• Nenhum resultado encontrado

I – Entre a honra e a vida: o abandono de crianças e as práticas infanticidas

1 Amores duvidosos e o abandono de crianças no Recife colonial

Amar o homem ou a mulher por quem o coração palpita, num “fogo que arde sem se ver”, como dizia Camões 1, que não se esvai em “trêmulos harpejos”, que não se consome “só [em] delírios e desejos”2, atina para uma forma diferente de

amar, de um amor romântico3 que une ágape e eros, “o amor a si e o amor ao

outro”4, onde a reciprocidade e a livre escolha dos cônjuges urdem as teias tênues e frágeis das relações amorosas. Esses sentimentos e valores, tão presentes nos dias atuais, eram desconsiderados ao se tratar dos acordos matrimoniais no Brasil colonial, os quais tinham como fundamentos alianças familiares e como pressuposto

1

CAMÕES, Luís de. Rhitmas, 1595. Apud QUEIROZ, Mirna. Luís Vaz de Camões. Disponível em:

<http://www.vidaslusofonas.pt/luis_de_camoes.htm>.

2

QUENTAL, Antero de. Sonetos completos. Porto: Nova Crítica, 1980. p. 172

3

Ver sobre o tema do amor numa perspectiva histórica D’INCAO, Maria Ângela (Org.). Amor e família no Brasil. São Paulo: Contexto, 1989.

4

COMTE-SPONVILLE, André. O amor a solidão. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 69.

a igualdade social entre os noivos, de forma que o amor conjugal era o lugar para “apagar os incêndios” da volúpia e não fazê-los clarificar, como explica Bluteau. Assim, o amor sensual, desmesurado e voluptuoso, como sói acontecer entre os amantes nas relações consideradas ilícitas, nunca deveria suceder entre os esposos, como aconselhava São Jerônimo, pois “o homem avisado deveria amar a sua mulher com sensatez, não com paixão”.5

Do ponto de vista civil, o casamento era importante para a transmissão do patrimônio e para a perpetuação da progênie familiar legítima. Para a Igreja, o interesse era extinguir a concupiscência, o amor lascivo e dissoluto; já que isso não era de todo possível, buscaria ao menos disciplinar as condutas sexuais e reduzi-las

à mera atividade de reprodução6, com o fim de “extinguir o desejo e não de o

aumentar ou de o fazer durar”, na arguta observação de Phillipe Ariès.7 Essa mesma percepção pode ser encontrada nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia quando afirmam que o matrimônio é o “remédio da concupiscência e São Paulo o aconselha como tal aos que não podem ser continentes”.8 Nem paixão, nem volúpia e nem desejo deveriam constituir os alicerces das relações maritais, pois “o amor conjugal que a Igreja recomendava aos esposos era um amor cristão [...] que não se baseava na vã aparência dos corpos nem sequer em misteriosas afinidades das almas, mas no amor de Deus e na graça que Ele conferia aos seus esposos pelo sacramento do matrimônio”.9

Na Colônia os amores sensuais e voluptuosos se espalharam de canto a canto, pois a frouxidão das imposições religiosas e das normas civis tornavam possível aos colonos portugueses amasiar-se, porque “mais soltos na sua moral cristã”.10 Nunca é demais lembrar que os casamentos legítimos e sacramentados eram “uma opção das ‘classes dominantes’”, motivada por interesse patrimoniais ou de status, e figurava como “um ideal a ser seguido” para os demais estratos sociais que estabeleceram o

5

Apud FLANDRIN, Jean-Louis. Família: parentesco, casa e sexualidade na sociedade antiga. 2. ed. Lisboa: Estampa, 1991. p. 169.

6

Cf. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. 2. ed. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1985.

7

Apud LIMA, Lana L. da Gama. A boa esposa e a mulher entendida. In: ______ (Org.). Mulheres, adúlteros e padres: história e moral na sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Dois Pontos, 1987. p. 23.

8

CONSTITUIÇÕES Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707). São Paulo: Typographia 2 de dezembro, 1853. Livro I, Título LXII, § 260, p. 107.

9

FLANDRIN, Jean-Louis. Op. cit., p. 174.

10

concubinato como alternativa sexual e conjugal, como destaca Vainfas.11 As paixões ardentes e os casos amorosos eram vividos pela maioria da população livre e/ou

escrava nos amancebamentos ou nas relações consensuais.12

Aliás, a historiografia brasileira, como pontua o referido autor, tem percebido na “incidência do concubinato entre indivíduos legalmente solteiros, sem recursos e racialmente discriminados” o espaço da escolha e da “opção amorosa e conjugal dos deserdados da Colônia, pobres e desclassificados que, marginalizados e incapazes de

contrair matrimônio, teriam assumido a condição de amancebados”.13 São dessas

relações amorosas que surgem os filhos ilegítimos, bastardos, de procedência duvidosa — “filhos do pecado” para a Igreja.

As crianças deste estudo não são apenas aquelas provenientes dos amores proibidos, “filhos ilegítimos” surgidos de padres amancebados “de portas adentro”, ou ainda daqueles “amasiados” que se limitavam a visitar ou receber as concubinas sob a vista grossa da Igreja, mas também os frutos clandestinos e indesejados de uma vida amorosa e sexual na Colônia que encobria uma vasta e complexa gama de relações sensuais: “de mulheres e homens enfadados no casamento; de padres mal afeitos ao celibato; de homens de prestígio que, na falta de mulheres ‘brancas e honradas’, uniam-se informalmente às de cor; de mulheres brancas, índias ou mestiças que, ‘solteiras’, não podiam encontrar marido”.14 Em síntese, trata-se aqui de crianças nascidas de relações amorosas diversas — oriundas de uma extensa multiplicidade de contatos fortuitos, por vezes perigosos, proibidos, clandestinos ou tidos como imorais, ou de relações permanentes abençoadas pela Igreja e amparadas pela lei —, que resultam ser legítimas, bastardas ou ilegítimas, inscritas na condição fundamental de livres ou escravas, brancas ou mestiças, ricas ou pobres, todas elas, entretanto, assemelhadas entre si por terem sido enjeitadas ou expostas.

É preciso compreender as implicações provenientes de uma cultura notadamente misógina que difundia e impunha o papel que as mulheres deveriam desempenhar, o

11

VAINFAS, Ronaldo.Trópico dos pecados: moral, sexualidade e inquisição no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. p. 77-78. Os estudos sobre o casamento têm avançado, demonstrando a crescente importância das uniões sacramentadas entre escravos e a população livre e pobre. Ver a respeito FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998; PRIORE, Mary Del. História do amor no Brasil. São Paulo: Contexto, 2005. SLENES, Robert. Na senzala uma flor: a família escrava nas regiões de grande lavoura do sudeste. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.

12

VAINFAS, Ronaldo.Trópico dos pecados, op.cit. p. 85.

13

Ibidem, p. 90.

14

de serem submissas, obedientes e cordatas, seguindo a reboque das decisões do varão, fosse ele seu pai ou marido, sem contestação e, de preferência, com boa vontade. Tanto o governo como a Igreja envidavam esforços para que as mulheres aceitassem passivamente a sua missão no novo mundo, qual seja, casar e reproduzir.

A cultura misógina, item da bagagem cultural e da herança ibérica para os trópicos, nutria um profundo desdém pelas mulheres, que aparecem, por exemplo, na literatura moralista dos séculos XVI e XVII, como “manhosas, inconstantes, tolas, gastadeiras, maliciosas, hipócritas...”15 Os discursos de religiosos ressaltavam que as qualidades femininas eram a virtude, a honestidade, a honra e a discrição. “Ter uma casa para governar, um marido para cuidar e filhos que educar na virtude”, era

como o bispo Azeredo Coutinho definia o papel e a importância das mulheres.16

Mas, às mulheres que perdiam sua virgindade com promessas vãs, que se envolviam em relações proibidas, perigosas, duvidosas e engravidavam, ou apenas às que viviam em condições materialmente difíceis, enfim, às que não se enquadravam nos papéis e estereótipos chancelados, sem ter como assumir ou sustentar seus rebentos, restava o recurso do abandono dos filhos indesejados, buscando preservar sua ‘honra’, livrar-se da ‘prova’ de sua ‘fraqueza’, ou, com esse ato extremado, aventurar a possibilidade de uma vida melhor para o seu filho, já que só tinham para deixar como legado sua própria penúria.17

Esses “frutos do pecado” ou “frutos da miséria” abandonados às intempéries e aos animais carnívoros estavam incorporados à “paisagem” do Recife e, no final do século XVIII, haviam se transformado em um problema social. “Enjeitadas”, “expostas”, “crianças em tenra idade”, “miúdas”, “pequenos”, “inocentes”... eram algumas das palavras que denominavam as crianças abandonadas, e que lhes davam significados, materializando-as no cotidiano. Palavras-conceitos, noções-imagens construídas no terreno fértil e mutável da cultura e utilizadas corriqueiramente no Império português e, claro, no Recife.

Mas, afinal, expor o filho era um ato de amor ou desamor? Ou era um e outro fundidos num amálgama confuso? O que significava “expor” ou “enjeitar” uma criança? Consultando o dicionário de Antônio de Moraes, encontramos que “enjeitar é lançar de nós com desamor, o objeto que já tínhamos em nosso poder” ou ainda

15

VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados, op. cit., p. 121.

16

Apud LIMA, Lana L. da Gama. A boa esposa e a mulher entendida, op. cit., p. 26.

17

Cf. NASCIMENTO, Alcileide Cabral do. Mulheres honradas e vidas preservadas na Roda dos Expostos sob o olhar de Henry Koster. Artigo que está em vias de publicação.

que “enjeitar” significa “rejeitar o filho, expor”.18 Ou seja, o sentido coligido por Moraes aponta o enjeitamento de um filho como um ato de desamor. Apesar disso, não se pode asseverar que essa era uma percepção comum entre a maior parte das pessoas, pois ela pressupõe que o amor maternal fosse um sentimento internalizado, portanto, tido como natural à maternidade. Se não nos fiamos totalmente nesta acepção é porque, a nosso ver, encarcera o ato em uma significação exclusiva, posto que o pressupõe como uma afeição inerente à condição maternal, quando ele é constructo cultural e passa pela experiência individual de cada mulher. Assim, é preciso considerar, diferentemente de Moraes, que a exposição de um filho também poderia significar um ato de amor, uma tentativa de garantir-lhe a vida a despeito da sociedade escravista, desigual e fundamentada na orientação da Igreja Católica, que só reconhecia como filhos legítimos os que provinham de casamentos sacramentados, excluindo os de outros predicados.

2 As práticas da maternidade: entre o dever conjugal e o dever maternal

Assim como o casamento, a sexualidade conjugal também foi uma instância regulada de perto pelo discurso teológico. Os prazeres proibidos e permitidos foram objeto de um olhar e um ouvir que perscrutavam os fiéis, buscando identificar nas suas práticas mais íntimas a “falta”, o “pecado”, o “descuido”, a “fraqueza humana”. A doutrina cristã asseverava que o casamento tinha como objetivo a procriação, de forma que a relação sensual para busca do prazer era considerada pecaminosa. Por ser prescrita para o campo restrito da reprodução, a moral sexual conjugal era eivada de códigos de conduta que se sustentavam sobre determinada e tácita compreensão do corpo da mulher e do mistério e milagre da concepção.

Como pontua Flandrin, Galeno, inspirador de muitos médicos do Antigo Regime, afirmava que tanto o homem quanto a mulher emitiam um sêmen, que misturados davam origem ao embrião. Ainda segundo ele, a emissão desse sêmen gerava prazer, de forma que não existia procriação sem prazer compartilhado. As idéias de Galeno, nesse aspecto, muito se afastavam das de Aristóteles, para quem

18

SILVA, Antônio de Moraes. Dicionário da Língua Portuguesa. 4. ed. Lisboa: Imprensa Régia, 1831. t. I. Esse dicionário foi editado pela primeira vez em 1789, e reeditado e acrescido em 1831. Farei uso dele em diversos momentos do trabalho para compreender algumas palavras e seus significados na época.

a mulher só contribuiria para a concepção com seu ‘sangue menstrual’, um sangue que acumula no útero para essa finalidade é evacuado ao fim do mês, somente quando não houver concepção. Quando ao contrário, o esperma viril entra no útero e fica ali (e é melhor que seja pouco depois da evacuação menstrual, no momento em que a matriz é irrigada por um sangue novo), ele age sobre esse sangue como um tipo de fermento. Essa fermentação resulta ao fim de um tempo determinado, mais ou menos 40 dias, na concepção do embrião.19

Seguindo o raciocínio de Aristóteles, o esperma viril era o princípio ativo, o qual necessitava do útero irrigado para promover a “fermentação” com duração de mais ou menos quarenta dias, significando que a mulher, nesse processo de geração, tinha um papel passivo.

Essas duas teorias sobre a concepção alimentaram o debate teológico e influíram a moral cristã naquilo que lhe concernia, ainda que os teólogos não declarassem abertamente de onde fundamentavam suas idéias relativas ao casamento e à sexualidade. Uma dessas idéias decorria das concepções sobre a procriação de Aristóteles, entendendo que o aborto não era tão grave se fosse feito até quarenta dias, pois o embrião não teria alma.

Durante muito tempo, pensava-se que as relações sexuais poderiam corromper

o leite de quem amamentava20, torná-lo menos abundante e mesmo fazê-lo

desaparecer completamente, sobretudo quando a mulher concebia de novo.21 Como

esclarece a antropóloga Gilza Sandre-Pereira, a relação entre as substâncias corporais como o sangue — especialmente o sangue menstrual —, o esperma e o leite “está na base de explicações simbólicas sobre a procriação, engendra relações de parentesco, orienta as relações homem-mulher e forma o substrato de representações culturais diversas sobre a própria constituição das pessoas e sua identidade social”.22 Dessas intricadas relações, nos interessa discutir algumas concepções sobre a amamentação que chegaram ao Brasil colonial e fundamentaram a prática de se contratar amas-de-leite para os bebês lactantes.

19

FLANDRIN, Jean-Louis. O sexo e o Ocidente, op. cit., p. 152.

20

Ver a respeito o interessante artigo da antropóloga SANDRE-PEREIRA, Gilza. Amamentação e sexualidade. Revista de Estudos Feministas, Florianópolis, v. 11, n. 2, jul./dez. 2003. Um dos temas tratados pela autora é a simbologia do leite materno. Na sociedade da Nova Guiné, por exemplo, “o leite e o esperma são freqüentemente conceituados como substâncias homólogas, isto é, a esses dois elementos é atribuída uma origem ou uma função semelhante ou aproximada”, a exemplo da sociedade Baruya, que considera o leite materno como esperma transformado em substância nutritiva para os bebês, e dos Sambia, entre os quais se diz que “o corpo feminino é como um transformador biológico de esperma”. p. 470.

21

Cf. FLANDRIN, Jean-Louis. Família, op. cit., p. 216.

22

Os discursos sobre a amamentação eram múltiplos, às vezes se contrapunham, outras vezes convergiam em mostrar os seus malefícios para as mulheres, como elencou Elizabeth Badinter. As mulheres da elite francesa diziam que a amamentação era fisicamente ruim para a mãe e pouco conveniente, pois gerava o desperdício de um suco precioso necessário à sua própria conservação, tinha ainda o agravante de gerar uma sensibilidade nervosa diante do choro da criança e, por fim, provocava a fraqueza de sua constituição. Além disso, havia o argumento estético expresso na perda da beleza, na deformação dos seios e na sua flacidez. Do ponto de vista moral, considerava-se pouco digno as mulheres amamentarem os seus próprios filhos. Havia também a vergonha em mostrar os seios; significava falta de pudor tirá-los para amamentar. Os maridos consideravam a amamentação um atentado à sexualidade e restrição ao prazer, vendo o aleitamento como sinônimo de sujeira. Os letrados declaravam ser a amamentação ridícula e repugnante. A ojeriza pelo cheiro azedo do leite não era apenas sentida pelos homens das letras, Antoniette Fauve-Chamoux observa que entre as mulheres na França oitocentista o odor do leite, o seu transbordamento nos seios e a falta de

vestimentas para serem trocadas justificavam a procura de amas-de-leite.23 E

médicos e moralistas falavam da necessidade de não ter relações sexuais durante o aleitamento, pois o esperma estragaria o leite e o faria azedar, e essa interdição deveria durar o tempo da amamentação, em torno de dois a três anos!24 Assim, “a amamentação passou a ser um meio de vida para mulheres pobres na Europa Ocidental, enquanto as mulheres da elite se revezavam em torno de fórmulas para conservar a beleza de seus seios”.25

Ainda sobre a amamentação Flandrin explica que

os antigos médicos, medievais e modernos, consideravam geralmente que o leite era só o sangue da mãe, um sangue particularmente ‘cozido’. Quando a mulher amamentava, eles pensavam que todo o ‘excesso’ de seu sangue era transformado em leite em vez de ser evacuado periodicamente e que isso explica o desaparecimento das regras. Logo, as relações sexuais teriam o efeito de atirar o sangue para a matriz e de fazer desaparecer as regras, diminuindo conseqüentemente a lactação.26

23

Apud DEL PRIORE, Mary. Ao sul do corpo, op. cit., p. 252.

24

Cf. BADINTER, Elizabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Trad. Wlatensir Dutra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. p. 95-97.

25

DEL PRIORE, Mary. Op. cit., p. 243.

26

Segundo a compreensão da época, a amamentação deveria durar cerca de dois ou três anos, porque era raro um filho desmamado antes de um ano sobreviver.27 A questão era como compatibilizar as funções de esposa e de mãe. Segundo o mesmo autor, algumas sociedades induziam o homem a praticar o coito interrompido ou outros processos contraceptivos durante o aleitamento; muitas proibiam ao homem qualquer relação com a mulher até o desmame, mas autorizavam — ou até organizavam — as suas relações carnais com outras mulheres.28 Contudo, por razões doutrinais, a Igreja Católica não permitia nem a poligamia nem as relações extraconjugais; o casal deveria abster-se de relações sexuais no período da amamentação. No séc. XVII, o teólogo Tomás Sánchez opinava que se o casal não se abstivesse, não deveria se sentir culpado, “porque o prejuízo para a criança que mama — quando dessa copulação é concebida uma outra criança — pode-se remediar se nessa época ela é confiada a uma nutriz para ser amamentada”.29 A mesma opinião teria Fromageau, no séc. XVIII, que dizia que a ‘”mulher deve, se puder, pôr o filho na ama para prover à ânsia do marido, cumprindo o seu dever, para que ele não caia em algum pecado contrário à pureza conjugal’”.30 Por esses discursos, estava mais ou menos chancelada a justificativa para contratar amas-de-leite para que a mulher exercesse o seu papel de esposa e, portanto, cumprisse suas obrigações conjugais, sem pôr em risco a vida do filho lactante.

Entretanto, essas opiniões não eram consensuais no âmbito da Igreja. Havia as vozes dissonantes. Benedicti31, por exemplo, perguntava: “porque foi que a Natureza lhes deu [à mulher] duas tetas como duas garrafas pequenas se não para esse efeito?”.32 Assim, quando o debate tendia a beneficiar o casal era em detrimento da criança; em outro momento, quando tendia a beneficiar a criança, secundarizava a obrigação conjugal. A solução só foi possível quando se aceitou o coito interrompido

27

Cf. FLANDRIN, Jean-Louis. Família, op. cit., p. 216. Com base em pesquisa de Darcy Ribeiro, Gilza Sandre-Pereira fala da presença hodierna do tabu sexual durante o aleitamento materno entre algumas tribos indígenas brasileiras. Entre os índios Urubus-Kaapor do Maranhão, a abstinência deve ser mantida até a cerimônia de batismo, quando o pai dá um nome à criança, ritual que acontece quando a criança começa a sentar. Darcy Ribeiro “acrescenta que, em geral, os casais continuam a evitar as relações sexuais durante um ano ou mais, ou seja, o tempo que dura a amamentação até o desmame. Durante esse período, se ocorre uma relação sexual, as mulheres afastam o homem antes da ejaculação (coito interrompido), de forma a evitar que o esperma e o leite se misturem.” (Amamentação e sexualidade, op. cit., p. 473).

28

Cf. FLANDRIN, Jean-Louis. Op. cit., p. 216.

29

Ibidem, p. 212.

30

Apud ibidem, p. 216.

31

Jean Benedicti era pregador lionês, professor de Teologia e padre da Província de Touraine Pictavienne da Ordem dos Irmãos Menores da Observância. Ver nota 31 em FLANDRIN, Jean- Louis. Op. cit., p. 183.

32

— que era e é uma das formas de contracepção — como direito conjugal em qualquer época da vida de casado.33

O jesuíta Alexandre de Gusmão, que chegou ao Brasil em 1646 com apenas 17 anos e aqui fez seus estudos, escreveu, em 1685, a Arte de criar bem os filhos na

idade da puerícia.34 Tratava-se de um livro com pretensões de reformar a sociedade colonial35, no qual procurava, entre outras coisas, incentivar e mostrar como as mães deveriam amamentar com seus próprios seios, e repreendia aquelas que “com pretexto de nobreza ou costume” se eximiam de criar os filhos aos seus peitos, porque era impiedoso e ademais era sua obrigação.36

Com o objetivo de persuadir as mães para a prática do aleitamento, o jesuíta falava da importância do leite materno, porque, como dizia Galeno, o leite da mulher