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Quintas e Domingos

No documento A Terra de Duas Línguas (páginas 99-103)

Q

uando o Januário Domingos desceu de Trás-os-Montes, na ideia de tentar fortuna pelo comércio, contava apenas treze anos de idade.

Precisando melhor, convém dizer que o rapazote, a esse tempo, não tinha ideia alguma. Tinham-na, porém, os pais, honrados lavradores de Alfandega da Fé, que no amanho de uma pequena courela arrendada na Vilariça nunca haviam conseguido juntar duas moedas para uma doen- ça. E, contudo, o pobre casal não descansava um instante. De inverno, quando a Burga lhe inundava de lés-a-lés o terreno, trabalhava ainda, podando e amarrando as vinhas dos outros. E à noite, sob a luz trémula de uma candeia, construía caixões para transporte de fruta.

No dia em que o fedelho trocou os calções abertos por umas largas calças de cotim barato, o par de camponeses que o gerara, reunido em conferência, deliberou dar ao filho um modo de vida diferente do seu. E, chamando Januário Domingos a capítulo, assim falou o lavrador:

– Meu filho! Trabalho como um moiro há trinta anos. Vendo me- lões, e nunca pude arranjar um pouco daquilo com que eles se com- pram. Endireito videiras, e nunca passei da cepa torta. Toda a noite martelo em caixões, e não sei se haverá alguém que me faça o meu, visto que não deixarei, ao fechar os olhos, quinze escudos para pagar essa tarefa a um carpinteiro. Isto não é vida, como vês, e não quero que tu, seguindo o meu exemplo, partilhes da nossa miséria. Irás para o Porto, tentar o comércio.

– Mas eu não percebo nada disso – observou a criança. – Sei ler e escrever mal, e não sou capaz de acertar uma conta.

– Isso não faz ao caso – tornou o pai. – No comércio, podes errar as contas à vontade, contanto que o engano seja contra os fregueses. Verás como me agradeces a ideia em menos de um ano. Não há vida como a de negociante, lá em baixo. Compra-se o arroz a 15, escritura-se por 20 e vende-se a 40, não falando no pó que fica no armazém e é vendido às

perfumarias, p’ra as madamas deitarem na cara. Se o governo lançar um imposto de dois por cento sobre as favas secas, sobrecarrega-se a mer- cadoria em doze por cento, vende-se pelo dobro, e quem paga as favas é o consumidor. Se há bacalhau de mais na praça, e tende a descer de preço, ferra-se com o excedente no fundo do poço e deixa-se apodrecer. Depois de esgotado o bacalhau bom, vende-se o que apodreceu como se fosse de primeira qualidade, e manda-se para as drogarias a água do poço, engarrafada, com o rótulo de óleo de fígado. Faz-se dinheiro em tudo. E enriquece-se honradamente, como vês, fazendo-se jus à consi- deração de toda a gente de bem.

Interrompeu-se nesta altura o lavrador, pondo as mãos em pára-luz diante dos olhos, como se tivesse a visão nítida do comércio português após a guerra mundial, que havia de estalar vinte anos depois. E termi- nou com o gesto de Hamlet a Ofélia, mas com muito mais juízo e bom senso que o príncipe dinamarquês:

– Vai para negociante, meu filho. Comer ou ser comido, eis a ques- tão. Ora, ser comido é uma coisa deplorável, que eu não desejo ao meu maior inimigo. É muito melhor comer. Vai para negociante, e verás como hás-de, mais tarde, agradecer-me este conselho!

*

C

hegou Januário Domingos ao Porto, recomendado por um velho conselheiro, influente político da terra que recomendava toda a gente ao conceituado comerciante Feliciano Quintas, com mercearia na Rua das Flores. Foi isto em 1888. Marçano no dia seguinte, caixeiro ao fim de quatro meses, sócio da casa ao termo de dez anos… O rapaz aproveitara as lições do pai. Impando de alegria, e depois de ver o seu nome em letra redonda, precisamente no momento em que na varanda da casa aparecia a nova tabuleta Quintas & Domingos, Januário enviava ao Asilo de S. João, para ser melhorado o rancho dos internados, mil e duzentos réis.

Completara dias antes os seus vinte e três anos. Era um rapaz todo tirado das canelas, esbelto, elegante, sócio da Euterpe e usando bigode, com permissão de Feliciano Quintas. Tinha este uma filha natural, cha- mada Encarnação, que vivia nos andares superiores da casa, atafulha- dos de géneros alimentícios.

Januário Domingos ia, às vezes, lá acima, passar revista às mercado- rias acumuladas, dar ordens para ser carregada esta ou aquela partida

de bacalhau. Encontrava a rapariga de quando em quando. Apertavam- -se as mãos, trocavam sorrisos doces. E foi entre duas rimas de polvo e um monte de caixões de passas que ele lhe declarou o seu amor...

Casaram daí a seis meses, por uma manhã pardacenta de Janeiro. Precisamente um ano depois, a pobre Encarnação Quintas, atacada por uma pneumonia dupla, dava a alma ao Criador.

Foi grande a mágoa de Januário Domingos. Amara sinceramente a  esposa. Mas era novo e tinha um temperamento de transmontano. Ao cabo de três meses, mal sentia adormecido o sogro, com quem continuara vivendo, e a quem dedicava o mesmo respeito dos tempos de marçano, raspava-se em bicos de pés – para a estúrdia. Manda a verdade dizer-se que o não fazia todas as noites. Duas ou três vezes por semana, o máximo.

Como, porém, nunca lhe saía da mente a esposa estremecida, Ja- nuário Domingos encontrara maneira de compatibilizar as noites de pândega com a saudade e o respeito pela sua memória. Dia em que des- carrilasse da seriedade devida à sua posição de honrado comerciante e ao seu estado de viúvo inconsolável, corria a ter com um sacerdote, e incumbia-o de rezar uma missa para aplacar a alma da defunta – ce- rimónia a que ele assistia compungidamente. E tantas eram as missas que encomendava e a que assistia, que as vizinhas, ao vê-lo passar para a igreja, sentiam as lágrimas assomar-lhes aos olhos e murmuravam umas para as outras:

– Nunca se viu um viúvo assim! Amigo da mulher como aquele não torna a haver outro no Porto!

E não – vamos nós jurá-lo também sobre umas Horas. O que não quer dizer que não fosse igualmente amigo – das outras.

*

U

m dia do ano passado em que o Januário Domingos, recolhendo do S. João nas Fontainhas, se dirigiu ao padre Anselmo, rogando- -lhe que rezasse imediatamente uma missa por alma da Encarnação, obteve como resposta:

– Impossível! Tenho o mês todo tomado. E abrindo a agenda:

– Imagine! Só seu sogro me encomendou dez! – Dez missas?

– Por que intenção?

– Por uma intenção particular.

Foi-se dali o Domingos cogitando no caso, e, apenas o sogro entrou na loja, disparou-lhe à queima-roupa:

– Para que é tanta missa que o senhor tem mandado rezar?

Feliciano Quintas explicou: também ele tinha os seus escrúpulos. Não como os do genro, cuja vida nocturna conhecia perfeitamente, apesar de toda a cautela por este empregada. Estava velho para isso. Mas, sempre que enganava algum cliente, fornecendo-lhe mercadoria avariada ou levando-lhe mais cem por cento do que era justo, sentia re- mordimentos de consciência. Daí, as missas que mandava rezar: missas por sua alma, descontadas adiantadamente, não fossem os herdeiros esquecer-se disso depois do seu falecimento.

Vossas excelências recordam-se de ter estado no Porto, este último Inverno, uma famosa equilibrista de circo, a quem os cartazes chama- vam, em grandes letras berrantes, a «Bela Aragonesa»? Era linda, de facto. E tão formosa, que o Januário Domingos andou oito dias apaixo- nado por ela.

Coincidiu a estada da Aragonesa no Porto com a falta absoluta de açúcar na cidade. Tinha o Feliciano Quintas umas duzentas arrobas es- condidas no sótão. Havia-as comprado a quinze escudos. Vendeu-as, de uma assentada, a dez libras.

Nesse dia, pela primeira vez na sua vida, Januário Domingos não aparecera no estabelecimento. Entrou em casa às três da manhã, vindo de Braga, em automóvel, com a Aragonesa, depois de uma pândega ras- gada que meteu ostras de recheio e Champagne Cliquot.

No dia seguinte, sogro e genro, ambos vestidos a rigor e de rosto infinitamente compungido, mandavam cantar uma missa – a grande instrumental!

No documento A Terra de Duas Línguas (páginas 99-103)