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Amores Desafortunados

No documento A Terra de Duas Línguas (páginas 191-197)

M

oera-Ihe o juízo a criada das Estanqueiras. Que os rendeiros se queixavam, e com razão. Que qualquer dia a nora caía à ribeira. Que duas horas bastavam para fazer o serviço. Que se não lhe interes- sava o biscato que o dissesse. Que mais isto. Que mais aquilo.

Afinal de contas, não havia motivo para tamanhas inquietações. Apenas umas pedras folgadas no paredão da nora. Mas, fosse como fosse, cumprira já a sua obrigação.

Sentado no poulo, de costas apoiadas ao tronco de um salgueiro, assim divagava o Aniceto, enquanto, deleitadamente, saboreava as ta- lhadas de melancia que refrescara no tabuleiro da nora. E à embriaguez do paladar saciado seguiu-se o enlevo do espírito, provocado pela do- çura do agonizar do dia. Doçura feita dos gorjeios da passarada; da cla- ridade branda do crepúsculo; do aroma das olgas prenhes de renovo; do tã-tã-tã cadenciado das noras; do frescor que a brisa derramava sobre a paisagem morna.

E só quebrou o êxtase, quando um subtil cantarolar de rapariga, vindo da margem onde ele estava, o despertou. A voz foi-se tornando mais nítida, mais próxima. Sem se levantar do chão, espreitou por en- tre a ramagem farta do salgueiro. Era a Esmeralda ou o diabo por ela. Exactamente. Era a Esmeralda que regressava da Olga.

Junto às poldras, a rapariga suspendeu a cantilena e olhou em tor- no, a indagar se havia gente ao pé. Não viu ninguém. Nem sequer o pe- dreiro, uma vez que, entre ele e a moça, se erguia a pequena elevação em que assentava a nora. Tranquilizada, abeirou-se da água, andou uns passos e, quase em frente do local em que se encontrava o Aniceto, de- pôs na areia o cesto que trazia à cabeça.

A ribeira ali era mais funda e encoberta pelas margens altas, cer- radas de folhagem. Tal qual o que previra, timidamente, o rapaz. A ca- chopa vinha tomar banho, pois que logo despiu a blusa, depois a saia e, courachinha como a mãe a dera ao mundo, satisfez o seu intento. Com

a água pela cintura e as mãos cruzadas sobre os seios roliços, que pare- ciam querer saltar como se fossem dois pássaros libertos, a Esmeralda avançou até ao pego da corrente e, após um ligeiro arrepio, deixou que o corpo todo se lhe entregasse, para, num instante, emergir refrescado e límpido.

O Aniceto, tonto do que vira, continuava, alapado e imóvel, entre a ramagem, receoso, apenas, de que o denunciasse o martelar revolto do coração contra a arca do peito. E naquela postura se manteve até que a cachopa abalou, de cesto à cabeça, retomando a cantilena interrompida.

*

A

cena da ribeira agitou profundamente a adolescência calma do Aniceto.

Entregue ao ofício de pedreiro desde ganapo, passava os dias fora de casa. Lá aparecia, entre os da terra, aos domingos e pouco mais. E esse isolamento adormeceu-lhe o coração e fez dele um acanhado em questões de amor, tornando-o incapaz de dizer um simples gracejo às raparigas. E não se podia afirmar que os seus dotes físicos aconselhas- sem semelhante atitude. Pelo contrário. O Aniceto era um mocetão. No lançamento do ferro batia o mais pintado e, apesar dos seus dezanove anos, revelava uma coragem, como poucos. Bastaria dizer que, uma al- tura, no desfazer da feira dos Reis, conseguiu desapartar, sozinho, dois tendeiros, que se haviam engaliado na taberna do Cavalheiro. E tendei- ros à bulha, e com os copos, são o diabo. Ora, com tais predicados, não era de estranhar que muitas raparigas suspirassem pelo Aniceto. Mas ele é que não respondia àquela solicitação amorosa.

A partir da tarde em que o corpo desnudo da Esmeralda se lhe ofereceu aos olhos, nimbado pela magia da hora e do local, o instinto acordou nele abruptamente. Via-se perseguido, a todo o instante, pela imagem da cachopa. E, de tal forma se abstraía do mundo que o cerca- va, que o Melenas, na pedreira, teve de se impor:

– Que dianho tens tu, homem? Se estás doente, fica em casa e trata-te... Males desta natureza não se curam com tisanas. E o rapaz, ferido pela censura do patrão, foi sofrendo, caladamente, até que, um dia, ga- nhou coragem e resolveu dirigir-se à moça.

Andava a trabalhar com o Melenas, à Caída. Levantou-se muito cedo, seguiu estrada abaixo e, antes da ponte dos Vilares, meteu pelo

caminho das olgas. Era a vez da rega na fazenda da Esmeralda e, certa- mente, iria ali encontrar quem o enfeitiçara.

Por uma e outra margem da ribeira, as olgas estendiam-se numa lon- ga faixa parcelada, colorida, fertilíssima, onde a azáfama palpitante da manhã era denunciada pelo taramelar das noras, que os jumentos faziam mover como grilhetas. Taramelar que servia de fundo ao cantochão, ar- rastado e dolente, dos segadores que moirejavam num cabeço próximo.

O Aniceto, à Tapada, deixou o caminho e cortou direito à ribeira. Deu-lhe um baque no coração. Era chegado ao local onde os olhos se lhe haviam deslumbrado diante de uma aparição indefectível. Mais aci- ma, ficava a olga da Esmeralda. Tal como esperava, logo divisou a pe- quena a conduzir o regueiro por entre um talho de feijões. Gostaria de se aproximar dela para lhe dizer, ao menos, parte das palavras que havia ensaiado para aquele momento. O diabo é que a mãe estava ao pé e teve de limitar-se a atirar-lhe um bom dia bem sonante para que o ruído da nora o deixasse ouvir, embora repassado da ternura de que fora capaz. A Esmeralda correspondeu, indiferente, à saudação matinal, sem dar conta do fogo que a disparara.

O Aniceto voltou a procurar a jovem, desta vez na Fonte Nova. Andava ela a pôr figos ao sol, depois da sesta.

– Queres uma ajuda?

Sozinha ali no ermo, àquela voz que nem esperava nem reconhe- cera, a rapariga, acocorada sobre a palha do estendal, estremeceu. Mas, vendo o pedreiro na canelha:

– E olha que bem precisava... – Pois se queres, estou às ordens...

– Será melhor não aceitar. Podias atirar-te aos figos, ainda quentes, e andar de esfoira, por minha causa…

– Então, vou andando. – E, já a uns passos de distância: – Cuidado, não te comam os lobos... – Coisa ruim não tem perigo...

«Está saído o fulanote!» – disse ela para consigo, sem que a intro- missão lhe tivesse desagradado. «Tão boa maré que eu perdi!» – lamen- tou-se, interiormente; o Aniceto, increpando a sua timidez.

Mas, quando o aguilhão do amor espicaça um homem e, para mais, na força da mocidade, não há obstáculo que se não derrube. O Aniceto prosseguiu no ataque e foi ganhando terreno. Um madrigal, bem estu- dado, à saída da missa de domingo. Um remoque na bica da Mimosa. Um encontro, aparentemente fortuito, na encosta do monte do S. Brás,

ao anoitecer. Mais uns preparativos – e o certo é que o amor se ateou, a valer, naqueles dois corações inflamados.

A transição brusca no comportamento do pedreiro e o facto de ele se haver voltado para si, enjeitando outras moças, porventura mais prendadas, não deixaram de causar espanto à Esmeralda, que o expres- sou, uma ocasião, entre dois beijos:

– Que bicho te mordeu para te apegares mim dessa maneira? – Isso é cá um segredo... – Que segredo?

– Um dia, conto-te...

E o idílio prosseguiu de vento em popa. A mãe da cachopa, que tinha genro em vista, desconfiou da marosca e pôs-se de atalaia. De forma que a Esmeralda e o Aniceto passaram a encontrar-se, às ocultas, para evitarem sarilhos. E, com tais precauções andaram, que ninguém no povo deu por nada...

*

M

as há amores que nascem sob o signo o da desgraça. E assim aconteceu com os do jovem par enamorado.

Foi numa obra, em Lamalonga. Nessa manhã, içada a padieira de granito, havia, agora, que removê-la, até ficar assente no local exacto. Em cima da parede, o Melenas entregava-se à manobra, que dirigia num ritual cantante:

– Ou-u, pe-dra. Ou-pa. Va-mos, ou-u...

Do lado oposto, o Aniceto coadjuvava o patrão, puxando a pedra, às arrecuas, com o auxílio de um pistolo, usado como alavanca.

– Alto!...

Suspendeu-se a tarefa. Erguendo o tronco espadaúdo, o Melenas mediu distâncias com olhos e deu novas ordens:

– Ainda mais um pouco!...

E a operação recomeçou, guiada pela cadência: – Ou-u. Ou-pa...

A toada não foi mais longe, tolhida pelo que, num ápice, aconteceu. A um movimento baldado do ferro, o Aniceto desequilibrou-se e caiu sobre umas cantarias. Um lanho na fronte, que jorrava sangue como uma nascente.

Varreram com o moço para a Torre. Mas o Dr. Bonfim viu o caso mal parado. Desinfectou-lhe o golpe, ligou-lhe a cabeça e fê-lo con-

duzir ao hospital de Mirandela. Tudo foi inútil. O médico a tomar-lhe o pulso e a morte a fechar-lhe os olhos.

*

Numa tarde de fins de Outubro, o corpo do Aniceto seguiu para o cemitério, no meio de um longo cortejo, pois que o rapaz era benquis- to na povoação e aquele tombar assim, na flor da juventude, apiedou toda a gente.

Na altura em que o préstito, saído da igreja, atravessava o largo da Berroa, um grito lancinante partiu da casa da Esmeralda. Àquele des- tempero, as pessoas entreolharam-se, perplexas, e até o padre se perdeu no seu latim.

Mas, volvidos seis meses, a moça revelou publicamente o segredo da sua atitude. Deu à terra um pimpolho que, no dizer de todos, era o focinho pintado do Aniceto.

…O segredo do Aniceto, esse, é que foi com ele, inteirinho, para a cova!…

No documento A Terra de Duas Línguas (páginas 191-197)