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Em suas cartas, Camargo Guarnieri indicava a grande difusão obtida pela música de concerto, veiculada através das antenas de radiotrans- missão do Uruguai para São Paulo, o que permitia “exteriorizar aos Es- tados vizinhos e hasta el continente Americano e Europeu” a produção mu- sical latino-americana69. Tais menções, ao uso da rádio para divulgação de concertos, eram comuns na correspondência:

Ouvi outro dia, quer dizer sábado, o concerto reali- zado aí sob a direção do meu querido mestre Baldi e como solista o Balzo. Foi uma maravilha! Gostei muito, muito. Estarei, agora no próximo sábado, com o meu rádio ligado à espera de um novo concerto. Sem mais, receba um grande abraço cheio de amizade sincera deste seu amigo,

Camargo Guarnieri70.

De forma concomitante, no Uruguai, as obras de Camargo Guarnieri eram tocadas em diversas emissoras de rádio:

En audiciones semanales del Instituto por RADIO CARVE se han tocado, hace poco, su “Toada” y “Cantiga lá de longe” para volín. La señora Orlandi de Larramendy, por su parte, también ha contribuído con la audición de dos obras suyas. La “Cantiga” se va a repetir en una audición por Radio Oficial. La interpretaron Tosar Errecart con un violinista emigrado, un tal Op- penheimer71.

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69Relatório elaborado por Curt Lange sobre o SODRE. Essa documentação encontra-se em pasta com a referência 2.2.5742447 no Acervo Curt Lange. 70Carta de Camargo Guarnieri a Curt Lange, 17 de abril de 1940.

A difusão de peças musicais eruditas em programas radiofônicos, na América Latina, a partir sobretudo dos anos 1930, foi intensa. O emprego da rádio, como um meio de comunicação, conferiu uma amplitude signifi- cativa à recepção das formas culturais existentes, até então difundidas por meios impressos e orais72. Assim, ao ser convidado, em 1930, pelo go- verno uruguaio para dinamizar a vida musical, sobretudo erudita, Curt Lange estabeleceu-se em Montevidéu, assumindo, dentre outras funções, o cargo de cofundador da rádio estatal (SODRE - Serviço Oficial de Difu- são Rádio-Elétrica)73. O SODRE foi uma instituição criada em 1929, tendo como uma de suas principais finalidades a propagação, por radiodifusão, das manifestações de cultura e da arte à população de todo o país: “Te- mos agora a começos de Setembro um Congresso Internacional Americano de Comunicações de Radio, e sendo delegado oficial do meu Governo, preciso assistir”74. Segundo consta, no relatório elaborado por Curt Lange na dé- cada de 1930, a grande maioria dos institutos oficiais e entidades par- ticulares recorria aos serviços do SODRE, incluindo as áreas da saúde pública, instituições primárias e superiores, comércio, bolsa de valo- res e entidades esportivas.

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72ROCHA, Amara Silva de Souza. Nas ondas da modernização: uma história social do rádio e da televisão no Brasil nos anos 1950-1960. Tese de doutorado em Histó-

ria Social, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2004. p. 20-21: “Os meios eletrônicos transformam e reconfiguram um campo ou conjunto maior, onde os meios impressos e as formas orais, visuais e auditivas de comunicação continuam sendo importantes [...]”

73Segundo Rui Mourão, o órgão tornou-se a base de sustentação da vida musical do Uruguai. MOURÃO, Rui. O alemão que descobriu a América. Belo Horizonte: Ita-

tiaia, 1990. p. 18.

74Carta de Curt Lange a Camargo Guarnieri, 6 de agosto de 1945.

ESTÚDIO RADIOFÔNICO. EM ANEXO, A SEGUINTE REFERÊNCIA DATILOGRAFADA: “UNO DE LOS ESTÚDIOS A LA TRANSMISIÓN DE DISCOS. LA FOTO ES DEL AÑO 1934. OBSÉRVENSE.LAS DOS MESAS COM SU JUEGO DE PLATÔS CADA UMA.

O SODRE era considerado uma das mais importantes instituições de di- vulgação musical, oferecendo audições diárias e veiculando programas de cunho didático, com o objetivo de despertar o interesse dos ouvintes. Curt Lange enviava a Camargo Guarnieri os programas das apresentações por ele organizadas. Em carta de 19 de novembro de 1935, Camargo Guar- nieri escreveu a Curt Lange, dizendo que “Há uns 4 dias recebi o pro- grama da `Audición de Música Latino Americana´, realizado em outubro deste. Achei-o muitíssimo interessante não só a apresentação, como tam- bém, a disposição e organização”.

O SODRE contava com sofisticados aparelhos de transmissão, dispondo, em suas dependências, de serviço de gravação fono-elétrica, planta de recepção e de emissores, seção de amplificadores, estúdios de transmis- são e laboratório de experimentação, além da Discoteca Nacional e do Es- túdio-Auditório, que era o antigo Teatro Urquiza de Montevidéu, consi- derado excelente local para grandes manifestações artísticas, e que viabilizava a transmissão de concertos e conferências realizados em ou- tros locais, ainda que distantes, como, por exemplo, do Teatro Colón de Buenos Aires. Assim, em carta de 29 de maio de 1942, Curt Lange comen- tava com Camargo Guarnieri: “Baldi: Está em la Argentina, dirigiendo una orquestra sinfônica de rádio, (Radio Belgrano), de 70 profesores. Los conciertos se irradian a Estados Unidos do Norte América”.

Os objetivos do SODRE não se limitavam à transmissão de programas radiofônicos, visando também à constituição de polos de atividades ar- tísticas. Assim, em seus serviços, estavam incluídos a Orquestra Sinfô- nica do SODRE (OSSODRE), a Banda de Montevidéu, o Conjunto de Música de Câmara, a Escola de Ensino Coral, a Escola de Dança, a “Escuela de Cum- primários – tiene missión de preparar os artistas que intervendrán en los espetáculos líricos”75 e o Conservatório (projeto que, segundo Curt Lange, até o final da década de 1930, ainda não se havia concretizado). Nos serviços variados, constava a Seção Estatística, que mantinha ar- quivado o histórico do Instituto, com as devidas comprovações das ati- vidades realizadas, a Biblioteca Musical e Técnica, o Arquivo Musical, que conservava todo o material adquirido pelo SODRE e, ainda, o Arquivo de Gravações Fono-elétricas. Tais repartições, pertencentes à Rádio, eram bastante operacionais, pois, em geral, os recitais eram transmitidos di- retamente do auditório da emissora e o público disputava, acirradamente, os ingressos para esses eventos. Em contrapartida, como a programação era veiculada ao vivo, não havia uma gravação prévia, nem sequer uma preocupação específica com sua preservação.

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O Brasil foi um dos países receptores das transmissões do SODRE, pois já operava com programas de rádio, desde 7 de setembro de 1922, sendo o primeiro desses serviços inaugurado, de forma concomitante, com a Exposição do Centenário da Independência, realizada na Esplanada do Castelo, no Rio de Janeiro. Nessa data, após o pronunciamento do presi- dente da república, Epitácio Pessoa, a ópera “O Guarani”, de Carlos Go- mes, foi transmitida, por radiofonia, diretamente do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. A primeira emissora de rádio no Brasil, inaugurada por Roquette Pinto, recebeu o nome de Rádio Sociedade, num claro indi- cativo do papel educativo outorgado a esse meio de comunicação. Em 1924, surgiu a Rádio Clube do Brasil e, dois anos mais tarde, foi inaugurada a Rádio Mairynk Veiga, seguida pela Rádio Educadora, além de outras rá- dios, em diversos estados do Brasil, como a Rádio Experimental Mineira, por volta de 1927.

Durante os anos 1930, o rádio ocupava significativo espaço nas prá- ticas culturais brasileiras, tornando-se um veículo de grande penetra- ção social e, contando, para isso, com investimentos estrangeiros e pa- trocínio do Estado. Curt Lange e Camargo Guarnieri não desprezaram a importância cultural desse meio de comunicação, buscando veicular tanto as composições citadas no Boletín Latino-Americano de Música, por via radiofônica, quanto a divulgação do próprio periódico. Em 1935, Curt Lange não deixou de estabelecer contato com o próprio Roquette Pinto,

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TRANSMISSÃO DE RECITAL DE ARMANDO PALACIOS PELA RADIO NBC. NO VERSO DESTA FOTO, S. D., CONSTA A SEGUINTE REFERÊNCIA,

DATILOGRAFADA: “ARMANDO PALACIOS, DISTINGUIDO PIANISTA CHILENO, ESPERA LA SEÑAL DE ROBERTO GOTICA, LOCUTOR, PARA COMENZAR SU CONCERTO POR LA ONDA CORTA DE NBC”. Série 8.1. 021.033. Acervo Curt Lange.

com o intuito de divulgar o seu trabalho. Em carta de 16 de abril de 1935, Roquette Pinto, na posição de chefe da Seção de Museus e Radiodi- fusão, respondia prontamente ao pedido do musicólogo, para que o Bole-

tín Latino-Americano de Música fosse anunciado em sua emissora76.

Todo esse trabalho de divulgação, via radiofonia, foi também de- senvolvido no estado de São Paulo, onde residia Camargo Guarnieri. As- sim, para atender a um pedido de Curt Lange que desejava agendar um con- certo com orquestra para a pianista Sara Orlandi de Larramendy, foi na Rádio Gazeta, inaugurada em 1940, que Camargo Guarnieri conseguiu aten- der ao amigo: “Você bem sabe que é bastante difícil de uma hora para ou- tra arranjar para tocar com orquestra quando os programas são organiza- dos com antecedência. Mesmo assim arranjei para ela dar uma audição na Radio Gazeta o que muito agradou aos ouvintes”77.

E esse não foi o único pedido de Curt Lange, envolvendo concertos na Rádio Gazeta. Em várias ocasiões, o musicólogo mencionou seus inte- resses a Camargo Guarnieri, que então verificava a viabilidade dessas propostas: “Na sua carta de 15, você fala na Gazeta, evocando o nome Cas- per Libero. Infelizmente, ele morreu há uns três meses, num desastre de avião. Mesmo assim penso que o Carlevaro tocará nestes dias, para a Rá- dio Gazeta, da qual não faço mais parte”78. A preferência de Curt Lange pela Rádio Gazeta era compreensível, pois essa emissora afinava-se com sua proposta, também semelhante a de Camargo Guarnieri, na adoção de uma programação voltada para a elite cultural, com ênfase na música erudita. A correspondência de Curt Lange e Camargo Guarnieri não mencionou a execução de concertos nas rádios cariocas e mineiras, embora impor- tantes emissoras operassem nos dois estados. Já rádios, de outras re- giões do Brasil, foram citadas nas missivas:

Recebi ontem um telegrama de Pernambuco avisando-me de uma transmissão radiofônica pelo Radio Clube de Pernambuco, em minha homenagem. Foi uma pena que não pude ouvir nada, pois o meu radio, sempre que pre- ciso dele falha na certa! Dizia o telegrama que o programa seria todo de composições minhas. Em todo o caso, é uma notícia que agrada sempre79.

Por sua vez, no sexto tomo do Boletín, Curt Lange delineou um pa- norama geral da situação das rádios, mencionando diversas emissoras atuantes no Rio de Janeiro nos anos de 1940:

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76Carta de Roquette Pinto a Curt Lange em 16 de abril de 1935: “Prezado senhor, tenho grande honra e satisfação em attender à solicitação de V. S. relativa ao annuncio

da apparição do “Boletín Latino-Americano de Música”. Agradecendo antecipadamente a remessa do referido Boletín que me foi prometido, aqui fico às ordens de V. S. E. Roquette Pinto. Chefe da Secção de Museus e Radiodiffusão”.

77Carta de Camargo Guarnieri a Curt Lange, 13 de setembro de 1943. 78Carta de Curt Lange a Camargo Guarnieri, 20 de janeiro de 1944. 79Carta de Camargo Guarnieri a Curt Lange, 25 de janeiro de 1945.

Como en la totalidad de los países americanos, tam- bién en la radiodifusión del Brasil predomina la ini- ciativa privada sobre la oficial. Existem organismos mixtos, es decir, com participación del Estado, como la Radio Nacional de Rio de Janeiro, que cuenta con una Orquestra Sinfónica formada en su mayoria por elementos da Orquestra Sinfónica Brasileira. Otras empresas, la Radio Tupy, la Radio Globo posuen con- juntos Sinfonicos. La Prefeitura de Rio de Janeiro, tiene una estación emisora que cuenta com buenas ini- ciativas, gracias al dinamismo del pedagogo Maciel Pinheiro, su director. En sus dependencias efectua grabaciones propias, a manera de archivo; tambén posue una discoteca pública. Al Ministério da Educa- ción pertence el Serviço de Radiodifusão Educativa [...]. Outra estación oficial, la Radio Mauá, depende del Ministério del Trabajo y una cuarta estaba ane- xada al famoso Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), organismo político desaparecido que realizó algunas incursiones en el terreno de la grabación de acontecimentos folclóricos. En tempos de la Hora do Brasil, informativo oficial, que obrigatoriamente tenía que ser transmitido por todas las estaciones del país, se realizó obra de divulgación musical [...]80

A gravação em discos era outro assunto comum na correspondência en- tre Curt Lange e Camargo Guarnieri. Almejava-se que, uma vez gravada, a composição atingisse grande circulação e, consequentemente, expressiva repercussão, principalmente se fosse executada por intérpretes conside- rados de alta monta. Camargo Guarnieri, em carta datada de 11 de abril de 1940, comentou com Curt Lange: “Trouxe-me grande prazer saber que o Balzo (já deve ter gravado!) incluiu duas peças minhas para gravar. Es- pero logo receber uma cópia de cada disco”. Todavia, grande parte dos discos produzidos por Curt Lange, através do SODRE, não era destinada ao mercado comercial:

[...] com motivo de la venida de Stokowski, vamos a tratar de grabar una serie de cosas uruguaias du- rante su estada, el 12 próximo, figurando por lo menos dos obras suyas. Stokowski, que es amigo mío, me prometió grabar durante todo el dia, y así, he dado a Balzo el encargue de hacer la serie latinoa- mericana de 24 obras, entre ellas dos de Ud. – los discos no estarán destinados al comercio, sino a la difusión cultural, únicamente, y por esto, y por ra- zones de tiempo, no he pedido expressamente autori- zación por cuanto ello es possible. Recibí la carta hoy, y hoy mismo tomamos las disposiciones del caso81.

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80Boletín Latino-Americano de Música, Montevidéu, Tomo VI. p. 44. 81Carta de Curt Lange a Camargo Guarnieri, 27 de julho de 1940.

Porém, as condições de gravações nem sempre viabilizavam uma pro- dução musical satisfatória, seja por problemas de ordem técnica seja por dificuldades dos profissionais envolvidos, como as mencionadas por Curt Lange a Camargo Guarnieri narrando os dilemas, para a conclusão da gra- vação, com o músico inglês Stokowski, então radicado na América do Norte. Os instrumentos não podiam deixar o navio onde esta va o maestro e as gra- vações tiveram que ser feitas a bordo depois de Curt Lange providenciar o ajuste do precário piano existente no navio82.

No período em que residiu no Rio de Janeiro, Curt Lange mostrava- se continuamente entusiasmado com a possibilidade de Camargo Guarnieri gravar suas composições. Em carta de 10 de fevereiro de 1942, Curt Lange escreveu a Camargo Guarnieri, mencionando a possibilidade de o composi- tor gravar algumas peças, através da prefeitura carioca:

Me olvide decirle que en Rio tiene Ud. una excelente oportunidad de grabar varias obras de Ud. en el De- partamento de Difusão, que pertence a la Prefeitura Municipal. Es Diretor del mísmo un querido amigo mío, muy buena persona, y sumamente accesible: Prof. Ma- ciel Pinheiro, el cual está en el mismo edifício que Villa-Lobos, pero en el 12º andar, Rua Almirante Bar- roso 81. Maciel Pinheiro me dijo que estaba dispuesto a grabar, en aparatos modernos, obras de autores bra- sileiros modernos. Tiene equipos excelentes y Ud. po- dría grabar allí con la señora Maristany, y con otros elementos, así como Ud. solo al piano, muchas obras. Pinheiro nos mandaría a nosotros una o dos copias que serían difundidas por radio, y tiene además vincula- ción para conseguir que las casas grabadoras aceptem esos discos para la venta al publico. No deja de es- tudiar este asunto de la mejor manera posíble. Ud. sabe hasta que punto somos escuchados en toda a Amé- rica a través de nuestras estaciones de onda corta e larga.

Em resposta à indicação de Curt Lange, Camargo Guarnieri mostrou- se interessado na possibilidade da inclusão de suas composições, na gra- vação patrocinada pelo Departamento de Cultura do Rio de Janeiro:

Muito obrigado pelas informações acerca do Dr. Maciel Pinheiro. Provavelmente, nestes dias irei ao Rio e procurá-lo-ei para ver se consigo gravar alguma peça minha. Se você, daí, pudesse mandar-lhe algumas pa- lavras a meu respeito, ficaria gratíssimo. Você bem sabe: santo de casa não faz milagres! Uma palavra sua talvez facilitasse a coisa. O Departamento de Cultura daqui vai gravar as minhas “13 Canções de Amor”. A Cristina será a intérprete. Espero que tudo corra bem. São 3 discos de 3’ cada face83.

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82Carta de Curt Lange a Camargo Guarnieri, 16 de outubro de 1940. 83Carta de Camargo Guarnieri a Curt Lange, 15 de março de 1942.

Curt Lange considerava a rádio um importante veículo para a educa- ção musical, com várias publicações sobre o tema. A visão de Curt Lange, em relação à rádio como meio de educação, portanto, era bastante ampla, tendo o musicólogo apontado a urgência do lançamento de programas diri- gidos a crianças, nos quais a música fosse um recurso de sensibilização cultural, refinamento estético e diálogo entre os povos84. Nesse sentido, Curt Lange, mais uma vez, aproximava-se da concepção germânica, pela qual a interação da pessoa humana se processa, mediante uma relação com o ou- tro, mediatizada pela linguagem e pela cultura85.

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84Boletín Latino-Americano de Música, Montevidéu, Tomo VI. p. 136. 85Ver Capítulo 1 deste livro.