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O avesso e o direito – um símbolo moral

II. O AVESSO E O DIREITO – IMAGEM E SÍMBOLO

6. O avesso e o direito – um símbolo moral

O último ensaio da primeira obra camusiana publicada retoma a forma irônica da justaposição de imagens como recurso à figuração da lucidez da consciência diante do absurdo. A história da velha mulher que contempla sua própria morte investindo dinheiro e dedicando seu tempo na construção e visitação de seu túmulo não parece ser à primeira vista um símbolo de coragem ou de lucidez, já que a velha pauta suas ações de acordo com sua crença em espíritos, alienada da realidade do mundo e presa a ilusões sobre a eternidade. No entanto, a essa recordação o narrador justapõe a descrição daquilo que ele vê no momento em que escreve seu texto, o mundo exterior percebido através de uma janela: os muros que escondem um jardim do outro lado e nos quais a luz passa entre a folhagem, o cheiro de ervas que o calor dos raios de sol esparge pelo ambiente, a brisa fria que faz balançar as cortinas, o jarro de flores amarelas que cintila em cores enquanto o sol se esconde entre as nuvens. O narrador descreve o mundo que seus sentidos apreendem como se fizesse um inventário do real, imobilizando-o num instante. Assim como no ensaio anterior, a tentativa de parar o tempo diz respeito a uma fome de viver, ao desejo de capturar uma imagem da vida em sua plenitude, bem como à nostalgia de integrar-se ao mundo e com ele constituir uma unidade:

Quem sou, e que posso fazer, a não ser entrar no jogo das folhagens e da luz? Ser este raio em que meu cigarro se consome, esta suavidade e esta paixão discreta que respira no ar. Se tento chegar a mim, é bem no fundo desta luz. E, se tento compreender e saborear esse delicado gosto que o segredo do mundo confia, é a mim mesmo que encontro no fundo do universo. Eu mesmo, quero dizer, essa extrema emoção que me liberta do cenário (CAMUS, 2013, p. 106).

O desejo de imergir nos fenômenos naturais e seu esforço em imaginar-se unido a eles leva o narrador a buscar um entendimento sobre si mesmo, pois o seu empenho em compreender lucidamente as imagens percebidas supõe um questionamento sobre o lugar que ele ocupa enquanto ser humano dentre as coisas e os fenômenos do mundo, inquirindo sobre o quê ou quem ele é. Como os outros seres, o homem está sujeito ao movimento que o conduz do nascimento à morte e, por isso, seu aparecimento e fim, sua vida ou existência constitui também um fenômeno do mundo, de modo que o desejo de integrar-se à terra ou fazer parte dos fenômenos diz respeito a uma subjetividade que se sente apartada da natureza, mesmo que compreenda a própria existência como um fenômeno de origem natural. A tentativa de imergir no real e com ele ser um resulta sempre num retorno a si mesmo, isto é, na constatação de que quanto mais o humano age para satisfazer sua nostalgia de unidade e superar o desacordo entre ele e o mundo, mais intensa se torna a sensação de seu afastamento, uma vez que seus próprios

anseios unificantes impulsionam a consciência a organizar a experiência sensível em formas tais que lhe possibilitem compreender a realidade e nela se situar. Para Camus, o homem está, assim, condenado a ver o mundo enquanto uma construção de sua própria subjetividade, o que torna o divórcio entre eles irrevogável.81

A angústia que oprime o narrador é justamente aquela decorrente do confronto entre seu desejo de durar – com o mundo e como o mundo – e a fugacidade do instante, em outras palavras, a duração do mundo é diferente da duração da consciência humana e a tentativa, para Camus sempre malograda, de fazê-las coincidir gera a sensação angustiante de que a vida está passando e não a estamos vivendo. As imagens que o narrador descreve ao olhar pela janela de seu escritório são recriadas enquanto metáforas de sua reflexão sobre a duração da vida e investidas de desejo na medida em que ele as compreende como símbolos daquilo que ultrapassa o tempo da vida humana, instigando-lhe o anseio de coincidir com “a respiração do mundo”, na qual a duração da vida ajustar-se-ia à temporalidade dos homens, de modo que ambas caminhassem abraçadas num mesmo ritmo, ininterruptamente. Entretanto, a consciência da finitude libera o narrador da angústia relativa à suas aspirações impossíveis, levando-o a desejar apenas a lucidez em relação a esta “eternidade” que as imagens do mundo evocam: “e então, quando sou mais verdadeiro do que quando sou o mundo? [...] A eternidade está ali, e eu esperava por ela. Agora, não desejo mais ser feliz, e sim apenas estar consciente” (CAMUS, 2013, p. 107-108).

A consciência plena do instante parece ser, para Camus, o que mais pode aproximar o homem da realização de seu desejo condenado à insatisfação; a atenção às sensações, principalmente a visão das imagens do real, configura o modo pelo qual o narrador vivencia o mundo, sentindo-o invadir seu corpo, sentindo o próprio corpo querendo tornar-se mundo ao mesmo tempo em que a lucidez de sua consciência o alerta sobre a impossibilidade da realização dessa nostalgia.

81 Jacqueline Lévi-Valensi (2006, p. 442, grifos da autora) diz que “não é por uma operação intelectual que o eu

penetra o mundo mas pelas sensações, pela sensibilidade; é assim que ele pode descobrir a si mesmo estando ‘ao fundo’ do mundo”. Essa afirmação a respeito da construção da subjetividade do narrador do ensaio “O avesso e o direito” leva em consideração a prevalência que Camus atribui à sensibilidade na descoberta do mundo pelo homem, no entanto parece não atentar para diferença existente entre a experiência sensível do mundo e a descoberta de si mesmo em meio ao mundo, a qual pressupõe uma consciência que organiza a experiência sensível e torna compreensível a realidade para que possa, assim, dela se distinguir. Do contrário, se o “eu” penetrasse o mundo e nele se situasse unicamente pela via direta da sensibilidade, como quer Lévi-Valensi, não haveria motivos para seu sentimento de divórcio e nem para a nostalgia que o impulsiona a tentar realizar uma união com o real. O “eu” só pode descobrir-se “ao fundo” da realidade mediante uma operação intelectual que a distinga dele mesmo, daí Camus afirmar posteriormente em O mito de Sísifo a irrevogabilidade do divórcio entre o homem e o mundo, já que o modo pelo qual ele o compreende e nele se situa constitui uma redução da realidade aos termos de seu pensamento e à organização da experiência sensível pela consciência impulsionada pelo desejo de unidade.

Mas isto porque não gosto que se trapaceie. A grande coragem é, ainda, a de manter os olhos abertos, tanto sobre a luz quanto sobre a morte. De resto, como explicar o elo que leva deste amor devorador pela vida a esse desespero secreto. Se escuto a ironia escondida no fundo das coisas, ela se descobre lentamente. E, piscando o olho pequeno e claro: “Viva como se...,” diz ela. Apesar de muitas pesquisas, está aí toda a minha ciência (CAMUS, 2013, p. 108-109).

Seria lícito dizer que a particular configuração simbólica das imagens pelo narrador constitui uma forma de apreender a “ironia escondida no fundo das coisas”, um modo pelo qual o filósofo e o artista podem confrontar o aspecto trágico da realidade, enfrentando seus contrassensos irresolúveis de modo que a reflexão não seja completamente submetida ao desejo arrebatador que, segundo Camus, leva a inteligência a buscar desesperadamente a unidade. As imagens que estes primeiros ensaios apresentam são encaradas em seu conjunto como o símbolo de uma atitude moral subjacente à própria criação artística: a honestidade intelectual que não visa suplantar o absurdo, mas configurá-lo em imagens, possibilitando que o pensamento não se constitua como produto de uma abstração sobre o real, mas diga respeito à vida concreta dos homens e suas vivências. A imagem possibilita, assim, que a reflexão que ela sugere adquira um suporte de carne, tornando possível a instauração de um pensamento lúcido.

Como vimos, a imagem simbólica em Camus opera um entrecruzamento da experiência sensível com a reflexão, de modo que a subjetividade e a exterioridade, a consciência e o mundo, o espírito e a matéria, sujeito e objeto são confrontados diante do desacordo entre as ambições humanas de conhecimento e a realidade que as esmaga. Tal como o autor escreve a respeito da obra de Kafka, pode-se dizer que as imagens simbólicas criadas por Camus em seu livro de estreia supõem dois planos, dois mundos distintos que se correspondem e se entrelaçam, o mundo da experiência sensível e o mundo da reflexão: elas apontam para uma coincidência do fenômeno sensível com um significado suprassensível.82 Apesar disso, o símbolo não resolve a tensão presente na coexistência dos aspectos contrários do real, pois é justamente a partir dela que se torna possível a sua configuração; o símbolo apresenta uma oscilação entre a imagem e o que ela simboliza, entre o seu componente sensível e o seu conteúdo racional, sugerindo algo para além da evidência do que é visto e da reflexão ingênua sobre o real, expandindo o campo semântico da imagem.83 O símbolo opera então uma passagem do

82 A noção de símbolo em Camus retoma indiretamente o debate ligado à tradição da estética filosófica do XVIII

acerca da definição do conceito do simbólico e sua diferenciação da alegoria. Como apresenta Gadamer (1999, p. 137-138, grifos do autor) em Verdade e método: “Símbolo é a coincidência do sensível e do não sensível; alegoria é uma referência significativa do sensível ao não sensível. [...] O símbolo aparece como aquilo que, devido à sua indeterminação, pode ser interpretado inesgotavelmente, em oposição excludente ao que se encontra numa referência de significado mais precisa, e ao que se esgota nela, sendo isso próprio da alegoria [...]”.

83 Novamente, pode-se entrever a inserção da reflexão camusiana no debate da tradição da estética filosófica, uma

particular ao geral, mas sem constituir uma síntese ou uma determinação fixa, de modo que sua significação constitui uma espécie de exemplo, isto é, um caso particular – a imagem – através do qual vislumbra-se uma reflexão.

Embora não desenvolva uma reflexão sobre o símbolo, pode-se notar, a partir da forma conferida pelo autor às imagens de O avesso e o direito, que o pensamento camusiano possui afinidades com a especulação sobre o simbólico realizada pela estética filosófica do fim do século XVIII. Nesse ínterim, as imagens simbólicas nos ensaios acima estudados apontam para uma consideração camusiana do símbolo enquanto um signo da realidade da condição humana dirigido tanto à sensibilidade quanto à intelecção, o que o diferenciaria de uma recriação alegórica das imagens percebidas, tal como distinguira Goethe.84 Para este, uma primeira diferença entre o símbolo e a alegoria reside na consideração de que a alegoria se endereça exclusivamente ao intelecto, uma vez que seu caráter sensível, imagético, só existe em função da transmissão de um sentido, enquanto o símbolo independe dele, sendo que apenas num segundo momento pode ser descoberta ou compreendida a sua significação. A razão é determinante para a compreensão do alegórico, segundo Goethe, pois a alegoria possui um sentido que é transmitido e compreendido diretamente desde o início, o que não ocorre com o simbólico já que o símbolo produz, antes, um efeito sensível e só através dele uma significação, como se a imagem existisse por ela mesma e apenas depois se descobrisse que ela possui também um sentido e algo ali a ser interpretado. Há, portanto, uma diferença no modo de atuação da razão na compreensão desses dois modos de configuração da imagem, num deles a razão direciona a imagem, no outro é direcionada por ela e só aí passa a atuar; a alegoria parece assim exigir a interpretação, enquanto o símbolo não necessariamente indica à primeira vista que sua imagem tenha outro sentido, sendo que apenas mais tarde ou inconscientemente conduz a um trabalho de reinterpretação.85

fenômeno sensorial com o significado supra-sensorial, e essa coincidência não é, tal qual no sentido original da palavra grega symbolon e sua sobrevivência no uso das terminologias das confissões religiosas, um acréscimo posterior, como a adoção de um signo, mas como a união de seres que se pertencem. [...] O símbolo simplesmente não anula a tensão entre o mundo das ideias e o mundo dos sentidos: deixa-nos pensar também no desequilíbrio [...] entre forma e essência, entre expressão e conteúdo. [...] A inadequabilidade de forma e essência continua a ser o essencial para o símbolo na medida em que, através de seu significado, acena para além da evidência dos sentidos. Dela provém aquele caráter de algo que está pairando no ar, indecisão entre forma e essência que é própria do símbolo [...]”.

84 Segundo Tzvetan Todorov (1977, p. 235), “em nenhum outro lugar o sentido de ‘símbolo’ aparece de modo tão

claro quanto na oposição entre símbolo e alegoria – oposição inventada pelos românticos [...]”. Cf. TODOROV, T. “La crise romantique”. In: Théories du symbole. Paris: Seuil, 1977.

85 “A alegoria significa diretamente, ou seja, sua face sensível não tem outra razão de ser que transmitir um sentido.

O símbolo não significa senão indiretamente, de maneira secundária: ele está ali inicialmente por ele mesmo, e apenas num segundo momento se descobre também que ele significa. Na alegoria a designação é primária, no símbolo, ela é secundária. Poderíamos talvez dizer também, coagindo o vocabulário de Goethe: o símbolo representa e (eventualmente) designa; a alegoria designa, mas não representa [...]” (TODOROV, 1977, p. 238).

Em Camus as imagens simbólicas não evocam um sentido prévio, mas expõem, antes, seu caráter sensível à contemplação, à reflexão que pode ou não descobrir ali significações outras. A imagem do cemitério sobre a baía inundada de sol constitui, em “A ironia”, um exemplo do efeito gerado pelo símbolo: a imagem não conduz obrigatoriamente a uma interpretação sobre seu sentido, já que ela não se inclina imediatamente à expansão discursiva, mas permanece em suspenso, como imagem, como descrição, indiferente ao que a razão pode ali desvelar. Igualmente, a imagem da dançarina gorda em “Amor pela vida” é constituída a partir de algo particular que pode ser descoberto como universal, mas não diz respeito a um universal prévio para o qual o autor encontrou uma encarnação particular, assim, o caráter ignóbil e exaltante da vida que a imagem representa só é revelado a partir da interpretação que o autor lhe acrescenta e não em sua composição imagética. Nesse sentido, a forma pela qual a imagem simbólica é configurada por Camus permite enxergar em seu pensamento uma compreensão sobre o símbolo que se aproxima daquela pensada por Goethe no século XVIII, ainda que Camus não o distinga nem o prefira em relação à alegoria. Enquanto a criação alegórica transforma o fenômeno em conceito e este em imagem, a criação simbólica transforma o fenômeno em ideia e a ideia em imagem, de sorte que, por ser ideia e não conceito, pois nenhuma experiência lhe é perfeitamente adequada, para Goethe, o sentido da imagem permanece inesgotável e vivo no símbolo, ao passo que na alegoria a imagem resta atrelada ao conceito e seu sentido finito, terminado. A alegoria permanece assim como subsidiária ao pensamento, como expressão da razão, enquanto o símbolo constitui-se como o que escapa a ela, uma vez que pode exprimir o inaudito ao conseguir configurar numa mesma imagem uma articulação entre o universal e o particular, o sensível e o inteligível.

Na esteira da reflexão goetheana, ainda que Camus opere com uma noção de símbolo que lhe é própria e que só pode ser apreendida em seus usos literários, compreende-se porque o autor recorre à imagem simbólica para configurar ironicamente determinadas vivências: no símbolo torna-se possível a vizinhança dos contrários ou a apresentação de sua coexistência sem que disso decorra qualquer espécie de síntese totalizadora do real; os aspectos inconciliáveis são ali coligados pelo trabalho conjunto e crucial entre a imaginação e a reflexão que, fundamentado na experiência sensível, inviabiliza as abstrações da razão, possibilitando que o pensamento se atenha à vida e à realidade concreta. Daí que a clareza e a honestidade do homem em relação ao que ele vive no mundo, bem como a possibilidade da criação de imagens enquanto mitos propulsionadores de uma reflexão mais ampla, só é possível por meio de uma consciência que encara o absurdo, de modo que ela se sustente diante das coisas sem o véu do hábito. Destarte, a criação das imagens e a possibilidade de uma reflexão verdadeira por meio

delas depende, para Camus, em última instância, de uma atenção constante aos afetos, aos sentimentos que mobilizam a subjetividade e interferem na conduta humana.

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