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Com a morte na alma – as imagens da angústia

II. O AVESSO E O DIREITO – IMAGEM E SÍMBOLO

4. Com a morte na alma – as imagens da angústia

Se no ensaio anterior o avesso e o direito do mundo eram configurados em imagens do passado e do instante presente que ofereciam em seu entrelaçamento uma compreensão mais fecunda da existência, no ensaio seguinte, intitulado “Com a morte na alma”, as imagens serão configuradas pelo autor para descrever a vivência de uma viagem a dois lugares distintos, mas que se correspondem e incitam à reflexão por meio de sua oposição. Assim, o terceiro texto de

O avesso e o direito constitui a transcrição literária das vivências do narrador em uma viagem

74 Jacqueline Lévi-Valensi (2006, p. 387) ressalta que as imagens que aparecem no segundo ensaio de O Avesso e

o Direito não ilustram somente “a transparência e a simplicidade” de que fala Camus, mas também a noção de absurdo: “ao fim da narrativa Camus acrescenta uma outra noção, a de absurdo: ‘toda a absurda simplicidade do mundo se refugiou naquele cômodo’. Assim, a indiferença e a autenticidade, traços essenciais e determinantes da presença do mundo e da mãe, em sua simplicidade, são signos do absurdo”. Segundo a autora (2006, p. 389), Camus parece pensar que “o mundo é feito para se resumir em imagens onde podem se encontrar a realidade objetiva e a consciência lúcida do ser que vê estas imagens e sabe lhes atribuir seu sentido simbólico”. Desse modo, “‘Entre o sim e o não’ parece encontrar seu fim legítimo neste equilíbrio entre o ensaio e a narrativa, nesta ressurreição ou esta criação de imagens assemelhadas ‘à absurda simplicidade do mundo’, na descrição do itinerário espiritual do narrador”.

a Praga e a Vicenza, relato que busca, enquanto exercício de criação artística e reflexão filosófica, atribuir uma forma simbólica àquilo que foi vivenciado por ele.75

A primeira vivência ou a primeira experiência levada à consciência pelo narrador diz respeito à sensação de estranhamento ao chegar em um lugar completamente estrangeiro, onde a língua e a escrita são outras, onde não se conhece ninguém e a paisagem lhe é inédita. Em Praga o narrador fica perplexo ao se dar conta da existência singular das pessoas às quais nem supunha que existiam, de modo que o desconhecimento em relação ao outro que lhe é distante lhe revela subitamente a ausência de vínculos efetivos entre os seres: “eles viviam. Eu estava a milhares de quilômetros do país familiar. Não compreendia a língua. Todos andavam depressa. E, ao me ultrapassarem, todos se desligavam de mim. Perdi o passo” (CAMUS, 2013, p. 74). Perceber-se estrangeiro em algum lugar indicia então, segundo o autor, um deslocamento em relação a uma determinada realidade que, por força do hábito, nos é familiar e constitui o cenário no qual nos acostumamos a atuar. O narrador sente-se vazio e exasperado em meio à cidade de Praga, pois ali torna-se inútil todo o seu repertório particular ao lidar com aquilo que o real demanda, de modo que sua consciência é obrigada a sair da inércia costumeira e movimentar-se para conseguir organizar e significar as novas experiências. “Igrejas, palácios e museus, eu tentava amenizar minha angústia em todas as obras de arte. Truque clássico: eu queria transformar minha revolta em melancolia. Mas em vão. Logo que saía, era um estrangeiro” (CAMUS, 2013, p. 78). A angústia que surge deste desencontro consigo mesmo dificulta ao narrador a construção de cenários ou pontos de apoio nos quais sua subjetividade possa sentir-se reconfortada, ele se vê sozinho em um universo a ele indiferente e despido da carcaça cotidiana emoldurada pelo hábito: “e eis que a cortina dos hábitos, o tecido confortável dos gestos e das palavras, em que o coração se acalma, soergue-se lentamente para, enfim, tirar o véu que revela a face macilenta da inquietação”. Mas, se a viagem ao estrangeiro despe o indivíduo de seus hábitos e o despoja dos cenários nos quais atua, ela também o ilumina, pois tudo nela se oferece como novidade aos sentidos e mesmo a mais simples das imagens tem o poder de encantar, tal como uma obra de arte; “é por aí que a viagem o ilumina. Faz-se uma grande desarmonia entre ele e as coisas. Nesse coração menos sólido, a música do mundo entra

75 De acordo com Lévi-Valensi (2006, p. 396), “após a estrutura por justaposição de ‘A ironia’ e aquela por

entrelaçamento de ‘Entre o sim e o não’, a arquitetura de ‘Com a morte na alma’ parece muito simples: ela repousa sobre a realidade do itinerário seguido pelo narrador, dedicando de início um longo desenvolvimento à estadia em Praga, depois um segundo movimento [...] à viagem desdobrada entre Praga e Vicenza e principalmente à estadia em Vicenza. A narrativa se inscreve, portanto, em uma cronologia e um espaço reais”. Assim, “é grande a tentação de [...] ver em ‘Com a morte na alma’ apenas a descrição fiel de uma experiência vivida, sem recursos à fabulação ou a uma organização secundária. Mas o vivido raramente é tão bem ordenado, a menos que receba, da consciência que o repensa e da escrita que o relata, a unidade e a significação que lhe transforma em símbolo ou mito ou, mais simplesmente, em romance; e isto é o que este texto testemunha”.

mais facilmente. Nesse grande despojamento, enfim, a menor árvore isolada torna-se a mais terna e frágil das imagens” (CAMUS, 2013, p. 80). As imagens de Praga descritas pelo narrador buscam, portanto, simbolizar a vivência angustiante do estrangeiro, seu desconforto e distância em relação à realidade, bem como sua busca desesperada por um momento ou lugar em que possa sentir-se harmonizado consigo mesmo e com o ambiente à sua volta. Praga simboliza o avesso do mundo, o exílio em que o homem é obrigado a encarar a nudez das coisas e a sua própria, como se fosse desafiado pelo mundo a ser feliz no seio do desconhecido, sem trapacear, enfrentando o penoso desacordo entre ele e a realidade. Nesse sentido, a forma simbólica que o narrador atribui a suas vivências dolorosas não visa torná-las menos angustiantes, mas pretende que essas imagens ilustrem a solidão, a angústia e o desconforto daquele que se descobre como um estranho em sua própria casa, sugerindo um olhar lúcido, limpo, sobre o mundo.

Esse olhar sobre a existência não se realiza integralmente em “Com a morte na alma” sem o contraponto que a viagem a Vicenza opera em relação às vivências anteriores do narrador. Já no caminho que o leva de Praga a Viena, assim como um convalescente, ele é capaz de constatar a presença da beleza no mundo, o que faz de sua vivência algo menos angustiante do que até então experimentara. “Terra feita para minha alma”, é assim que o narrador identifica de pronto a Itália, lugar em que ele se reconhece mais próximo do mundo e da felicidade que a luz das paisagens italianas lhe insinua.

E, depois, eis Vicenza. Aqui, os dias giram sobre si mesmos, desde o despertar do dia cheio do cacarejar das galinhas até esta tarde sem igual, adocicada e terna, sedosa por trás dos ciprestes, ritmada pelo canto das cigarras. [...] Respiro a única felicidade de que sou capaz – uma consciência atenciosa e cordial. [...] Cada ser que encontro, cada cheiro dessa rua, tudo é pretexto para amar sem medida. [...] Depois do deslumbramento das horas cheias de sol, vem o deslumbramento do entardecer, no cenário esplêndido que nele faz ouro do pôr-do-sol e negro dos ciprestes. [...] Ando oprimido por tanta beleza ardente. Atrás de mim, uma a uma, as cigarras inflam suas vozes e depois cantam: um mistério no céu, de onde caem a indiferença e a beleza (CAMUS, 2013, pp. 86-88).

O narrador relaciona a felicidade ao êxtase dos sentidos e à plena atenção da consciência ao instante presente, de modo que a transcrição dessa experiência lembra a forma como Camus descreve nos textos de Núpcias o gozo do homem em sua relação de proximidade com a natureza e seu louco desejo de unir-se a ela. Em “Com a morte na alma”, o autor já esboça, portanto, a reflexão que compreende o belo natural como uma das mais pungentes evidências da dissonância entre o homem e o mundo, descoberta não por meio de deduções ou qualquer operação lógica, mas sob o registro da sensibilidade. Tal contrassenso é simbolizado na imagem que encerra o texto:

No subúrbio de Argel, há um pequeno cemitério com portas de ferro negro. Quando se vai até o fim, descobre-se o vale, com a baía ao fundo. Pode-se ficar muito tempo pensando diante dessa oferenda que suspira com o mar. Mas, quando se refaz o caminho, encontra-se uma placa: “Saudades eternas”, em um túmulo abandonado. Felizmente há idealistas para colocar as coisas em ordem (CAMUS, 2013, p. 91).

A imagem do cemitério sobre a baía, já presente na terceira história do primeiro ensaio, retorna agora acrescida da inscrição em uma lápide de uma promessa de eternidade, ideia completamente oposta àquilo que o narrador vivenciara em sua viagem a Vicenza e outrora a Praga. A frase na lápide indicia os idealismos enganadores e as ilusões da esperança que poderiam levar o narrador a negar a presença do sentimento do absurdo e da morte em suas experiências de viagem, entretanto, a frase encontra-se sobre um túmulo abandonado, imagem que ironicamente insinua a mentira que é falar sobre a eternidade no âmbito da condição humana.76 A ironia reside aqui na apresentação da tensão da coexistência de dois aspectos que, embora opostos, não se excluem, no caso, o desejo de eternidade inscrito na placa e o fato dela estar sobre um túmulo abandonado.77

A descrição da experiência vivida na viagem à República Tcheca e à Itália constitui então o esforço de uma subjetividade que mais uma vez procura colocar-se de modo lúcido perante o real, nesse sentido, as vivências do narrador são o ponto de partida para a busca de uma forma artística que acolha os dois lados irredutíveis da experiência humana no mundo – a sua sombra e a sua luz, seu exílio e seu reino. O autor sugere com isso que cabe à consciência individual atentar para as consequências práticas ou morais a que as vivências podem conduzir, assim, “Com a morte na alma” não apenas apresenta uma subjetividade que recria simbólica e ironicamente as imagens advindas da exterioridade, mas sugere também a partir disso uma reflexão sobre as singularidades do real e sua determinação sobre as vivências e as ações humanas.

76 Como observa Jacqueline Lévi-Valensi (2006, p. 400), “a evocação do cemitério vem então como conclusão

lógica de uma meditação sobre a vida e a morte, em que as ilusões que se faz sobre si mesmo e as esperanças falaciosas de um idealismo que se opõe à realidade carnal da morte colapsam, deixando o ser em face da verdade de sua condição. Este é o ponto de chegada de uma ‘experiência desesperada’, a constatação de que o homem não pode falar de eternidade senão como uma mentira, demonstrada pelos fatos [...]. Ao final de uma narrativa que é também um exercício de lucidez, o cemitério oferece uma imagem perfeita, até em suas pretensões ilusórias, dos limites humanos”.

77 “Lugar da estranheza e do exílio, Praga foi a recusa que o mundo opôs ao homem; não foi o homem que disse

‘não’ ao mundo, mas o mundo que significou sua rejeição ao homem, enviando-o de volta à solidão ontológica. Ao contrário, o ‘reino’, a pátria que se deixa reconhecer e deixa o homem se reconhecer, é também o lugar em que onde ele pode ‘escolher, dizer sim e não [...]. É em plena lucidez que o ser pode então recusar escolher entre o ‘avesso e o direito’ de uma mesma maneira de ser no mundo. Vicenza não nega Praga; ela ultrapassa, engloba e dá seu sentido à experiência prévia e necessária que constitui a estadia em Praga” (LÉVI-VALENSI, 2006, p. 407).

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