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Capítulo 2. Expressões de heroísmo no Antigo Egipto

2.2. O fenómeno dos humanos divinizados

2.2.2. Amenhotep, filho de Hapu

Amenhotep, filho de Hapu é uma figura mais bem conhecida, uma vez que nos chegaram mais informações, não só acerca da sua vida, como também sobre a elevação desta personagem de simples mortal a ser divino.219 Nasceu em Athribis, na região do

Delta, no seio de uma família modesta, durante o reinado de Tutmósis III (r. 1479-1425 a.C.)220 e passou grande parte da sua vida na cidade natal, onde desempenhou as funções

de escriba e sacerdote de Hórus-Khentikheti. Tinha já cerca de cinquenta anos de idade quando foi chamado a trabalhar na corte pelo faraó Amenhotep III. Uma vez na corte, rapidamente se tornou arquitecto-chefe e o principal escriba real.221

Este alto funcionário desempenhou várias funções ao longo da sua carreira.222 Foi

considerado o terceiro maior arquitecto da Antiguidade, foi militar e, além disso, foi-lhe atribuída a autoria de vários livros de magia, tornando-se conhecido como alguém dotado de uma extraordinária sabedoria.223 Ficou ainda responsável pela construção de diversos

monumentos na região de Tebas, incluindo as estátuas colossais que ficaram conhecidas

217 Vd. WILDUNG, D., op. cit., pp. 69-70.

218 Para evitar ambiguidades, ao seu nome próprio é acrescentada a filiação, uma vez que este homem viveu durante o reinado de um faraó com o mesmo nome, Amenhotep III.

219 Vd. WILDUNG, D., op. cit., p. 83.

220 Cf. VANDERSLEYER, C., “Amenhotep, son of Hapu” in REDFORD, D. B. (ed.), op. cit., vol. 1, p. 70. 221 Cf. WILDUNG, D., op. cit., pp. 83-84.

222 A lista de cargos e actividades desempenhadas por Amenhotep, filho Hapu ao longo da sua carreira era tão extensa e variada que este decidiu deixá-la inscrita em várias estátuas. Sobre estes cargos e actividades veja-se WILDUNG, D., op. cit., p. 84. Para aprofundar a temática das estátuas de Amenhotep, filho de Hapu, veja-se SIMMANCE, E., Amenhotep son of Hapu: Self-presentation through statues and their texts in pursuit of semi-divine intermediary status [MA Thesis], Birmingham, University of Birmingham, 2014. 223 Vd. SALES, J. das C., op. cit., pp. 378-381. Este fenómeno chama-se pseudepigraphia e consistia na atribuição de textos como Instruções ou Sabedorias a figuras prestigiadas da sociedade ou da História de um povo, muito embora estes não fossem, na realidade, os seus autores. Cf. RAY, J., op. cit., pp. 14-15.

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como Colossos de Mémnon e que são, muito provavelmente, as maiores esculturas alguma vez construídas no Antigo Egipto.224

O oficial morreu com cerca de oitenta anos e foi sepultado num túmulo semelhante aos dos faraós da XVIII dinastia, que o próprio mandara construir, próximo do Vale dos Reis.225 Assim, Amenhotep, filho de Hapu demonstrava – não apenas pela forma, mas

também pela localização da sua sepultura – a importância de que gozava no seio da sociedade egípcia:

Amenhotep was given permission to build his tomb on the royal plan near the royal tombs, a privilege accorded only to a few princes and queens. He even was permitted to build a temple that was larger than some of the royal mortuary temples in western Thebes. This indicates that Amenhotep had left behind him the domain of the simple mortals even before he had died.226

Enquanto foi vivo, Amenhotep, filho de Hapu operava como intermediário entre os súbditos e o faraó e, tomando partido desta situação, actuou de forma a tornar-se um mediador entre os homens e os deuses após a sua morte, nomeadamente através da colocação de estátuas suas no templo de Amon, em Karnak.227 Tornou-se alvo de culto

logo no Império Novo, precisamente na qualidade de intercessor entre os planos terreno e divino. Com o passar do tempo, os seus atributos complexificam-se e no Período Greco- Romano é visto, sobretudo, como uma divindade com poderes curativos.228 O culto a

Amenhotep, filho de Hapu, irá tornar-se particularmente expressivo a partir do Período Ptolomaico, altura em que passa a ser denominado de “grande deus” e lhe é atribuída uma família divina: Tot e Sechat.229

Amenhotep, filho de Hapu, começou por ser representado como um homem de idade que usava uma peruca. Já no Período Grego, foram acrescentados, à sua iconografia tradicional, um rolo de papiro e uma paleta de escriba, espelhando a sua faceta de sábio, que começou a ser salientada nesta época.230

224 Cf. WILKINSON, R. H., The complete gods and goddesses of Ancient Egypt, p. 92. 225 Cf. DAVID, R. & DAVID, A. E., op. cit., p. 8.

226 WILDUNG, D., op. cit., p. 88.

227 Cf. Idem, p. 87. Sobre esta questão veja-se também GÁLAN, J. M., “Amenhotep son of Hapu as intermediary between the people and god” in HAWASS, Z. & BOCK, L. P. (eds.), Egyptology at the dawn of the twenty-first century: Proceedings of the Eight International Congress of Egyptology, Cairo, 2000, vol. 2, Cairo-New York, The American University in Cairo Press, 2003, pp. 223-225.

228 Vd. KÁKOSY, L., “Imhotep and Amenhotep son of Hapu as patrons of the dead” in Acta orientalia academiae scientarum hungaricae 21, 1968, pp. 111-112.

229 Cf. WILDUNG, D., op. cit., pp. 92-94; 98-99. 230 Cf. Idem, pp. 89; 97-98.

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À semelhança de Imhotep, Amenhotep, filho de Hapu, atingiu um estatuto muito elevado após a sua morte, tendo sido sepultado próximo de faraós, representado em estátuas como mediador entre os homens e os deuses, bem como cultuado e considerado como um deus curandeiro.231 Não obstante, não gozou de uma popularidade tão grande

quanto a de Imhotep, com o seu culto a centrar-se sobretudo na região de Tebas. No Período Ptolomaico é dedicada uma capela ao culto desta figura no templo de Deir el- Bahari, na qualidade de divindade curandeira e de mágico.232

A popularidade de Amenhotep, filho de Hapu, explica-se pelo facto de este, de certo modo, representar o modelo do Egípcio perfeito, cujo exemplo devia ser seguido:

The simple people really began to look upon Amenhotep as a god because they appreciated the typically Egyptian qualities he personified; they thought of him as an individual who was hard working, technically skillful, clever in politics and even sly, loyal to the king, and deeply religious. He provided the people a kind of simple, uncomplicated divinity, and he assured himself a memory that lasted for centuries.233

Durante o Período Greco-Romano desenvolve-se uma associação entre o morto e os sábios Imhotep e Amenhotep, filho de Hapu. Esta ligação teria como objectivo facilitar a entrada do defunto no Além que, desta forma, adquiria magicamente conhecimentos profundos acerca dos textos funerários e do plano divino, aumentando, consequentemente, as suas hipóteses de alcançar a eternidade.234

László Kákosy defende que, muito embora ambas as figuras fossem consideradas divindades, havia um factor de distinção entre elas: enquanto Amenhotep, filho de Hapu, era venerado devido à sua personalidade e carreira, Imhotep era encarado como um deus beneficente, ao qual os Egípcios recorriam em momentos de aflição.235

231 Vd. VANDERSLEYER, C., op. cit., p. 70. Adam Lajtar escreve um artigo acerca do culto destas duas figuras em Deir el-Bahari no Período Greco-Romano, no qual analisa o processo de divinização de Imhotep e de Amenhotep, filho de Hapu, bem como os seus níveis de popularidade e a sua distribuição geográfica. Vd. LAJTAR, A., “The cult of Amenhotep son of Hapu and Imhotep in Deir el-Bahari in the Hellenistic and Roman periods” in BINGEN, J. (dir.), Papyrologica Bruxellensia 34, Bruxelles, Association Égyptologique Reine Élisabeth, 2008, pp. 113-123.

232 Cf. SALES, J. das C., op. cit., p. 382. 233 WILDUNG, D., op. cit., p. 109. 234 Cf. KÁKOSY, L., op. cit., pp. 112-116. 235 Vd. Idem, pp. 110-111.

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A partir destes dois exemplos identificamos casos de homens que, por terem adquirido uma posição elevada na hierarquia social egípcia devido às suas capacidades e sabedoria, são reverenciados após a sua morte, tornando-se semelhantes aos deuses e sendo alvo de um culto e de uma adoração de cariz religioso. Na nossa opinião, estes homens eram vistos pelos Egípcios como heróis populares, pois haviam sido figuras de destaque na sociedade, às quais – mesmo após a sua morte – eram atribuídas capacidades extraordinárias e poderes mágicos. Estes não só eram considerados inventores, sábios e produtores de conhecimento, como eram também vistos como figuras capazes de proteger e de curar os homens de males e doenças e, ainda, de interceder pelos crentes junto dos deuses, escutando as suas preces.236 Deve ser sublinhado que estas figuras, para além de

estabelecerem uma ligação entre os planos humano e divino, inscrevem-se no quadro de figuras heróicas que transmitem algo de benéfico à comunidade.