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Passos Coelho

No documento A Terra de Duas Línguas (páginas 163-167)

O Serão e os Lobos

A. Passos Coelho

(1926)

Brasil

C

omeça esta história precisamente na altura em que muitas outras acabam – no casamento. No casamento da Bioleta com o Afonso, acto que, apesar dos anos, ainda hoje a gente de Fontelas não aceita como passo natural de rapaz e rapariga solicitados pelo fascínio do cio para debaixo das mesmas telhas.

Que teria havido?

Que teria havido entre a Bioleta, ricamente herdada por banda do pai, e o Afonso, um aldeagante qualquer, que, além do casebre onde se recolhia com os irmãos, apenas tinha boas falas, e era quando se encon- trava de maré?

Grande mistério rodeava semelhante união: ela, Bioleta, fartara- -se de apregoar que ele, Afonso, não era rapaz que lhe servisse, não era homem pra forma dela; por outro lado, respondia-lhe ele à boca cheia, que também ela lhe não convinha por não ser da sua laia, que mais assim e mais assado. E neste não te quero eu, não me convéns tu, quando tal arrebentaram os banhos do altar abaixo, no meio da missa de domingo!

Que teria havido?

Impossível sabê-lo. No entanto, observadora e oportuna, Fontelas concluiu sarcasticamente que a Bioleta verificara afinal ser ele rapaz prà forma dela.

Fosse como fosse, o rodar dos meses diria a última palavra. Tornas- se todo o mundo bem sentido no tempo, a contar do casório.

E que casório!

Em vez de se acomodar aos teres e haveres da mulher, que iam da salgadeira cheia ao pão e vinho para todo o ano, o Afonso, inda quentes os lençóis da primeira noite de casados – um modo de dizer... –, tratou logo dos papéis para embarcar rumo ao Brasil.

O mistério continuava.

na salgadeira que passava dum ano a outro ano, e por riba de tudo feito patrão – agora é que lhe dava para embarcar com destino ao Brasil?!

Não era o Afonso tão burro como isso. Ia mesmo desprezar aque- le desafogo, aquele conforto, para se meter numa aventura com desfe- cho escondido na mão apertada de Deus... Esperassem lá, que já ia! E depois não era só o bem-estar e a riqueza: era também a Bioleta, que sempre havia de lhe fazer vento contrário à intenção dele. Uma cacho- pa escarolada e maneirinha de corpo como ela, e no viço dos anos e do sangue, faz muito vento às intenções dum homem. Catrino, se faz! Donde se apura que não embarcava por querer. Não era tão burro como isso. Não, não era. Ali andava coisa...

Quem dispunha portas adentro, em perfeito acordo com as leis de Deus e do mundo, duma rapariga como a Bioleta, que até fazia com que um homem, nas segas, deixasse ir a seitoira aos dedos, à mão, ao bra- ço, por se lhe prender a vista ao corpo dela – quem desfrutava mulher assim alguma vez tinha coragem de deixá-la numa altura em que inda havia ossos da boda para desbulhar?!

Sem o Afonso junto dela, a Bioleta cedo se encontrou na situação angustiante que sobrevém a todas as mulheres que viram o seu homem largar para o Brasil.

Qual é o estado duma mulher que tem o homem no Brasil: – Casada?

– Viúva?

Nunca se sabe. Frequentemente, nem é casada nem é viúva. Como também não é solteira nem divorciada – em Fontelas não há mulheres divorciadas –, difícil se torna descobrir-lhe o rol a que pertence. «É uma mulher com o homem no Brasil» está tudo dito.

Sim, «uma mulher com o homem no Brasil». Aqui depara-se à má-língua campo propício para sôfregas espolinhadelas que ale- vantam sempre muita poeira e deixam no terreno a marca nojenta do venenoso animal. Porque «uma mulher com o homem no Bra- sil» tem forçosamente de usar saia pelo talão, blusa cingida ao pes- coço e aos punhos e lenço bem atado debaixo dos queixos. Tratan- do-se de mulher nova, ajuntem-se-lhe as roupas escuras e cotiadas e o desmazelo intencional, notório, do corpo todo, mormente de rosto – que não é nenhum botão de roseira que esmoreça à minga de água.

Respeitava tais preceitos a Bioleta? Isso respeitava ela. Se gerigota era, gerigota ficou. Se maneirinha era, maneirinha ficou. Até parecia

sentir gosto em ter o homem longe dela, lá no cabo do mundo. De facto, era caso para se perguntar:

– Que teria havido?!

Talvez nem o padre fosse sabedor. Com um procedimento daque- les, parte a parte, não custava crer que falseassem a confissão. Se al- guém vira nunca tamanho desconchavo: a dizerem mal um do outro, casaram-se; sem dizerem mal um do outro, separaram-se.

Grande mistério ali andava. Tivesse a Bioleta qualquer coisa que se lhe dissesse do tempo de solteira e haveriam de ver que não faltava quem botasse segundo sentido ao embarque do Afonso.

Mas Fontelas não desistia de saber qualquer coisa:

«Caramba, nem pareces casada, mulher! O que tu quiseste foi to- mar-lhe o gosto e pronto!»

«Fazes tu bem, rir e cantar! As más-línguas tanto falavam assim como assado... De resto a culpa é toda dele, do Afonso. Que precisão tinha de ir para onde foi?! Não se casasse, então. Se te puseram fama, a culpa é toda dele. Toda dele! Um homem que larga a sua mulher debicada de fresco tem sempre a culpa! Ao menos que te emprenhas- se. Um filho, além de freio, também é companhia. Mas pelos vistos o  alma do diabo sonhava mais co Brasil do que contigo...! Fazes tu bem, comer e beber pa diante, e rir e cantar!»

«Sabes o que dizem por aí? Que o teu Afonso casou contigo só por mor da passagem prò Brasil. Se foi isso, o que ele merecia era uma que lhe pregasse na testa um par de cornos retrocidos como os do meu car- neiro preto!»

«Sempre foi verdade que o Afonso te pôs na carta um abraço de... ? Grande pórco! Se era coisa que se pusesse na carta...! Pra mais sabendo que tens de meter quem ta leia.»

Comentários e ditos foram aumentando progressivamente de im- portância com o virar dos anos.

Ultrapassaram Fontelas. Chegaram ao Brasil.

«Uma mulher com o homem no Brasil» nunca sabe a que rol per- tence: se ao das casadas, das viúvas ou das abandonadas.

A Bioleta supunha-se uma mulher abandonada. Ao fim de longos meses – ou anos? – sem receber uma linha escrita ou um real, acabou por considerar-se uma mulher abandonada. Mas de um dia para outro eis que o Afonso volta para junto dela. E volta firmemente disposto a reparar o seu erro:

«Tens razão. Nunca devia ter partido. Nunca! A cegueira do Brasil não me deixou ver. Andava cego! Perdoa-me, Bioleta! Dizem mal de ti, eu sei. A culpa é toda minha. Toda minha. Mas nós vamos deixar para sempre esta terra de má-língua. Vamos para o Brasil. Vamos ambos, Bioleta! Não te quero neste povo maldito! Não quero! Foi por isso que vim. Fontelas há-de saber que não casei contigo por causa da passagem. Estou aqui para te tirar desta má-língua danada. Vamos para o Brasil! Para nunca mais! Hás-de ver o que é o Brasil…!»

Com o despacho que um homem ganha na dupla travessia do mar, o Afonso logo arranjou as coisas todas para novo embarque, agora com a sua falada Bioleta.

Vendidos os terrenos que ela herdara do pai, pois não tencionava voltar a Fontelas, lá foram de comboio ao encontro do vapor.

«Era lindo, o Porto? Havia de ver então o Brasil…»

Depois de lauto almoço em pensão de alta-roda, o Afonso levou a mulher a um botequim, onde ambos escorropicharam sua chícara de café.

«Eram lindos, os botequins? Ela havia de ver então os do Brasil...!» – Agora espera aqui, enquanto vou no cônsul, por causa dos papéis. Mas não arredes pé, que te podes sumir. Eu cá venho ter, para irmos tratar das tuas roupas.

Afastou-se. Com os olhos nele, a Bioleta, feliz até mais não, sentiu- -se vaidosa do seu homem aperaltado como os da cidade, entre os quais mal se diferenciava.

Porém, algumas horas depois, quando o vapor do Brasil já lá ia oceano fora, levando o Afonso a bordo, ela, apenas com a roupinha que trazia no corpo – porque a restante, imprópria para usar no Brasil, fora vendida no povo, ao desbarato –, ela, Bioleta, era a mulher mais desgraçada do mundo.

No documento A Terra de Duas Línguas (páginas 163-167)