamente - o improvisacional, a improvisação-dança e o seu engajamento na conjuntura contemporânea - seria, no raio das suas especificidades, uma sub-expressão da mesma, se gerando a lógica de um jogo de encaixes. Porém, em contrapartida com esta primeira ordem de subentendidos, não demoram em se manifestar as contra-vozes, que experimentam um chamativo incomodo quando se pretende aproximar o sentido de estrutura interna que a imagem da linguagem levanta com o caráter inapreensível, mudável e, principalmente, processual que carateriza à dinâmica generatriz das práticas artísticas atuais. O receio centra-se nas valências que tendem a vincular à operatória da linguagem com um sistema/dispositivo que encouraça, em virtude das suas molduras, os fluxos e acasos que a criação em arte precisa. Provavelmente, a maneira em que ainda impacta a longa tradição das ciências da linguagem sobre o panorama contemporâneo das artes (seus métodos de análise), instaurem com persistência o estigma deste tipo de conotações; o certo é que, no seu lugar, se privilegiam noções e novas categorias que revezam a operatória da linguagem por outras, como a dinâmica plural das “áreas de expressão”, o caráter inacabado dos “processos de criação”, a natureza híbrida e transversal das produções performáticas (a iridescência do performativo como paradigma estético). Temos assim que a figura da linguagem, quando localizada no âmbito da produção/criação artística - e por extensão, no campo da improvisação-dança - tende a oscilar entre o subentendido que acolhe-a como generalidade operante e as perspectivas que enfatizam o caráter fluido, desestruturado e errático das novas narrativas, onde esta perde terreno.

A partir deste apanhado de observações iniciais (um diagnóstico do estado do termo), gostaria referir, na apresentação do tema a ser problematizado ao longo do capítulo um, que a

noção de linguagem, vinculada aqui às marcas factuais que se desprendem, inextricavelmente, do campo da praxis improvisatória em dança, é concebida, justamente, a partir do caráter dinâmico que lhe é inerente. A imagem-conceito que emerge desta aproximação metodológica, inquietada com a possibilidade de circunscrever uma certa episteme da improvisação-dança, é a de uma linguagem “inacabada”, suscetível de continuar a receber agregados, partículas constitutivas que denotem o seu lugar de alteridade. A adoção de tal perspectiva de estudo, direcionada para um rastreamento fenomenológico minucioso e pragmático, faz com que a figura da linguagem emerja como um dispositivo capaz de oferecer um entendimento mais afinado sobre a lógica processual que rege o andamento dos trajetos artísticos: não apenas uma explicação em paralelo nem um suplemento teórico, mas uma pulsação subjacente que proporciona clareza com respeito a todo o processual/inacabado em arte.

O conjunto de práticas relacionadas ao campo da improvisação-dança lida, certamente, com os desafios implicados nas marcas factuais, vívidas que diferenciam-o. Por se tratar de uma narrativa de movimento de forte cunho empírico, as problemáticas relacionadas aos mecanismos de transmissão de saberes, assim como os procedimentos e estruturas sintáticas que este utiliza, tendem a criar um tipo de lógica que se resiste a ser apreendida sistemicamente. Por esta razão, os desafios que enfrenta a elaboração de uma abordagem metodológica direcionada para esse estudo giram em torno à possibilidade de desvendar, em sucessivas camadas e aproximações, os componentes linguísticos (variáveis organizacionais) que se evidenciam nas manifestações próprias da práxis, evitando qualquer apriorismo modelar. Nessa linha de considerações pretendo posicionar à figura da linguagem como se tratando de uma “tecedura dinâmica”: um texto ampliado, polifónico e oblíquo, poroso às linhas de convergência que atravessam-o. Para isso, tenho exercitado ao longo deste (e dos outros) capítulo um jogo de entradas e saídas às competências armazenadas em outras áreas disciplinares/artísticas; trata-se da necessária ampliação e coleta de dados que permitam dimensionar, através da dinâmica observável em outras construções espaço- temporais do discurso, os variados aspectos que podem ser colocados em cruzamento. Assim, boa parte das estratégias utilizadas para a abordagem deste estudo estão orientadas às possíveis relações trans-disciplinares/multi-disciplinares com o campo da Linguística e da Filosofia da Linguagem; com registros de origem etno-antropológicos (Estudos Culturais); com as pesquisas sobre a natureza do jogo e da ludicidade; com as investigações científicas desenvolvidas no âmbito do esporte. Dentre estas transversalidades metodológicas, pretendo destacar o apelo ao estudo

comparado entre as linguagens artísticas; ao longo da tese podem se encontrar casos citados, procedentes, por exemplo, do âmbito da arquitetura deconstrucionista ou referências à historia das vanguardas das artes visuais (épica da Performance Art). Porém, o caso das artes temporais tem sido privilegiado, com ênfase nas análises relacionadas à arte musical. Parece-me que muitos dos aspectos que estruturam à gramática da improvisação em dança podem se ver enriquecidos quando se observa os componentes linguísticos que estruturam as variáveis rítmico-fraseológicas deste último caso. Por se tratar de uma pura-sintaxe, a arte musical/sonora aporta especificidades significativas ao compará-las com os desenvolvimentos sintagmático-paradigmáticos que estruturam, de maneira análoga, ao movimento/dança. Tanto a arte musical quanto a teatral são observadas à luz das suas evoluções históricas, para deixar ver a ordem de preocupações formais e discursivas que estas adotaram em alguns momentos escolhidos: modos de acentuar, de dar ênfase às variáveis organizacionais que regem a gramática das suas respetivas linguagens.

Parece-me oportuno indicar, ainda, que na reconstrução dos caracteres linguísticos que singularizam à improvisação-dança será de relevante importância inserir a “voz” dos próprios fazedores, presente tanto na publicação de livros, artigos em revistas especializadas, transcrição de entrevistas, assim como na localização que essa voz adquire nos registros audiovisuais que acompanham o corpus desta escrita (marcas escriturais do corpo num tempo-espaço habitado). Na aproximação à figura da linguagem, os forums desenvolvidos dentro do meio improvisatório ocupam, estrategicamente, um lugar central nas discussões aqui levantadas: será a partir da autoridade concedida a essa voz coletiva - e não num tempo-espaço a priori - onde adquirirão sentido e fundamento as sucessivas elaborações conceituais. Proponho-me, deste modo, tornar visível a alteridade do modus locutio com que essas vozes se expressam e compreendem a si mesmas.

Para dar abertura ao tema que tratarei ao longo do presente item (1.1.1.) parece-me oportuno levar a atenção, inicialmente, para a taxonomia elaborada por Charles Francis Hockett em A Course in Modern Linguistics (NY: Ed. Macmillam Company, 1958), na qual o linguista norte- americano distingue um conjunto de propriedades presentes nas produções da fala, cujo valor estruturante permite identificar algum dos caracteres através dos quais a linguagem verbal opera. Para os fins destas análises limitarei a lista a cinco, dentre as quinze propriedades mencionados por Hockett (1958): 1. Transitoriedade: a mensagem humana é temporária; as ondas físicas se

desmancham e a mensagem não persiste no tempo nem no espaço. 2. Retroalimentação total: o falante pode ouvir-se no momento em que envia uma mensagem. 3. Arbitrariedade: não há correlação entre o sinal e o signo. 4. Discreticidade: as unidades básicas são separáveis, sem uma transição gradual (um ouvinte pode inferir que se trata de uma “t” ou uma “d” independentemente de ter escutado bem). 5. Produtividade: as regras da gramática permitem a criação de novas frases que nunca foram criadas, mas que podem ser entendidas. [5]

Da observação desta primeira lista de caracteres - sempre baseada no caso das expressões fono-articulares - se desprende um dado suscetível de ser transposto, igualmente, para o domínio do movimento/dança. A saber: que as partículas que tecem o encadeamento lógico-funcional de uma linguagem se resolvem separadamente, sem solução de continuidade, estabelecendo um hiato entre umas e outras. Se reparamos no tópico n°4 da lista, o fato de que as “unidades básicas” se organizem discretamente (sem transição entre umas e outras), mas que apresentem uma gestalt fonética que, ao ser ouvida, permite distinguir o contorno acústico dessas partículas, vem a indicar que o recorte em micro-unidades discretas de uma frase constitui um procedimento necessário para que a mecânica da linguagem se organize.

Outro tanto ocorre com o princípio de arbitrariedade apontado por Hockett (1958) no tópico n°3, onde a factualidade de uma emissão vocal (estímulo fonético) não possui continuidade lógica com o conteúdo do signo (ligação arbitrária entre unidades discretas). Enquanto à chamada “produtividade” (tópico n°5), parece-me importante reparar na operatória que rege sobre as regras gramaticais; elas desencadeiam um meta-jogo de combinatórias potenciais que multiplica a produção de sentidos conhecidos quando interconectam partículas previamente discriminadas (discretizadas). Transladando a taxonomia elaborada por Hockett (1958) para os caracteres que singularizam à práxis da improvisação em dança, pretendo sinalizar, como se tratando de um princípio-base a partir do qual será possível estabelecer posteriores desdobramentos conceituais, o _______________________

[5] Charles F. Hockett (1916-2000) foi um linguista norte-americano filiado às ideias da linguística estruturalista da década dos anos 1950 desenvolvida pela escola das universidades de Cornell e Rice. Professor universitário, escritor e pesquisador na área da língua, linguística, matemáticas e idioma chinês, corresponde referenciar a sua obra através da publicação dos livros: The view from language (1977), Language, Mathematics, and Linguistics (1967), Progressive Exercises in Chinese Pronunciation (1951).

fato de que o fluxo de movimento, ao igual que a produção de enunciados verbais, se desenvolve num tempo-espaço “articulado”. Apesar de óbvia, esta primeira constatação nos permite distinguir, como uma qualidade intrínseca à natureza do fluxo de movimento improvisado, que o mesmo consiste num continuum multidirecional estriado: uma evolução pontuada, pontilhada por uma sucessão de indicadores - ou marcas factuais - que incidem sobre a sua superfície lisa.

Ao estabelecer um recorte conceitual a partir do termo “articulação” - ou da sua expressão substantivada: articularidade -, a imagem que se associa a este estabelece um vínculo de vizinhança com a ação de “dobrar”. O gesto resultante da operatória teria, como cometido íntimo, a intenção de cunhar uma marca, um sulco, ali onde se observa num determinado fenómeno a tendência a se manter sujeito à linearidade de um continuum indiscriminado. Tal como poderia se fazer sobre a superfície de uma lâmina de papel, a primeira articulação que poderíamos desenhar sobre essa folha lisa consistiria num plegamiento (ou dobramento): juntar as duas fases da lâmina, marcá-la através de uma linha qualquer que cruze a sua longitude, apertá-la com a borda dos dedos e fixar uma “dobradiça”. Assim como o traço gráfico insere uma rachadura para afirmar o caráter tipográfico/caligráfico da escrita, ou a emissão da fala fono-articular segmenta o continuum sonoro em unidades fonéticas minimamente contrastadas, o fluxo do movimento dançado consegue se direcionar (orientar) no espaço-tempo dentro do qual evolui inserindo gestos, “marcando” o volume cinesférico com traços cinéticos.

Parece-me importante dar visibilidade ao caráter fundador dessa propriedade articulante no seio da linguagem, pois existe uma tendência generalizada a associar o percurso de um momento improvisado com a experiência do mero devir. No imaginário social - sem excluir dele ao mundo artístico - tem se instaurado um lugar comum que, certamente, ainda pensa as práticas relacionadas à improvisação-dança como uma manifestação cujo interesse básico consistiria no desprendimento de qualquer tipo de estrutura de referência; uma espécie de devaneio livrado de todas as amarras. Admitir a incidência de uma articulação recorrente, de uma progressão pontilhada que insiste em discriminar o continuum desapercebido, permite idealizar, distintamente, a lógica de um jogo de sucessivos desdobramentos (dobras-sobre-dobras): a tecedura de uma gramática secreta, subjacente, que vai conectando, numa ordem de complexidades crescentes, umas marcas com as outras. O dado não é pouco significativo no que concerne ao ofício dos improvisadores da dança, pois a advertência ou a inadvertência da incidência desse plano articular

de fundo fará com que logo, no direcionamento das escolhas, se consiga descriminar, em maior ou menor medida, o tratamento que o continuum espaço-temporal receba.

No volume cinco do livro Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia (SP: Editora 34, vol. 5, 1995) a reconhecida dupla de filósofos franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari elaboraram uma aproximação teórica à relação que media entre as noções de continuum/articulado no ensaio intitulado O Liso e o Estriado (p. 179 a 214). Nele, os autores propõem um conjunto de formulações teóricas que revisam criticamente o tempo-espaço de diversos tipos de tecedura - voltados, em última instância, para a proposição do modelo de progressão reticular (rizomática) que caracteriza à perspectiva filosófica dos autores. Num primeiro jogo de analogias, Deleuze e Guattari fazem dialogar a imagem do “liso” e do “estriado” com a fisionomia e modos de espacialização observável na confecção de tecidos:

Um tecido apresenta em princípio um certo número de características que permitem defini-lo como espaço estriado. Em primeiro lugar, ele é constituído por dois tipos de elementos paralelos: no caso mais simples, uns são verticais, os outros horizontais, e ambos se entrecruzam perpendicularmente: as montantes e as fibras, a urdidura e a trama. (...) Porém, entre os produtos sólidos flexíveis está o feltro, que procede de maneira inteiramente diferente, como um anti-tecido. O feltro não implica distinção alguma entre os fios, nenhum entrecruzamento, mas apenas um emaranhado das fibras, obtido por prensagem. Um tal conjunto de enredamento não é de modo algum homogêneo: contudo, ele é liso, e se opõe ponto por ponto ao espaço do tecido (é infinito de direito, aberto ou ilimitado em todas as direções; não tem direito nem avesso, nem centro; não estabelece fixos e móveis, mas antes distribui uma variação contínua). (DELEUZE-GUATTARI, 1995, p. 180-181. Grifo dos autores) Deixando em suspenso às valorações implícitas na hermenêutica dos autores, parece-me importante sublinhar até que ponto o aspecto dimensional do espaço do tecido (a sua espaciosidade) vê-se afetado pela maneira em que as formas lisas ou estriadas se articulam dentro dele. Um feltro seria “liso” porque, ao estar composto de um amassado não-homogêneo de fibras prensadas, se espalha informalmente em todas as direções - sem verso, reverso nem centro. Contrapõe-se, desse modo, à disposição longitudinal/transversal que caracteriza à extensão biaxial dos fios reitores de um tear. Assim, a lisura do feltro se opõe “ponto por ponto” (paradoxalmente) ao entrecruzamento perpendicular da trama e da urdidura próprio dos espaços “estriados”. Mesmo se tratando de um produto de confecção industrial que aglutina fragmentos de fibras dizimeis numa superfície compactuada, a evolução espacial que segue o design do feltro se comporta como um corpo liso, pois a expansão multidimensional das suas fibras rejeita qualquer tentativa de articulação formal. Já a montagem resultante do cruzamento alterno que vai e vem entre os eixos

vertical e horizontal do tear responde a uma confecção duplamente articulada: o espaço tem se dividido na extensão de duas fileiras contrapostas, e a linha opta por passar distintamente entre elas de acordo com os nexos conectivos que o tecido lhe oferece.

Um poço mais adiante Deleuze e Guattari comentam o caso do patchwork como um tipo particular de lisura:

No patchwork o espaço não é de modo algum constituído da mesma maneira que no bordado: não há centro; um motivo de base (block) é composto por um elemento único; a repetição desse elemento libera valores unicamente rítmicos, que se distinguem das harmonias do bordado (em especial no crazy patchwork, que ajusta vários pedaços de tamanho, forma e cor variáveis, e que joga com a textura dos tecidos). (...) O espaço liso do patchwork mostra bastante bem que “liso” não quer dizer homogêneo; ao contrário, é um espaço amorfo, informal. (DELEUZE-GUATTARI, 1995, p. 182-183. Grifo dos autores)

O patchwork poderia ser visto aqui como um subtipo arcaico de fractal; ele parte (ou não) de um retalho de tecido e adiciona, seguidamente, outros fragmentos, tão heteromorfos quanto o primeiro, os quais se desdobram num jogo multi-textural de cores e desenhos estampados. Trata-se de módulos/retalhos que têm em comum a união costurada dos seus lados, sem indicação de começo, centro, nem previsões que refiram à sua extensão final (ele pode cobrir, indistintamente, a superfície do chão, de uma cama ou de uma árvore). Puro “meio”, ou entre-meio. O patchwork seria um tecido liso - na voz dos autores - pela “liberação de valores rítmicos” provocados pelo princípio de repetição. Contudo, não se trata de uma evolução espacial isomórfica, pois na intensidade que pulsa em cada retalho habita a diversidade, a anárquica multiplicidade. A originalidade que propõe este tipo de confecção consiste em que a sua lisura tem sido pontuada, riscada por um sem-número de acidentes internos (devendo serem inclusas as próprias costuras que ligam os retalhos). Porém, ele se mantem a-morfo, informal, “para aquém” da forma.

Retomando a discussão que norteia o presente item, relacionado à articularidade das marcas inseridas num continuum espaço-temporal de movimentação, vê-se como as mesmas se colocam em diálogo com as valências contidas no modelo de uma trama lisa/estriada. Se a arte da tecelagem, organizada no traçado de fios longitudinais e transversais (dispositivo biaxial da trama e urdidura) se ergue como o protótipo de uma linguagem organizada sobre a base de uma estrutura pré-moldada, o “ritmo” dos espaços lisos evolui, distintamente, segundo uma estratégia reticular. Mesmo assim, para além desta primeira aparência, também os ritmos lisos possuem marcas e pontuações, e precisam, para se desenvolverem, que um conjunto de incidências internas os expandam.

Em boa medida, o que se transparenta nas proposições citadas do livro Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia é uma discussão estética (além de filosófica) ligada aos espaços-ritmos que organizam as progressões dos corpos não-homogêneos. No andamento dessa linha de observações, pretendo fazer ver que tanto os fenômenos chamados de estriados, quanto os lisos, tornam-se apreensíveis às diversas formas de manipulação desde o momento em que o artífice dessas operações (no nosso caso, um improvisador acionando no tempo-espaço da sua dança) consegue identificar as partículas articulantes que sinalizam o comportamento/evolução dessa tecedura gramatical. Seja na corroboração elementar dos eixos de um tear, nos nós de um bordado, nas costuras prolíficas de um patchwork ou nos fios irregulares de um feltro, cada forma de “acidentar” a lisura de uma trama inaugura, de acordo com o modo singular em que esta se articula, uma forma peculiar de se apropriar dela e transformá-la.

Para oferecer ao leitor uma perspectiva sumária dos posicionamentos artísticos que, frequentemente, optam por se afastar do uso de estratégias/procedimentos que proporcionem às suas improvisações certa coesão estrutural, pode ser de utilidade referir aqui uma breve lista de “mal-entendidos” que contextualize o referido assunto. O pior deles, provavelmente, consista em associar à improvisação com o fazer leigo ou iletrado: espécie de semi-analfabetismo, de disartria, de um testar a cegas a continuidade do movimento quando tem-se perdido o rumo (um perambular aleatório que se produz “quando já não se sabe como continuar”). Porém, no campo das artes do movimento, a avaliação pejorativa das modalidades de composição em improvisação - expresso na suposta ausência de uma progressão articulada - contem um irónico revés semântico, pois enquanto se associa essa práxis à ideia de um extravio discursivo se baliza o âmago que motiva-a: o prazer de se abismar no momentum de um tempo imprevisível.

Possivelmente, outro mal-entendido frequente consista na formulação de um reducionismo; a saber: que a improvisação se eleva a sua verdadeiro estatuto linguístico quando é requerida, oportunamente, como meio operacional para veicular outras modalidades da linguagem:

Que não entendemos por ‘improvisação’? O dicionário da Real Academia Espanhola fala sobre ‘fazer uma coisa de repente, sem estudo nem preparação’. Para muitos dançarinos é um método para coletar informação, novo material para uma futura obra: por meio de uma exploração mais ou menos livre se procura o encontro de temas, motivos, ideias que possam ser utilizadas mais tarde numa composição coreográfica. (TAMPINI, 2012, p. 50)