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Ambiguidades do projeto nacional: respeito às diferenças?

2.1 Onde está a diversidade?

2.1.2 Ambiguidades do projeto nacional: respeito às diferenças?

O debate acerca da diversidade proporcionado pelos PCN, em todo cenário da Educação, já pode ser considerado como uma conquista relevante. Temas, antes tabu nas escolas, como sexualidade ou diversidade religiosa, foram postos para discussão através dos documentos elaborados pelo Estado para debater a diversidade.

Os Parâmetros Curriculares Nacionais para o ensino fundamental são formados por um conjunto de dez módulos que foram produzidos a fim de orientar aos professores acerca de uma proposta oficial de temas, conceitos, metodologias de ensino e outros aspectos curriculares para a educação básica. O que era para ser um parâmetro, na concepção da palavra, se configurou na prática como um documento diretivo que pautava a concepção de sociedade e de educação que o Estado defendia no governo de Fernando Henrique Cardoso. Alguns pesquisadores, tais como Vargens & Freitas (2009) e Maranhão (2000), apontam que tais documentos tinham por finalidade última difundir, entre os professores, por via de uma relação de poder, descendente (Ministério – professores), os princípios neoliberais de sociedade e cidadania. Além do forte viés nacionalista, com pretensões unificadoras, apresentadas como, por exemplo, com a ideia de brasilidade ou identidade nacional.

Entre os módulos, existem aqueles responsáveis por apresentar a proposta do Estado de como os temas da diversidade devem ser trabalhados na educação básica. Logo no início, ainda no documento que apresenta os PCN, já se destaca qual é a abordagem que o Estado vai ter diante da diversidade: temas urgentes. Debater diversidade nas escolas é ainda uma urgência, mas o caráter salvacionista que é dado no documento parece ter uma finalidade de

71 colocar o Estado como aquele que surge como herói para tirar os professores de sua confusão. O Estado assume sua postura “civilizatória”, é a manifestação mais intensificada do que Noguera-Ramírez (2011) trata como o “Estado educador”.

Um conceito chave para lidar com a diversidade nos PCN é a ideia de transversalidade. As temáticas da diversidade, englobadas como “pluralidade cultural” e “orientação sexual”, devem aparecer no debate em sala de aula, então, de forma transversal aos conteúdos disciplinares (BRASIL, 1998d). Transversalidade pressupõe “um tratamento integrado das áreas e um compromisso com as relações interpessoais no âmbito da escola” (BRASIL, 1998a, p. 65). Analiso que a estratégia da transversalidade se aproxima de como a diversidade se apresenta socialmente. O currículo disciplinar oferece uma maior concretude na abordagem dos temas, mas tende a fechar os debates em situações particulares e descontextualizadas, como por exemplo, a existência de uma única disciplina para debater sexualidade. Há um ganho na existência dessa demarcação, mas há a perda de no fluxo da formação, esse tema só ser tratado nesta disciplina.

A transversalidade abre a possibilidade dos diversos temas da diversidade irem aparecendo ao sabor da formação. Por outro lado, e aqui penso que foi estratégico alocar a diversidade como tema transversal nos PCN, a transversalidade possibilita uma “diluição” da discussão e uma falta de acompanhamento. Um professor pode trabalhar o tema quando debate história, mas não necessariamente outro professor, de geografia, estará também debatendo. Há uma tendência a deixar à mercê do interesse do professor, e desta forma há uma desresponsabilização do Estado quanto a abordagem do tema. Como bem afirma o documento, “caberá ao professor mobilizar os conteúdos em torno das temáticas escolhidas” (BRASIL, 1998b, p. 30). Em outro trecho, o documento é ainda bem mais explícito e retira do Estado o papel de formar esse professor para que ele possa fazer as escolhas. Argumenta que já nem necessária a formação, “o desafio aqui proposto é o de não esperar por professores que só depois de prontos ou formados poderão trabalhar com os alunos” (BRASIL, 1998b, p. 38)

No entanto, a principal crítica à abordagem da diversidade pelos PCN diz respeito à tendência de sobrepor a ideia de cidadania e todos os conceitos que são trazidos com esta (como, identidade nacional) aos temas da diversidade. Em certos momentos do documento, o texto tenta fazer crer que os problemas históricos que a sociedade brasileira teve, em relação à sua diversidade, se deram por falta de cidadania e que se esta fosse educada nesta direção, todos os males seriam solucionados. A principal justificativa dos PCN, aponta que “eleger a cidadania como eixo vertebrador da educação escolar implica colocar-se explicitamente

72 contra valores e práticas sociais que desrespeitem aqueles princípios” (BRASIL, 1998b, p. 23).

Como destaca Maranhão (2000), a ênfase dada pelos PCN a conceitos como cidadania e identidade nacional, transmite a ideia de que aqueles grupos sociais que foram inferiorizados pela colonialidade no Brasil, durante toda sua história, são carentes desse sentimento de “brasilidade”. A autora ainda destaca que “os ideólogos do PCN acabam configurando, por assim dizer, um universo informe de diversidades, que ora devem ser respeitadas ora devem ser transformadas, transmutando-as numa improvável ausência de identidade” (MARANHÃO, 2000, p. 14). Vargens & Freitas (2009) destacam que esse ideal essencialista de “brasilidade” desvirtua a percepção de que a sociedade brasileira produziu seus “outros” em nome de um projeto nacional.

Esse viés de um projeto nacional se sobrepondo à ideia de diversidade torna-se ainda mais direto, quando há a definição de “pluralidade cultural” no documento. Para o Estado, “pluralidade cultural quer dizer a afirmação da diversidade como traço fundamental na construção de uma identidade nacional” (BRASIL, 1998c, p. 19). Mais adiante, a preocupação com uma unificação em torno de uma nação volta a aparecer, quando se afirma que “pluralidade cultural não é a divisão ou o esquadrinhamento da sociedade em grupos culturais fechados” (BRASIL, 1998c, p. 20). O fim último de se tratar de pluralidade ou diversidade é garantir, através das noções de cidadania e identidade nacional, a “plenitude da nação”.

A escola com sua função normalizadora ganha um papel fulcral neste projeto de nação. O conceito de normalização em Michel Foucault pode ser funcional no entendimento do processo de objetivação desta diversidade. Os estudos foucaultianos apontam como a modernidade se organizou de tal forma que foi permitido o surgimento de saberes e práticas que visavam a objetivação do indivíduo e homogeneização das diferenças. A modernidade se configura através de uma biopolítica que visa à constituição de uma sociedade sadia, utilizando-se de um projeto de conversão dos anormais em sujeitos normais. Para tal, os saberes da pedagogia e a instituição escolar vão funcionar como peças dessa engrenagem, dando ao processo de normalização seu caráter motriz.

A escola se ordena pela disciplina. É esta que exerce controle sobre as ações dos sujeitos institucionalizados. Através da disciplina, que se expande como tecnologia de dominação na Idade Moderna, é possível ter controle sobre o tempo e o espaço escolar. Era preciso controlar um grande número de alunos simultaneamente, fazendo assim com que a organização espacial celular e serial se tornasse indispensável. Desta forma, indivíduos são

73 classificados, hierarquizados e ordenados em suas multiplicidades. Esta ordenação garante o maior controle sobre esses indivíduos e uma maior eficácia nas funções da escola.

O disciplinamento na escola se dá pelo exercício do poder da sanção normalizadora. A sanção serve como mecanismo de julgamento no pequeno tribunal que se estabelece na escola, onde se instituem leis e infrações próprias que buscam ordenar as diferenças entre os indivíduos. Assim, a sanção normalizadora vai impor uma série de penalidades aos que se desviam das normas estabelecidas (assiduidade, participação, zelo, respeito à autoridade e afins). Para tal, o exame ocupa um lugar estratégico na avaliação, divisão e punição dos sujeitos infratores. Na escola ocorrem exames ininterruptos, é através deles que os saberes sobre os indivíduos são produzidos para o gerenciamento do planejamento da normalização.

A partir da sanção normalizadora, do disciplinamento e do exame, que tem por mérito aferir e vigiar, o poder da norma se estabelece na escola. A norma, como aponta Canguilhem (2011), tem por função primordial combater a anormalidade. Ela surge não como uma força para manter o equilíbrio das diferenças, mas para corrigir aquilo que desvia. Assim a norma é anterior ao normal e ao anormal, a norma inventa o normal e o anormal. É para combater o que se tem como desvio (anormalidade) que as instituições modernas formulam normas, e nesse processo, invariavelmente, marcam uma divisão social que estabelece normais (que cumprem as normas) e anormais (que se desviam das normas). O normal é a aparência, a norma é a essência. Canguilhem (2011, p. 190) acrescenta que “uma norma se propõe como modo possível de unificar um diverso, de reabsorver uma diferença, de resolver uma desavença”. Em outras palavras, a normalidade advém da normatividade.

Portocarrero (2004, p. 175) destaca que tanto Georges Canguilhem, como também Michel Foucault, definem que a normalização “constrange para homogeneizar as multiplicidades” e “tornar úteis as diferenças”. E é o constrangimento, a homogeneização e cristalização das diferenças que vêm marcando o processo histórico de normalização dos sujeitos na escola. E é esse o repertório que o Estado aciona para pensar pluralidade cultural e orientação sexual.

No que tange a questão da sexualidade, pode ser considerada uma conquista sua entrada do debate no cenário escolar. A sexualidade sempre foi um tabu e a abertura para a pesquisa, a formação e o diálogo sobre o tema já é um primeiro passo para a Educação. Entretanto, novamente o problema está na forma como o Estado faz uso dessa oportunidade para implementar outros projetos de sociedade. Como destaca Altmann (2001), os PCN tomam a sexualidade por um prisma naturalizado e direcionam o debate colocando o Estado

74 no papel do educador, dando um caráter informativo e normativo ao documento. Ou a sexualidade aparece sob um viés biológico e uma questão de saúde pública, ou como naturalmente dada, aparecendo ao longo da história.

A autora destaca que a normalização parece ser a tônica quando também se trata da diversidade sexual. Segundo Altmann (2001, p. 584), “através da colocação do sexo em discurso, parece haver um complexo aumento do controle sobre os indivíduos [...] através de mecanismos, metodologias e práticas que visam a produzir sujeitos autodisciplinados no que se refere a maneira de viver a sua sexualidade”. Como bem enfatiza Altmann, em nenhum momento nos PCN há uma problematização da sexualidade.

Não há um debate sobre a questão das orientações sexuais. A única vez que o termo “homossexualidade” aparece no documento serve para tomá-la como uma das “questões mais

polêmicas em sexualidade” (BRASIL, 1998c, p. 88). Vale ressaltar que a homofobia em 1998,

assim como nos dias de hoje, era um problema social relevante. Pesquisas apontavam que no ano de 1997, um total de 120 assassinatos com motivações homofóbicas foram registrados. Em 1998, até outubro, esses registros já estavam em 100 assassinatos. Todos marcados por requintes de crueldade e perversidade, como o caso de um jovem que foi encontrado com mais de 80 facadas (SBT, 2015).

No entanto, em detrimento de se pensar uma educação anti-homofóbica, ou anti- racista, uma educação que promovesse um questionamento sobre a violência que marca a questão da intolerância às diferenças no país, o Estado sobrepôs seu interesse por um projeto nacional e por uma subjetividade neoliberal, forjada de cidadania, para pautar a formação para a diversidade. Os PCN, desta forma, nos seus 17 anos de implementação, reproduzem a mesma ambiguidade histórica que o Estado assume quando se trata de temas que vão de encontro ao seu projeto homogeneizador. Ausência, ambiguidades e disciplinamento se repetem nos discursos oficiais acerca da diversidade. É esta “confusão” que desce com o poder de documentos orientadores para regular o fazer pedagógico nos estados e municípios. É esta mesma “confusão” que chega nas regulações dos cursos de ensino superior. É esta “confusão” que pauta a construção de curso de licenciatura, como por exemplo, estes da realidade do campus de Grajaú.

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