• Nenhum resultado encontrado

O fim de Roma no Apocalipse, 17,1 a 19,10.

Oráculos bíblicos de fim projectados por sobre o fim de roma

3. O fim de Roma no Apocalipse, 17,1 a 19,10.

Tal como acontecia em 1Mac 8, também em Ap 17 se assinala a referencia a uma rede mundial de parceiros que estão articulados com o destino de Roma. Cabe-lhe a ela evidentemente a função de presidir. Contudo, o ambiente que se reflectia no Livro dos Macabeus, por volta em 150 a. C., era de êxito, entusiasmo e colaboração. Pelo contrário, a imagem desta nova globalidade romana exposta no Apocalipse é de fracasso, suspeição e inveja e de ameaça mútua. É o mundo que desmorona sobre Roma. Em vez de ser o seu palco de sucesso, é a fonte da sua ruína.

Por outro lado, os traços com que se descreve a cidade de Roma e o tratamento metafórico que lhe é dado nem sequer dependem do conhecimento directo ou indirecto da realidade urbana da grande cidade capital. Pode tratar- se, na prática, de uma transposição imagética feita com toda a probabilidade a partir da imagem inscrita numa moeda com a efígie da dea Roma que começou a circular na província da Ásia pelos finais do séc. I, d. C14. Avulta sobre esta

paisagem histórica a figura do imperador Domiciano e a imagem existencial do poder de Roma, apresentada como uma deusa em efígie numismática a circular nesta província da Ásia15.

Esta imagem foi inicialmente fixada em peça de numismática, mas a frequentação cultural serviu para lhe preparar a capacidade literária de metáfora, servindo de modelo apocalíptico, para garantir efeitos surpreendentes: ganha o estatuto de uma visão16. Assistimos desta maneira ao processo cultural de

uma espécie de narratividade ecfrasística que segue o género literário próprio de uma visão. Esta transposição dá ao quadro um ritmo mais dinâmico, movimentado e intenso e, por outro lado, enquadra o discurso no contexto claramente apocalíptico, onde as realidades são apresentadas como grandes visões. É uma maneira prática e eficaz de fazer incidir a intencionalidade hermenêutica sobre os conteúdos visionados. No discurso apocalíptico e no discurso bíblico em geral, as visões são géneros literários de contextualização ou encenação hermenêutica.

14 Cf. Carvalho 2009 112-148. 15 Aune 1998 919-928. 16 Ap 17,3-18.

O capítulo 17 contém uma narrativa onde a figura central é Roma, sem o seu nome explícito mas com os traços mais distintivos. O capítulo 18 é uma liturgia trágica, onde Roma aparece revestida de uma Babilónia mais carregada de símbolismo e com o dramatismo tradicional da queda das cidades (Ap 17,3-18). Esta queda acontece por intervenção de Deus, sugerindo que se trata propriamente de um juízo e não de um facto, seja em relato seja em prenúncio. Falar de intervenção de Deus é mais para sugerir um significado do que narrar ou antecipar uma intervenção ou uma causalidade factual. A forma literária tradicional era já uma síntese final como sentença em actuação, sem se ocupar dos agentes dessa destruição.

O facto de a figura sujeita a juízo, na lamentação litúrgica do cap. 18, ser uma cidade sublinha ainda mais que aquele julgamento vai incidir directamente sobre o programa político e a prática de poder, sobre o seu estatuto ético e sentido axiológico, destacado sobre o horizonte do mundo e da história. A ressonância universal sugerida assim o diz. O elenco das três personagens que proclamam uma lamentação em Ap 18, 9-19.21-24 representa sectores significativos da acção político-económica da(s) cidade(s), nomeadamente reis, comerciantes e marinheiros17. Está assim bem definida a fórmula social

essencial de uma cidade oriental, situada na orla marítima. Não esquecer que a lamentação-juízo sobre a cidade fenícia de Tiro em Ez 27-28 parece ser uma das principais fontes de inspiração do autor do Apocalipse. Recorrendo à imagem de Tiro, Ezequiel não está a apontar a figura de um inimigo próximo que representasse alguma ameaça; está a servir-se de um cliché histórico da cidade como identidade cultural.

Na elaboração do quadro sobre a queda de Roma, exposta com bastantes mais ecos do que pormenores ao longo dos capítulos 18 e 19, o autor reutiliza, com intuito de actualização, a riqueza de um património histórico-literário que encontramos na Bíblia, em estado de permanente releitura e actualização. Este género deriva de um tema clássico e já milenar nas culturas do Oriente antigo, de que podemos referir, como ocorrência mais antiga, a lamentação sobre a queda de Acad ou Agadé e, já dentro da Bíblia, o célebre livro das

Lamentações, que a tradição foi associando ao nome de Jeremias18.

As mais conseguidas e vistosas realizações deste género literário encontram-se na linha dos “oráculos contra as nações”. Esta actividade de pronunciamento sobre o estado das relações internacionais que, neste caso, diziam respeito aos hebreus identificava-se com uma das tarefas que a função profética mais frequentemente representava. Os casos mais notórios podem

17 Carvalho 2009 515.

encontrar-se em Isaías19, Jeremias20, Ezequiel21, Joel22, Amós23; Abdias24,

Naum25, Sofonias26.

Relativamente ao tema que estamos a tratar, é sobre os textos de Is 47, Ez 26-28 e Jr 51 que o efeito de sobreposição hermenêutica entre a imagem da Babilónia e a função de Roma se realiza mais claramente27. O recurso ao

tema da condenação das nações, proveniente dos discursos proféticos, dá a entender que a literatura apocalíptica não pretende somente iluminar por novas perspectivas o horizonte humano do seu tempo, mas, com um sentimento mais nacionalista, pretende ainda mostrar solidariedade com os outros povos que estavam dominados pelos romanos, reforçando a ideia de que o seu poder pudesse ser substituído28.

Uma tónica comum a todos estes discursos é o facto de eles sublinharem as referências ao fim das cidades e povos nomeados e postos como alvo de pronunciamento e juízo. A decisão com que o fazem parece sugerir que é o fim real que está em causa e de que aquela intervenção configura uma profecia cujo cumprimento realmente se espera. Não é, contudo, este o sentido que a história nos confirma. Estes discursos constituem, na verdade, um pronunciamento “historiológico”: é o sentido e o juízo sobre aquele modelo histórico de poder aquilo que se encontra sob análise; e o fim de que se fala é um voto para que, o mais depressa possível, chegue ao fim aquele modelo de poder. Aquilo que aqui se faz é, por conseguinte, um discurso hermenêutico com a intencionalidade de um sentenciamento axiológico. Estes oráculos são, por conseguinte, uma promoção do fim em causa, sem promover ou organizar uma qualquer revolta militar ou assédio. Aquilo que designámos como juízo “historiológico” mantém a seu carácter quietista: é uma análise sobre a justiça dos poderes. O que faz é definir e declarar. É esse o seu tipo de intervenção.

19 Is 14-20: Oráculos sobre Babilónia, Assírios, Filisteus, Moab, Damasco, Etiópia e Egipto; Is 21: queda da Babilónia, Idumeia, Arábia e Quedar; Is 22: Chebna; Is 23: Tiro e Sídon; Is 24: destruição da terra; Is 34: pequeno apocalipse; Is 46-47: queda da Babilónia.

20 Jr 25-38: Contra as nações estrangeiras (25,31: juízo contra toda a humanidade); Jr 46- 51: oráculos contra Egipto, Filisteus, Moab, Amon, Edomitas, Damasco, Quedar, Haçor, Elam, Babilónia.

21 Ez 25-31: Oráculos contra Amonitas, Moabitas, Edomitas, Filisteus; Tiro e Sídon; Faraó e Egipto.

22 Jl 4: Julgamento das nações pagãs congregadas no Vale de Josafat..

23 Am 1-2: Oráculos contra as nações. Damasco, Filisteus, Tiro e Fenícios, Edomitas, Amonitas, Moabitas e até Israel e Judá; Am 8,8-14: Dia do Senhor.

24 Abd: Edom e Dia do Senhor: “e o reino pertencerá ao Senhor” (21). 25 Na 2,4-3,19: Ruína de Nínive. (texto sintético e rico).

26 Sf 1-2: Dia do Senhor e oráculos contra as nações, nomeadamente Filisteus, Moab, Amon, Etiópia, Assíria,

27 Carvalho 2009 418 28 Antonio Piñero 1991 215.

Por princípio ou por resolução de uma impotência clara e assumida29.

Há, todavia, no movimento com que se anuncia o fim de Roma, um efeito de conspiração de poderes hostis em direcção a ela (Ap 17,13.17). Porém, essa convergência é reiteradamente caracterizada como sendo fátua e improcedente. Afirmar de forma quietista a proclamação da justiça e do direito é a atitude de realismo que resta.

Entretanto, o sinal claro de que não se trata de uma sentença de fim é o facto de se anunciar que o império que se vai seguir é de um outro tipo completamente diferente. Ele pertence a uma figura surpreendente, o Cordeiro, imagem de fraqueza dotada de autoridade. E esse novo império é, na verdade, uma festa de casamento; são as bodas do próprio Cordeiro (Ap 19,5-10).

A esta radical mudança de perspectiva acresce ainda a subtileza de este julgamento e queda poderem ter um sentido de conversão. Os oráculos sobre as nações seriam um combate pela correcta prática de poder e não pela destruição dos seus eventuais maus executantes30. A ideia de um juízo com

intuito de correcção pode ser uma valência real para uma leitura complementar e sistémica dos oráculos contra as nações.