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Em 7 de setembro de 1935, Camargo Guarnieri escreveu a Curt Lange, em resposta à solicitação do musicólogo que lhe pedia uma nova composi- ção para o segundo tomo do Boletín Latino-Americano de Música, perió- dico por ele lançado naquele ano:

Quero, primeiramente, agradecer-lhe a inclusão da minha composição no “Boletín”, assim como, mandar- lhe os meus sinceros parabéns pela sua brilhante rea- lização. Graças à sua formidável atividade o “Boletín Latino Americano de Música” honra e enobrece, nós,

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5SMITH, Anthony D. Conmemorando a los muertos, inspirando a los vivos. Mapas, recuerdos y moralejas em la recreación de las identidades nacionales. Revista

Mexicana de Sociologia. Año LX, n. 1, enero-marzo, 1998. p. 62.

6FRANCFORT, Didier. Le chant des nations. Paris: Hachette Littérature. 2004. p. 14: “[...] la réflexion s’infléchitet se porte sur l’importance de la musique non comme ex-

pression d’une nation constituée mais comme composante d’um processus de construction de la nation ou de nationalisation des masses”.

7Ibid. p. 370- 371.

8 Os vínculos entre os nacionalismos e uma concepção de identidade latino-americana têm sido pouco estudados pela historiografia contemporânea, destacando-se, neste

sentido, a pesquisa de BERABA, Ana Luiza Segala Pauletto. Teias culturais interamericanas nos anos 40. Um estudo de caso: pensamento e América. Monografia (Gra- duação em História Social), Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de janeiro, 2005. Tal vinculação, entretanto, já emergira no decorrer do século XIX, em obras de cunho apologético, como nos volumes: RODO, Jose Enrique. Ariel: breviário da juventude. Rio de Janeiro: Renascença, 1933, e MARTI, José. Nossa América. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 1991.

aqui da América do Sul. Com prazer satisfaço o seu pedido, mando-lhe a minha composição, inédita: 2ª So- natina para piano. Para os números vindouros do “Bo- letín”, você pode contar com a minha colaboração, pois terei grande satisfação nisso. Com um grande abraço, do amigo e admirador de sempre. Camargo Guar- nieri.

O Boletín Latino-Americano de Música destacou-se no conjunto das re- vistas especializadas de sua época, ao constituir-se como principal ór- gão de divulgação do americanismo musical, movimento cultural que, se- gundo discurso do próprio Curt Lange, fora iniciado pouco antes, em 1933. Comentando sua proposta, Curt Lange afirmava que “[...] poucas pessoas, poucos músicos profissionais, poucos professores de História da Música sabem o que se passa além das fronteiras da Pátria”9, o que justifica- ria a relevância de tal empreendimento.

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9Boletín Latino-Americano de Música. Montevidéu, 1935.

CAPA DO TOMO I DO SUPLEMENTO MUSICAL DO BOLETÍN LATINO-AMERICANO DE MÚSICA, CRIADA POR PORTINARI. 1935. Série 3.039.03.04. Acervo Curt Lange.

CAPA DO TOMO I DO BOLETÍN LATINO-AMERICANO DE MÚSICA. 1935. Série 8.1.07.12. Acervo Curt Lange.

O movimento do americanismo musical foi considerado, por Luis Hei- tor Correa de Azevedo10, um fator a “[...] favor do desenvolvimento, afir- mação consciente e divulgação das produções e recursos artísticos de um grupo de nações”11; mais ainda, o musicólogo afirmou que: “Il y a donc, dans toutes ces musiques, quelque chose qui les apparente les unes aux autres et les unes et les autres, à la musique italienne ou à la musi- que française. Cette chose est l’esprit de latinité, si vivant et si prestigieux dans toute l’Amérique du Sud”12.

O movimento liderado por Curt Lange, dentre outras metas, propu- nha-se a incentivar publicações no campo musical, como a de um Dicioná-

rio Latino-Americano de Música e de um Guia Profissional Latino-Ameri-

cano, destinados à impressão e à divulgação das obras dos compositores do continente, mas o destaque editorial situava-se no Boletín Latino-

Americano de Música, responsável pela “[...] difusión de valores indis- cutibles, “[…] elevación de los mismos, a la obtención del respeto que ellos merecen dentro y fuera de los limites regionales, nacionales y con- tinentales.”13 Curt Lange também planejava apoiar a fundação de insti- tuições culturais, como a de uma biblioteca voltada para a guarda de toda a produção musical do continente, bem como a de uma discoteca e de um museu musical latino-americano. Além disso, ele estimulava a organiza- ção periódica de congressos de música em vários países.

Buscando fortalecer sua proposta, Curt Lange também preocupou-se com a educação musical promovida nas escolas, a formação de um público apto a compreender a produção musical latino-americana contemporânea e o aper- feiçoamento dos compositores latino-americanos. Ademais, a proposta de Curt Lange, ultrapassando as esferas da produção e da educação musicais, incorporava elementos de variadas expressões artísticas: “La colabora- ción de destacados pintores, representa una iniciativa que más adelante tomará la importancia que merece la creación de las artes anexas a la música”14.

Para realização de todos esses propósitos, Curt Lange, além de man- ter intensa atividade epistolar com os mais diversos agentes, percorreu vários países, realizando conferências:

Admiro a sua resistência e altruísmo viajando sem parar, por toda a América, levando sua grande cultura a fim de esclarecer os espíritos menos avisados. A sua obra, o ‘Boletim Latino-Americano’, é o melhor

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10Luiz Heitor Correa de Azevedo (1905-1992), musicólogo e folclorista brasileiro. Destacou-se com produção de extensa obra sobre a música brasileira e com a partici-

pação de artigos sobre música no jornal A Manhã entre 1944 e 1945. Em Paris, criou o Instituto de Altos Estudos da América Latina na década de 1950. Cf. Enciclopé-

dia da música brasileira: erudita, folclórica e popular. 3. ed. São Paulo: Arte Editora/Itaú Cultural/Publifolha, 1998. p. 457.

11Revista Brasileira de Música, Rio de Janeiro, Instituto Nacional de Música, v. 1, n. 2. 1935. p. 230.

12AZEVEDO, Luiz Heitor Correa de. La Musique dans les pays latins da Revue Musicale, Paris, 16 dez. 1939, p. 81. Esse musicólogo comenta ainda, em artigo intitu-

lado La vie musicale à Rio de Janeiro publicado por La Revue musicale em jul/ago de 1938: “Citons enfin, parmi les nouveautés, la délicieuse Seresta pour piano, de O. Lorenzo Fernandez, des mélodies de Camargo Guarnieri, la Plénitude, partition symphonique de F. Mignone, tout un groupe d’oeuvres de musique de chambre de Nadi de Lacaz de Barros, où l’on sent poindre un talent délicat et sobre sur lequel on peut fonder de grands espoirs.”

13Boletín Latino-Americano de Música, Montevidéu, 1935. p. 10. 14Ibid. p. 11.

testemunho do seu esforço e ficará sempre lembrando o seu nome. Se hoje há um movimento Ibero-Americano no terreno musical a você nós todos o devemos15. O americanismo musical defendido por Curt Lange enraizava-se numa matriz cultural-ideológica dessa produção imaginária, elaborada pelo pen- samento alemão, principalmente no século XIX. Assim, em um de seus tex- tos, Curt Lange afirmava a existência de “[...] un espirito superior de indiscutible hermandad cuya fuente más poderosa serian los dos idiomas nacidos de uma misma raiz. En ningun momento faltaria a la exposición de ideas congregadas al servicio de una causa noble, esa armonía inte- rior que solo el continente latino-americano es capaz de crear”16. Ob- serva-se que esse ideário integrador era recorrente na literatura ger- mânica, sobretudo de cunho romântico17, através da simbologia do nacionalismo orgânico, defendido por Herder e propagado por vários ou- tros autores alemães18. Por “nacionalismo orgânico”, Anthony Smith tra- duz uma concepção oriunda do conceito de “espírito” (Gheist), já desen- volvida na obra de Renan19. Segundo tal perspectiva, o coletivo transcende o somatório das individualidades, que se encontram unidos entre si e com a própria coletividade, através de um mito em comum de uma cultura his- tórica compartilhada20. Essa concepção aplica-se, ainda que de maneira implícita, ao americanismo musical proposto por Curt Lange: “[...] con una fusión absoluta de sentimientos raciales distintos, para la desapa- rición lenta de preconceptos estrechos, fomentados en cada una de nues- tras Repúblicas por núcleos extranjeros, para la eliminación de dife- rencias nacionales de diversos caracteres, hacia la fundación inseparable de un pensamiento orgânico y disciplinado”21.

Ora, para o pensamento alemão, a singularidade cultural (entrecru- zamento do coletivo e do particular) adquire expressão significativa em sua expressão na linguagem e no pertencimento étnico, pois a matriz alemã, elaborada por Herder e Fichte, ao invés de excluir, comporta a inclusão das diferenças22. O americanismo de Curt Lange embasava-se, por- tanto, na valorização dos fatores etnológicos e sociológicos dos povos,

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15Carta de Camargo Guarnieri a Curt Lange, 13 de março de 1940. 16Ibid. p. 10.

17Cf. DUARTE, Luiz Fernando Dias: A pulsão romântica e as ciências humanas no Ocidente. Revista Brasileira de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 19, n. 55, jun. 2004.

p. 8: “[...] Herder conferiu-lhe uma forma canônica ao lidar com a cultura germânica, como um ente específico, menor do que a humanidade, mas certamente maior e mais expressivo que os entes individuais que compunham a população de fala alemã. Aí estava um dos focos mais ativos da ideologia da nação moderna, assim como da noção contemporânea, antropológica, de ‘culturas específicas’. Já em sua época, a oposição explícita se fazia contra o ideal da justaposição indistinta - indiferencida ou igualitária – dos cidadãos, membros de uma Humanidade abstrata”.

18“O egípcio não pôde existir sem o oriental; o grego se apoiou nos egípcios; o romano se susteve nos escombros do mundo inteiro; efetivamente, há progresso, de-

senvolvimento progressivo, ainda que ninguém ganhe individualmente por isso. Tudo encaminha-se para a totalidade [...] e torna-se cenário de uma intenção diretora na terra (...) ainda quando não cheguemos a ver a intenção última [...]”. cf. HERDER, J. G. Filosofia de la historia para la educación de la humanidad. Buenos Aires: Ed. Nova. s.d.p. 62.

19“A nação é uma alma, um princípio espiritual. Constituem essa alma, esse princípio espiritual, duas coisas que, na verdade, são uma só. Uma delas é a posse em comum

de um rico legado de lembrança; a outra, o consentimento atual, o desejo de viver juntos, a vontade de continuar a fazer valer a herança que recebemos indivisa.” RENAN, Ernest, [1882]. O que é uma nação. In: ROUANET, Maria Helena (org.). Nacionalidade em questão. Rio de Janeiro: Instituto de Letras/UERJ, 1997. p. 39.

20Anthony Smith, para fundamentar sua reflexão, menciona sucessivas vezes a obra de Herder, indicando que o nacionalismo orgânico foi um postulado desenvolvido

pela elite urbana. cf. SMITH, Anthony D. The nation in history. Op. cit. p. 9-10.

21Boletín Latino-Americano de Música. Montevidéu, 1935. p. 25.

22A articulação entre pluralismo cultural e hierarquização com base no pensamento alemão foi abordada por Karl Mannheim. cf. MANNHEIM, Karl. O significado do con-

os quais deveriam ser estudados em estreita relação com sua história; afinal, ainda segundo Smith, tal riqueza cultural tem como propósito tra- çar uma continuidade essencial entre os mortos, os vivos e os que ainda não nasceram, assegurando a identidade coletiva da nação. Com isso, a preocupação com a formação cultural tornou-se um dos pontos-chave do pro- jeto do americanismo musical:

Los problemas de educación latino-americanos deben ser estudiados em estrecha relación con la história, los fatores etnológicos y sociológicos de los respectivos paises. Ellos são problemas enteramente nuestros, su solución solo puede encarar-se partiendo de la base nacional, de los antecedentes raciales y la estructura del ambiente físico, de clima e sociedad, economia, administración y hasta de la política23.

O viés etnológico presente no ideário de Curt Lange é também evi- denciado pela utilização do idioma português, embutido no projeto do ame- ricanismo. É importante lembrar, como indicado por Benedict Anderson, que na Europa e, especialmente, na Alemanha, o idioma foi um elemento importante para a construção da nacionalidade24. Assim, no ideário do ame- ricanismo musical, Curt Lange não adotou um idioma comum, ficando, a lin- guagem, estabelecida como um sintoma da diferença:

En el Boletin, los trabajos brasileños aparecerán en su idioma original. Sea este no solamente un propó- sito de la dirección, basado en la importância del movimiento artístico de aquele país Hermano, sino en la justicia mas estricta al obrigar al nuestros sus- criptores a la lectura de un idioma que en el suelo americano ha servido de elemento de expreción a cien- tos de grandes hombres cuyo nombres deben sernos tan familiares como aquellos de las demas repúblicas del continente25.

Mas, dentre todas as linguagens circulantes numa dada cultura, Curt Lange optou por aprofundar-se na expressão de sua musicalidade, o que o levou a adotar a musicologia como o seu principal campo de atuação:

Después de cursar estudios básicos de piano, violín, armonía, contrapunto y composición, Lange siguió es- tudios avanzados de dirección de orquesta con el re- nombrado Arthur Nikisch y de órgano con el no menos famoso Karl Straube. Junto a estudios de acústica con

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23Boletín Latino-Americano de Música. Montevidéu, 1935. p. 13.

24Segundo Anderson, as línguas impressas lançaram as bases para a consciência nacional de três modos diferentes. Primeiramente, criaram campos unificados de co-

municação, que permitiam uma sociabilidade mais ampla do que a viabilizada pelo domínio do latim e mais permanente do que a promovida pela oralidade. Em segundo lugar, a palavra impressa atribuiu nova fixidez à língua, ajudando a construir uma imagem de antiguidade, essencial à ideia subjetiva de nação. Em terceiro lugar, a edi- ção associou linguagem e poder. Desta forma, a convergência do capital e da tecnologia da imprensa sobre a diversidade das línguas humanas propiciou o surgimento de novas modalidades de comunidades imaginadas, as quais prepararam o cenário da nação moderna. cf. ANDERSON, Benedict. Op.cit. p. 54.

Rudolph Ibach, realizó su preparación en investiga- ción musical con lo más granado de los maestros que florecieron durante la edad de oro de la musicología histórica, tanto alemana como centroeuropea. En un artículo insuperable Jorge Velazco, el destacado di- rector de orquesta y musicólogo mexicano, entrega un exhaustivo panorama en castellano de estas figuras formadoras de Lange como musicólogo. Entre ellos se puede señalar a Erich von Hornbostel, uno de los pa- triarcas de la musicología comparada; Adolf Sandber- ger, dedicado estudioso del renacimiento (siglo XVI) y el alto clasicismo de Viena; Ernst Bücken, impor- tante impulsor de los nuevos enfoques que surgieron entonces dentro de la historiografía musical alemana; Curt Sachs, el célebre e influyente impulsor de la organología; Georg Schünemann, investigador del lied y la canción folclórica alemana, además de ser figura clave en la renovación de la educación musical en Alemania; Max Seiffert, uno de los motores de publi- caciones fundamentales tales como la colección Denk- mäler deutscher Tonkunst (Monumentos de la Música Alemana) y revistas que marcaron hitos tales como el Archiv für Musikwissenschaft y la Sammelbände der In- ternationaler Musikgessellschaft. Otras figuras ale- manas que tuvieron una gran influencia en la formación de Lange fueron Hermann Abert y dos desta- cados exponentes de la investigación acerca de la mú- sica de Beethoven, Ludwig Schiedermair y Paul Mies. A ellos se agrega el musicólogo belga Charles Jean Eugène van den Borren, autor de trabajos fundamenta- les sobre la historia de la música flamenca, quien jugó un papel clave en su tesis doctoral acerca de la polifonía de los motetes neerlandeses (Über die Mehrstimmigkeit der Niederländischen Motetten, Bonn, 1929)26.

Ainda, com base num enfoque cultural-etnológico, segundo Curt Lange, as sociedades latino-americanas deveriam aproximar-se também, a partir da evocação de seu passado, que uma vez reduzido aos interesses das eli- tes locais, poderia tornar-se tanto um fator de fortalecimento de suas identidades específicas, como um elemento de transformação de sua rea- lidade, rumo a uma maior comunhão entre os povos: “Los niños de hoy se- rán los ejecutores de la unificación del pensamiento ibero-americano, al través de ellos conquistaremos nuevamiente el respéto por un espí- ritu constructivo y poderoso que está latente en nueva humanidad que viene formando nuestro continente”.27

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26MONTERO, Luis Merino. Op. cit. Segundo este autor, encontra-se detalhada biografia dos mestres de Curt Lange em artigo de Jorge Velazco intitulado: "La con-

fluencia intelectual y académica en la formación escolástica y la obra de investigación de Francisco Curt Lange", publicado pela Revista Musical de Venezuela X/28, mayo- diciembre, 1989, p. 207-223.

A apropriação promovida por Curt Lange do pensamento alemão pode ser facilmente remetida à sua formação inicial: afinal, de forma distinta de grande parte dos músicos latino-americanos que almejavam aprimorar- se musicalmente na Europa, ele já nascera no Velho Mundo, mais particu- larmente em Eilenburg, Prússia (atual Alemanha), no ano de 1903. Ainda em seu país natal, diplomou-se em arquitetura pela Universidade de Mu- nique, tendo também cursado cadeiras de filosofia (dedicando especial atenção aos escritos de Nietszche), antropologia e etnologia. Mais ainda, veio a dominar a linguagem musical, através de estudos de piano, vio- lino, harmonia, contraponto e composição. O trânsito de Curt Lange por formações culturais, a princípio, bastante diversificado, rompendo com um modelo de especialização profissional, não foi aleatório. Na Alema- nha anterior à Segunda Guerra, ainda vigorava o ideal da Bildung, pelo qual, no processo educativo, a reflexão racional não poderia estar des- vinculada da sensibilidade estética; por tal premissa, beleza e verdade jamais entrariam em conflito. A crise econômica e política da Alemanha, entre as duas guerras mundiais, impulsionou Curt Lange a emigrar para a América do Sul, na década de 1920, em busca de melhores oportunidades de vida e trabalho. Após visitar vários países, o musicólogo acabou de- cidindo-se, em 1926, por radicar-se no Uruguai, onde residiu até o fi- nal da década de 1940, chegando a assumir a nacionalidade desse país, mas sem jamais abrir mão do referencial adquirido através de sua forma- ção germânica.

Outra dificuldade com que se deparava o americanismo era o estra- nhamento cultural sofrido pelos músicos europeus imigrados para a Amé- rica Latina. Tais artistas mantinham fortes vínculos afetivos com sua

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28As imagens integrantes desta obra foram selecionadas por Curt Lange no decorrer de sua trajetória profissional, vindo a integrar seu arquivo pessoal e, posteriormente, o

acervo sob a guarda da UFMG. Seu emprego aqui reporta-se, desta maneira, ao conceito de “con-textualização”, pelo qual o sujeito (autor) é indissociável dos sentidos e dos produtos por ele formulados a partir da cultura na qual se insere, cf. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 231.

ICONOGRAFIA DO AMERICANISMO MUSICAL No verso desta foto encontra-se a seguinte referência em manuscrito: “Proyecto de mural ‘americanismo’ ([ilegível] en la conferencia de Buenos Aires por Francisco Moralez Mamassa)”. Série 8.1.014.003. Acervo Curt Lange28.

pátria de origem e, face aos problemas de adaptação, (e até mesmo ao re- gime de exploração econômico-social a que a maioria se via submetida), emergiam com certa resistência quanto aos valores culturais da nova terra. Curt Lange preocupava-se com tal postura que poderia estender- se ao longo de gerações, tendendo, em função disso, a privilegiar os con- tatos imigratórios interamericanos: “No necesitamos de los pueblos eu- ropeos a los cuales estamos vinculados historicamente, como necesitamos estrechar la vinculación y el conocimiento entre nuestros países”29.

Porém, a valorização da produção musical latino-americana, tão al- mejada por Curt Lange, implicava a superação de renitentes obstáculos do campo cultural-ideológico, relacionados sobretudo a noções demasia- damente particularistas, acerca da identidade nacional. Afinal, os na- cionalismos ocidentais foram historicamente delineados, num esforço de conquista da autonomia política e de instauração da unidade social. Essa dinâmica então convergiria para a constituição de uma identidade cultu- ral coletiva30. A questão que se impunha ao americanismo musical era a de que tais nacionalismos alicerçavam-se, dessa maneira, numa certa des- qualificação, ou mesmo numa belicosidade, para com os “estrangeiros”, sobretudo quando esses eram vizinhos geográficos, que portavam legados histórico-culturais parcialmente similares, como no caso dos países la- tino-americanos.

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29Boletín Latino-Americano de Música. Montevidéu, 1935-1946. p. 27.

30SMITH, Anthony D. The nation in history. Op. cit. p. 10: “Nationalism, which we defined as an ideological movement to attain and maintain autonomy, unity, and iden-

tity on behalf of population deemed by some of its members to constitute an actual or potencial ‘nation’.”