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Amor pela vida – a imagem do instante

II. O AVESSO E O DIREITO – IMAGEM E SÍMBOLO

5. Amor pela vida – a imagem do instante

O quarto ensaio de O avesso e o direito constitui-se também enquanto relato de uma viagem feita por Camus, mas diferentemente do que encontramos em “Com a morte na alma”, uma reflexão passa a ser sugerida ou estimulada pelo destaque de imagens do real e não pelo ordenamento consciente da sucessão conflituosa de sentimentos e sensações que surgem diante das imagens que a realidade apresenta ao narrador em sua perambulação pela cidade ou pelo campo.78 Assim, as imagens de “Amor pela vida” operam como cristalizações de instantes repletos de vitalidade aos quais o narrador sente necessidade de reter, como se pudesse com isso imergir na duração do mundo e viver plenamente.

No início do texto, ele relata sua noite em “um desses cafés onde se canta” em Palma, município da Espanha na província das Ilhas Baleares, e no qual ele presencia, perplexo, o espetáculo de uma dançarina gorda, cujo olhar vazio de desespero e o suor que escorria de seu ventre arrancavam urros dos homens embriagados que a assistiam. Essa “imagem ignóbil e exultante da vida”, nas palavras do autor, ilustra as surpresas que retiram o homem de seus cenários interiores e exteriores e o aproximam de uma reflexão mais sóbria sobre as coisas. Aqui também o hábito é pensado pelo autor como impedimento a uma vivência honesta que encare a vida em sua brutalidade e nudez, por isso a viagem mais uma vez revela-se como estímulo ao despojamento necessário para que o homem possa olhar o mundo de frente e nele se situar sem os recursos enganadores de sua vida diária. O hábito impossibilita que as imagens do mundo possam ser recriadas simbolicamente pelo trabalho conjunto da reflexão e da imaginação, ele impede a verdadeira criação, pois o refúgio que ele oferece à consciência a embota e barra a chegada do novo, bloqueando um olhar outro, lúcido e criativo sobre a realidade.

A viagem nos tira este refúgio. Longe dos nossos, da nossa língua, arrancados de todos os nossos apoios, privados de nossas máscaras (não se conhece o preço das passagens de bonde e tudo é assim), estamos totalmente na superfície de nós mesmos. Mas, também, ao sentir nossa alma doente, atribuímos a cada ser, a cada objeto, seu valor de milagre. Uma mulher que dança sem pensar, uma garrafa sobre a mesa, vista por trás de uma cortina: cada imagem torna-se um símbolo (CAMUS, 2013, p. 96-97).

Fora de casa, distante dos lugares já assimilados e das ações programadas, numa terra onde tudo é estranho, o homem torna-se, de acordo com Camus, mais aberto ao mundo e à

78 “‘Amor pela vida’, com efeito, não é uma narrativa de viagem, mas um ensaio sobre a viagem e, se ele contém

algumas cenas, elas não constituem um capítulo da história de um homem ou de uma consciência, contrariamente ao que se pode encontrar em ‘Com a Morte na Alma’, mas ‘imagens’ e ‘símbolos’ presidindo ao nascimento das reflexões ou vindos ao seu apoio” (LÉVI-VALENSI, 2006, p. 420-421).

riqueza sensível do real, logo, o sentimento de que é um estrangeiro, por mais que leve o homem a uma consideração negativa da existência, também deve ser encarado como a porta pela qual ele pode encontrar sua liberdade dos padrões do hábito e abrir-se para uma existência na qual poderá sentir cada gesto, cada sensação ou acontecimento como algo novo, repleto da vivacidade que um convalescente descobre ao sair de casa novamente. Em O avesso e o direito, a viagem apresenta-se como símbolo da descoberta terrível e nova da liberdade humana, que faz do indivíduo um ser disponível ao campo aberto da vida e apto a fecundá-la de sentidos.79 Em “Com a morte na alma”, a viagem é inicialmente acompanhada de intensa angústia, a mesma que o narrador depois descobre junto ao sentimento de felicidade na contemplação da beleza do mundo; já em “Amor pela vida”, liberado da opressão que a viagem lhe imputa, sem angústia em relação ao seu desconhecimento de tudo e do fato de agir unicamente tentando dar conta da infinidade de sensações que os lugares novos provocam, o narrador se entrega à contemplação e à fruição dessas novas sensações provocadas pela beleza das imagens que o atraem. Sua tendência é a de tentar imobilizar tais imagens para capturar a fugacidade do instante, indiciando uma reflexão sobre a finitude iminente da vida – também presente no ensaio anterior – e o equilíbrio sempre tenso no qual a consciência honesta precisa manter-se para não sucumbir às ilusões sobre a eternidade. Assim, a contemplação lúcida das imagens do real e sua transfiguração em símbolo denotam que o narrador camusiano não se restringe à descrição de sentimentos, ações e acontecimentos, de modo que, sugerindo também a possibilidade de uma reflexão sobre o que vê e sente sobre o mundo e sobre sua subjetividade, ele conquista dentro da narrativa seu lugar como moralista e literato, como filósofo e como artista.80

Embora as imagens sobressaiam do real pela atividade de criação simbólica do narrador, elas não se encontram destacadas do mundo, como se estivessem à espera de alguém que as notasse enquanto símbolos, elas estão imersas na empiria e só a subjetividade do artista pode fazer delas um “lugar privilegiado”, como quer o autor, em que toda uma infância ou mesmo

79 “O que a viagem lhe ensina é descobrir nos instantâneos, que oferecem uma vida suficientemente diferente da

vida familiar para ser percebida ‘em novidade’, como disse Baudelaire, no entanto suficientemente próxima para que o sentimento de estranhamento não se torne a angústia insuportável de Praga, as ‘imagens’ tornadas ‘símbolos’ de sua própria vida, que ele reconhece e analisa com total lucidez. Se Camus formula aqui com notável claridade os mecanismos de seu realismo simbólico (toda uma vida pode se resumir em uma imagem), é porque a viagem permite ir além dos objetos ou do âmbito familiar, [permite] perceber as imagens com uma intensidade dez vezes maior e, sobretudo, ser infinitamente mais disponível para apreendê-las, reconhecê-las e explorar a riqueza de suas significações” (LÉVI-VALENSI, 2006, p. 424).

80 De acordo com Lévi-Valensi (2006, p. 422), “[...] a lógica do texto não é ditada pelo itinerário de um viajante

mas pelo caminho de uma consciência aplicada a tirar da viagem e das sensações recolhidas um ensinamento sobre ela mesma e sobre sua relação com o mundo. [...] O narrador se volta à meditação sobre o que ele vê, sobre o que o mundo lhe oferece e sobre ele mesmo; ele não é mais nem personagem de narração nem romancista de si mesmo, mas moralista e ensaísta”.

toda uma vida pode ser resumida ou simbolicamente figurada. O narrador não se furta a apresentar os entornos da realidade da qual saem as imagens, assim, por exemplo, antes de descrever a imagem ignóbil e exaltante da dançarina do café, ele narra a atmosfera de exaltação e embriaguez do lugar em que a imagem surgira. A brusca aparição no texto da descrição das sensações do narrador nas tardes silenciosas de sol no bairro deserto da catedral de Palma, bem como, depois, em Ibiza, contrastam com o ambiente noturno e quase claustrofóbico do café mouro, à perplexidade diante da dançarina se opõe o sentimento de amor à vida, a “paixão silenciosa” pelo que não dura, pelo que escapa à apreensão da consciência e se inscreve, num átimo, na duração do mundo, integrando-se a ele. A tarde na cidade espanhola revela ao narrador a aparência fugaz do mundo, a cada segundo desfeita e simultaneamente recomeçada:

Aquele cristal em que sorria o rosto do mundo, parecia-me que um gesto o teria rachado ao meio. Algo ia desfazer-se, o voo dos pombos ia morrer e cada um deles ia cair lentamente sobre as asas estendidas. Só o meu silêncio e a minha imobilidade tornavam plausível o que se parecia tanto com uma ilusão. Eu entrava no jogo. Sem iludir-me, eu me prestava às aparências. Um belo sol dourado aquecia suavemente as pedras amarelas do claustro. Uma mulher tirava água do poço. Em uma hora, um minuto, um segundo, talvez agora, tudo podia desmoronar. E, contudo, o milagre prosseguia. O mundo perdurava, pudico, irônico e discreto (como certas formas suaves e comedidas da amizade das mulheres). Prosseguia um equilíbrio, tingido, no entanto, por toda a apreensão de seu próprio fim (CAMUS, 2013, p. 99).

As imagens que simbolizam a paixão do homem por aquilo que, como ele, está fadado a desaparecer, a morrer, sugerem que, para o autor, o mundo não deve ser encarado como se fosse feito à medida do humano ou para ele, mas um mundo do qual faz parte, como em Nietzsche, que o integra e que o expulsa de sua superfície, não respondendo aos seus inúteis apelos. Para Camus, se o mundo se comunicasse de alguma forma com o homem, sua linguagem seria a do mutismo que faz do amor humano pela vida um desespero; ao afirmar que “não há amor de viver sem desespero de viver”, o autor (2013, p. 100) mostra uma compreensão da vida enquanto tempo que passa, que escorre sem que o homem consiga capturá-lo, domá-lo, senti- lo plenamente como se o instante fosse eterno e a vida não fosse mais a incessante busca pela própria vida. A sede do corpo, a agradável sensação que os prazeres ofertam, a própria busca pela manutenção da vida reflete, para Camus, o desejo profundo do humano em realizar-se, sentir-se pleno, completo, integrado e sem medo de desaparecer na terra do mundo. Assim, a nostalgia sentida pelo homem, “esse imenso arrebatamento que queria colocar o mundo em minhas mãos”, não diz respeito apenas a um impulso em direção à compreensão e unificação da realidade em princípios ou leis determinadas pela razão humana, mas a uma volição inscrita na carne mesma do humano, em sua própria natureza.

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