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Ambivalência persistente na leitura sobre a função histórica de Roma

Oráculos bíblicos de fim projectados por sobre o fim de roma

5. Ambivalência persistente na leitura sobre a função histórica de Roma

Caracterizámos a imagem de Roma, no judaísmo do século II, a. C., como uma leitura de colorido ambivalente. Ora, essa leitura dividida sobre o significado histórico que devia reconhecer-se a propósito de Roma acabou por se transformar numa fórmula cuja validade transitou do judaísmo para o cristianismo, continuando a motivar atitudes opostas, polarizadas entre a a vontade de rejeição e o impulso de assunção. O cristianismo nasceu numa ecúmena que, para além da hegemonia política, reconhecia uma espécie de presidência romana, entre sentimentos de entusiasmo, resignação e alguma revolta. Este enquadramento é particularmente sublinhado no início do

Evangelho de Lucas35 e projecta-se programaticamente em direcção a Roma,

34 Cf. Saoût 2004 169-170.

35 Lc 2, 1-6. Se, como parece ser facto, o recenseamento aludido por Lucas tiver tido lugar na Síria-Palestina uns doze anos depois do nascimento de Jesus, maior pertinência ganha a vontade de fazer deste horizonte romano-planetário o enquadramento histórico significativo

como nos mostra, de seu punho, o mesmo Lucas no livro dos Actos dos

Apóstolos36. Assim se recuperavam algumas das razões de apreço do primitivo

judaísmo pelo mundo romano. O tempo e o contexto de Lucas37 valorizavam

essa leitura positiva da sombra romana por sobre o palco da história comum. Não deveria sequer ser muito fácil continuar a propor estas perspectivas nos anos que se seguiram à destruição de Jerusalém, no ano 70. O tom amargo que se pressente no Apocalipse, algumas dezenas de anos mais tarde, no contexto específico da Ásia Menor dos finais do século I38, parece oferecer uma leitura

completamente negativa sobre o significado histórico de Roma. Ela é ali identificada como a antonomásia histórica do mal e da opressão. O capítulo 18 faz de Roma a grande Babilónia, a muito criticada prostituta da história.

Em contraposição, o quinto império, que, no esquema de Daniel, não foi definido com esta fórmula rigorosa de seriação, foi apresentando sempre modalidades diferentes, em cada nova proposta de formulação, de acordo com as perspectivas e os interessas de cada um dos que se agarravam às expectativas nele concentradas. O seu estatuto pode ser tão variado e sugerido de forma tão subtil; pode buscar alternativas de poder de modelo tão diferente que nem sequer se lhe atribui o rótulo específico de um novo império. Assim acontecia, logo de início, no livro de Daniel, onde, apesar do aparato da vinda de uma figura como um filho de homem sobre as nuvens do céu, isso apenas significava a consciência ou o desejo de que tivesse chegado a hora de o poder passar para as mãos dos santos do Altíssimo. Aliás, a falta de numeração de série para a quinta figura de poder, o facto de não ter figuração como animal e a sua caracterização como um simples ser humano indicam que os quatro impérios identificados com um animal são vistos como maus.

O cristianismo primitivo apresenta três atitudes diversificadas relativamente ao poder romano: o reconhecimento de uma autoridade que promove a ordem social existente; a contraposição entre duas ordens de realidade e de valores diferenciados; e uma mais radical atitude que demoniza as entidades, individuais e colectivas, que se identificam com o poder imperial. O livro do

Apocalipse parece situar-se sem grandes dúvidas nesta última posição39.

A quinta fase da história sob o ponto de vista da concentração de poder, não podia ser considerada um império. E este matiz contrasta com a naturalidade

para o nascimento de Jesus.

36 Este é o horizonte de difusão do cristianismo proposto como programa no livro dos Actos, tal como se pode ver pela coincidência entre o projecto (Act 1,8) e a realização (28,16-28).

37 Situado entre a Síria e Roma, a partir de meados do século I.

38 De vários elementos internos, parece resultar inquestionável que o Apocalipse tenha tido origem em ambientes cristãos, talvez até minoritários, na costa sudoeste da Ásia Menor. Patmos seria uma referência tradicional verosímil, portanto.

com que ocorre o conceito de império para esta quinta etapa na linguagem de António Vieira. A fórmula é suficientemente concentrada e também genérica para se manter esta importante transferência em estado de indefinição até aos dias de hoje, deixando inevitavelmente pairar um sentimento de desencanto. Foram as re-elaborações estratégicas posteriores desta expectativa que levaram à formulação de sucessivos rótulos, entre os quais podemos mencionar, no nosso próprio contexto cultural português, o célebre rótulo de Quinto Império. Esta fórmula identifica sobretudo a elaboração genial que se deve ao Padre António Vieira, numa viragem radicalmente significativa da nossa história política nacional e até mesmo num ponto crucial da civilização mundial que ele soube perceber.

O fim de Roma anunciado no Apocalipse deve, por conseguinte, entender- se como um julgamento que incide sobre o sentido da sua regência histórica, eventualmente figurada e politicamente vivenciada através da “aparição” de uma moeda com a efígie da dea Roma, a circular diante dos olhos do autor asiático e dos seus primeiros leitores cristãos. Não é a visão de um fim real pré-anunciado nem sequer previsto de forma concreta; é uma sentença de condenação40; é a antevisão e a convocação do género de fim que as injustiças

e excessos com que Roma sobrecarregou a sua imagem ao longo da história definitivamente merecem. O discurso apocalíptico foi exímio a processar sínteses de evidência sobre o sentido da história, com base na acumulação de dados convergentes41.

Transposta para o Apocalipse, esta tradição literária de oráculos contra uma cidade-nação tem dado a impressão, ao longo de milenares leituras cúmplices, de ser uma imagem de fim para o mundo inteiro. As tonalidades míticas do discurso apocalíptico projectam naturalmente universalidade. Porém, no seu espaço histórico, estes oráculos nunca deram a impressão de ser uma profecia sobre o fim do mundo conhecido. Um tal conceito seria até, para os antigos orientais, perfeitamente incompreensível. Pelo contrário, esta leitura de fim universal tem ocorrido com facilidade no imaginário colectivo, ao longo da história de leitura deste livro. Houve, sem dúvida, uma transformação de perspectivas; ou então poderá existir algum movimento semântico pendular, no interior destas metáforas.

Na verdade, esta ambivalência simbólica de Roma no horizonte deste julgamento pode ainda continuar a convergir de forma coerente com a intencionalidade essencial da mundividência apocalíptica, a qual não consiste em proclamar o fim de uma cidade ou do próprio mundo, mas acreditar e

40 Ap 17,1. A fórmula de “julgamento da grande prostituta”, escolhida por J Carreira das Neves 2007 394, soa perfeitamente correcto, do ponto de vista hermenêutico.

propugnar pela transformação do estado do mundo, de forma empenhada e utopicamente radical. É possível que a forma taxativa com que a apocalíptica parece propor a imagem de fim provenha precisamente do seu carácter utópico e radical. Com efeito, imediatamente antes do seu epílogo (Ap 21,9-22,5), reaparece a figura metafórica da noiva, já apresentada em cerimónia nupcial em Ap 19,7-9 e agora transformada numa cidade nova, cidade noiva, a Jerusalém trono de Deus e centro de um mundo novo, com características de paraíso (Ap 21,15-22,5).

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