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I – Entre a honra e a vida: o abandono de crianças e as práticas infanticidas

4 Olinda x Recife: a peleja em torno da criação dos expostos

Na primeira metade do século XVIII, a prosperidade do Recife e sua definitiva importância comercial levou os comerciantes a diferentes enfrentamentos com a aristocracia local encastelada em Olinda. Após a expulsão dos holandeses de Pernambuco, em 1654, e até o final do século, o Recife recebeu grande número de reinóis, “gente de condição modesta e também humilde, das cidades e dos campos

portugueses, ambiciosa e pronta a qualquer sacrifício para alcançar fortuna”.88

Gente que vinha para morar. Gente que vinha para enriquecer. Gente que vinha ocupar cargos públicos e gente que vinha para aventurar. Segundo cálculos aproximativos do pesquisador Gonsalves de Mello, a população era estimada em dez mil pessoas, em 1710, incluindo os escravos. O termo do Recife compreendia então a freguesia de São Pedro Gonçalves do Recife (o Recife antigo, os atuais bairros de Santo Antônio e de São José), Muribeca, Cabo e Ipojuca.

Embora a “nobreza da terra” tenha conseguido, após a expulsão dos holandeses, reconstruir Olinda, incendiada pelos batavos, e deslocado o centro político e administrativo para aquela cidade, não diluiu as marcas do tempo em que o Recife era a capital do domínio holandês. A recuperação simbólica de Olinda como

87

Apud ARAÚJO, Emanuel. O teatro dos vícios: transgressão e transigência na sociedade urbana colonial. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997. p. 176.

88

Sobre a Guerra dos Mascates ver o trabalho de MELLO, José Antônio Gonsalves de. Nobres e mascates na Câmara do Recife, 1713-1738. Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco, Recife, 1981. p. 114.

lócus do poder senhorial se fez com base na contração de empréstimos financeiros dos senhores junto aos comerciantes do Recife, no momento em que periclitava o comércio de açúcar devido à queda dos preços daquela especiaria nos mercados europeus e à concorrência com o açúcar antilhano, afora isso, a desvalorização da moeda portuguesa gerava uma alta nos preços dos produtos importados da Europa. Internamente, a Colônia suportava a elevação dos preços de gêneros, artefatos e serviços e, em especial, dos escravos, “pelos quais os mineiros pagavam o que se lhes pedisse”, decorrência da descoberta de ouro nas Minas Gerais e de suas conseqüências inflacionárias.89

A descoberta de minas de ouro no sul do país deu um forte alento ao Recife, pois eram “os comerciantes de Pernambuco e da Bahia que levavam às minas os tecidos e o gado de que a população mineira necessitava”, como observou Luiz

Geraldo Silva.90 A prosperidade crescente do Recife, desde a presença dos

holandeses, e de sua elite comercial tornou possível a elevação do Recife à categoria de vila, em 1710, numa clara demonstração de apoio da Coroa portuguesa à burguesia mercantil emergente.91 Essa condição brindava os comerciantes com a liberdade de administrar seus interesses através da instalação da câmara municipal — ocupar cargos, exercer, através dos almotacés, a fiscalização dos preços de mercadorias e serviços, “usufruir os privilégios e gozar do prestígio que a condição de vereador lhes conferia na sociedade”.92 Todavia, a contenda aberta com Olinda não foi resolvida em um único lance. A redefinição desse estatuto de dependência frente à senhorial Olinda levou à revolta dos senhores que passou à história inapropriadamente como Guerra dos Mascates.

Ainda que os comerciantes do Recife tenham garantido interesses múltiplos com o fim da Guerra, a rivalidade com a Câmara Municipal de Olinda ganhou novas cores e contornos.93 Uma delas dizia respeito à responsabilidade com os expostos. A contenda girava em torno do rendimento de cento e vinte mil réis que a Câmara

89

MELLO, José Antônio Gonsalves de. Nobres e mascates na Câmara do Recife, op. cit., p. 114-115.

90

SILVA, Luiz Geraldo. Guerra dos Mascates. São Paulo: Ática, 1995. p. 12.

91

Como arremata José Antônio Gonsalves de Mello, “Em Pernambuco a burguesia em ascensão encontra favor na Coroa, e por isso, foi a classe senhorial que foi levada às armas, para conservar seus privilégios”. Op. cit., p. 117.

92

Ibidem, p. 120.

93

Ver a polêmica entre as Câmaras do Recife e Olinda sobre o conserto das pontes do Recife, Boa Vista e Afogados. MIRANDA, Carlos Alberto C. A arte de curar nos tempos da Colônia: limites e espaços de cura. Recife: Fundação de Cultura da Cidade do Recife. p. 444-445.

olindense deveria repassar anualmente para a recifense visando o sustento e criação das crianças “enjeitadas”.

As primeiras medidas públicas de amparo às crianças abandonadas na capitania de Pernambuco não datam do século XVII, como afirma José Bernardo Gama. Segundo este autor, antes da chegada do governador d. Tomás José de Melo (1787), havia uma casa destinada a “receber os infelizes [...] porque El-rei D. Pedro III, tomando em consideração a grande mortandade desses desgraçados, mandou por Aviso de 8 de julho de 1675, lançar sobre os contratos anuais a propina de 49$700 para socorrer os expostos; mas esse estabelecimento era de tão pouca importância, que, a exceção desse Aviso, não há registro de outra providência”.94 Também lendo Pereira da Costa pode-se supor que a assistência pública teve início em 1675, quando faz referência ao mesmo documento. Mas, relendo atentamente essa provisão, verifiquei que esse imposto era para ser enviado para Lisboa a fim de minorar a mortalidade das crianças expostas de lá, e não para ser aplicado em

Pernambuco.95

Portanto, o início da assistência pública aos expostos se dá nas primeiras décadas do século XVIII, décadas em que se digladiam na arena política local as elites olindenses e recifenses. Por volta de 1730, foi determinado pela Coroa que as Câmaras de Olinda e Recife se incumbissem da assistência às crianças expostas, constando no Regimento da Câmara de Olinda a consignação de uma verba de cento e vinte mil réis anuais para as despesas com os expostos daquela cidade; e um ano mais tarde, por ordem régia de 24 de setembro de 1731, determinou-se que a Fazenda Real destinaria igual quantia anualmente à Câmara do Recife, para

idêntica aplicação.96 Essa incumbência e dinheiro, dados às municipalidades,

geraram duas frentes de batalha dos vereadores de Olinda: uma com os irmãos da Santa Casa de Olinda e outra com a vereança do Recife.

A primeira contenda aberta se deu entre a Câmara de Olinda e a Misericórdia. A verba autorizada pela Coroa para custear as despesas de criação dos enjeitados deveria ser repassada pelos vereadores olindenses para a Santa Casa de

94

GAMA, José Bernardo Fernandes. Memórias históricas da província de Pernambuco. Recife: Secretaria da Justiça/Arquivo Público Estadual, 1977. v. 2, p. 363.

95

Cf. COSTA, F. A. Pereira da. Anais pernambucanos, op. cit., v. 4. p. 91; e INFORMAÇÃO geral da capitania de Pernambuco (1749). In: ANAIS da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, v. XXVIII. Rio de Janeiro, 1908. p. 332.

96

Cf. COSTA, F. A. Pereira da. Op. cit., v. 4. p. 91. O Regimento a que o autor se refere é de 6 de agosto de 1730.

Misericórdia de Olinda, que na época assumia a responsabilidade de agenciar mulheres e famílias para criar e cuidar dos expostos.

Segundo parecer do ouvidor geral, com esses recursos a Santa Casa deveria atender todos os enjeitados do termo — que compreendia de 12 a 20 léguas, naquela forma vaga e imprecisa de se medir a distância à época — e, “cabendo a cada enjeitado 10 a 12 tostões, vinham as pessoas a gastarem mais na jornada à Olinda para a sua cobrança do [que] importava os salários”, o que levara a referida municipalidade a deixar “de distribuir uns anos, para fazer maior monte”.97 A posição do ouvidor era de clara concordância com as decisões e interesses dos vereadores da Câmara de Olinda, em detrimento das reivindicações da Misericórdia, que não apenas reclamava do não recebimento do parco dinheiro durante esses anos, como solicitava o aumento desse valor.

Ainda que a justificativa do ouvidor se aproximasse da realidade — que o valor era tão diminuto que a Câmara optara por acumular alguns anos para efetuar um pagamento de porte —, na prática a assistência aos expostos não era percebida como uma necessidade pública, comum ao interesse de todos, levando a vereança não apenas a suspender o pagamento às famílias criadeiras por treze anos (1733- 1746), totalizando um conto, quinhentos e sessenta mil réis (1:560$000), como a utilizar parte desses recursos para o conserto da ponte do Varadouro, valorado como uma obra de utilidade pública e de interesse de todos os moradores.98

A segunda contenda foi o enfrentamento com os vereadores do Recife. Em carta de 1732, os oficiais da Câmara do Recife protestavam junto ao rei que nem a Câmara de Olinda cumprira a determinação real e nem o provedor da Fazenda

Real99 exigira da referida Câmara o cumprimento da ordem régia, ocasionando o

atraso no pagamento das despesas com os expostos. Nesse documento, os vereadores solicitavam ao rei D. João V uma ordem especial em que determinasse o repasse desses recursos para a Câmara do Recife.100

97

CARTA do ouvidor real ao rei [D.João], sobre o requerimento da Santa Casa de Misericórdia de Olinda. Olinda, 20 de março de 1746. AHU_ACL_CU_015, Cx. 61 D. 5203

98

CARTA do escrivão da Câmara de Olinda ao rei [D.João], sobre as receitas e despesas do Senado da Câmara. Olinda, 5 de maio de 1746. AHU_ACL_CU_015, Cx. 61 D. 5203

99

A partir de 1727, a Fazenda Real passou a controlar a arrecadação de impostos, retirando da Câmara de Olinda essa prerrogativa. Ver SILVA, Kalina Vanderlei P. da. O miserável soldo e a boa ordem da sociedade colonial, op. cit., p. 172.

100

CARTA dos oficiais da câmara de Recife ao rei [D.João V], sobre a doação dos rendimentos dos contratos que administrava a dita câmara para as despesas dos enjeitados e outras do real serviço. Recife, 23 de abril de 1732. AHU_ACL_015,cx. 43 D.3862.

A responsabilidade com a criação dos expostos gerou diferentes conflitos, jogando em lados opostos a elite comercial recifense e a nobreza da terra em Olinda, e esta contra os irmãos da Santa Casa de Misericórdia de Olinda. Não havia consenso em torno das práticas de acolhimento e cuidados com os expostos. Assistir aos expostos era uma questão de ordem pública ou particular? Representava um bem útil para toda a população ou circunscrevia apenas interesses menores? Por essas questões passavam as contendas políticas, as motivações econômicas e as razões religiosas.

Através de um dossiê aberto por um requerimento da Misericórdia de Olinda em que solicitava ao rei a consignação da verba de cento e vinte mil réis anuais para os expostos, até então destinada à Câmara de Olinda — e que havia sido direcionada para recuperação da ponte do Varadouro —, podemos perceber como as práticas de recolhimento dos expostos eram tidas como um problema circunscrito ao espaço urbano, de âmbito caritativo e inscrito no domínio do doméstico, portanto, dependente das ações e decisões particulares, das pessoas e famílias que acolhiam e criavam os enjeitados e não como responsabilidade da administração colonial.

O dossiê que trata do conflito entre a Santa Casa de Misericórdia e a Câmara de Olinda data de 1746, porém, as divergências tiveram início dois anos antes, quando a Misericórdia requisitara ao rei a consignação de cento e vinte mil réis anuais então destinada à Câmara olindense para a criação dos expostos. O provedor da Misericórdia argumentou em seu favor que nunca desamparara as crianças enjeitadas em “tenra idade”, crianças “cujas mães morre[ia]m ou adoece[ia]m” e delas não podiam cuidar. E que devido à “omissão” da Câmara todos acorriam para a Santa Casa, que dessa feita não podia rejeitar seus pleitos. Considerava ainda que era interesse da “República”, isto é, do bem comum, a “boa criação” e a “ocupação” dos expostos, para que não ficassem à mercê dos “males” e “danos espirituais que a ociosidade costuma causar”. Entretanto, não dispunha “de esmola certa aplicada por algum defunto” para essa caridade.

Para os irmãos da Santa Casa a criação dos expostos envolvia três dimensões: a religiosa, pois era um ato de caridade acolher e criar filhos alheios, além de providenciar-lhes o batismo; a pública, expressa no medo de que as crianças uma vez sem ocupação ingressassem no mundo da vadiagem; e a econômica, pois a instituição não tinha como arcar solitariamente com os gastos.

A Câmara de Olinda protestou peremptoriamente. Em defesa de seu direito à referida consignação, alegava que sempre provera os enjeitados da cidade e de todas as freguesias enquanto administrava os contratos que passaram para a alçada da Fazenda Real. Para os vereadores a Santa Casa e as alegações dos seus irmãos tinham “recaídos de ambição”, primeiro porque não se costumava expor enjeitados na Misericórdia e sim nas casas dos moradores, recebendo aquela apenas uma ou duas crianças, o que não justificaria o repasse; segundo, a Santa Casa tinha “copiosas rendas para os poder criar” — dízimos, legados e cento e dez mil réis mensais para tratar dos soldados (1:320$000 anuais) —, o que invalidava o argumento da falta de recursos; terceiro, o dinheiro só fora destinado à restauração da ponte do Varadouro com a anuência do almoxarife da Fazenda Real e autorização do governo da capitania; por último, lembravam que o Compromisso (estatuto) da Irmandade impunha o ônus de cuidar dos enjeitados como mandava a lei do Reino.101

Como podemos perceber, para os vereadores de Olinda a exposição de crianças não constituía um problema premente. Embora reafirmassem sua responsabilidade com a criação dos expostos, consideravam o conserto da ponte do Varadouro muito mais importante, a ponto de entenderem que ao desviar os parcos recursos para aquele fim estavam prestando serviço de maior relevância, pois esta era uma obra que “atendia a todos os moradores”, uma ação de caráter público, diferentemente, portanto, da assistência aos expostos. A última vez que a Câmara pagara às pessoas que criavam os expostos havia sido em 1733, ou seja, fazia treze anos que os vereadores não destinavam mais recursos para este fim.102

Essa contenda tinha que ser dirimida. A Coroa deveria se posicionar. Buscando maiores informações, solicitou documentos comprobatórios de ambas as partes, além do parecer do ouvidor geral sobre a questão: a quem caberia a referida consignação, à Santa Casa ou à Câmara municipal? Em resposta à Coroa, o parecer do ouvidor era frontalmente contrário aos interesses da Misericórdia de Olinda, além de não considerar a Câmara omissa em suas atribuições com os enjeitados. Primeiro, acusava a Misericórdia de não declarar as despesas anuais que tinha com as crianças expostas. Segundo, imputava à Irmandade que seu maior

101

CARTA dos oficiais da câmara de Olinda ao rei [D.João], sobre suspensão da distribuição em dinheiro para os expostos, a pretensão da Santa Casa da Misericórdia à dita quantia para distribuí- lo, e os motivos da oposição da câmara. Olinda, 2 de maio de 1746. AHU_ACL_CU_015, Cx. 63 D. 5389

102

CARTA do escrivão da câmara de Olinda ao rei [D.João], sobre as receitas e despesas da Câmara Municipal de Olinda. Olinda, 5 de maio de 1746. AHU_ACL_CU_015, Cx. 61 D. 5203

interesse era aumentar o “capital com rendas anuais”, e não “dispensá-lo[a]s em obras de misericórdia”. Terceiro, denunciava que a Misericórdia solicitava a verba apenas para os seus enjeitados e não para todos os enjeitados do termo de Olinda.103

Em relação à Câmara, não considerava sua omissão culpável, porque ela atendia a todos os enjeitados do termo de Olinda — de 12 a 20 léguas — e distribuía para “cada enjeitado 10 a 12 tostões”. Ao mesmo tempo, lembrava que fora o governador, Henrique Luís, quem mandara aplicar aquela reserva financeira em obras públicas e “de tudo dera ciência” à Coroa, que não enviara nenhuma resolução em contrário. O ouvidor concluía que a consignação deveria ser destinada às obras públicas, como vinha fazendo a Câmara, e não à Misericórdia. Assim, também na perspectiva do funcionário real a criação dos expostos não constituía um problema de ordem pública, e sim uma obra de caridade, que não exigia a atuação da administração portuguesa local. Sua posição era concordante com a elite olindense, ao considerar as obras das vias públicas mais importantes do que a assistência aos expostos.

As cartas, requerimentos, certidões e pareceres continuaram transitando durante todo o ano de 1746, entre Pernambuco e Portugal. A coroa não cedeu às pressões e pretensões da Santa Casa. A consignação continuou sob a alçada da Câmara municipal. Sabemos que em 1779 a Misericórdia mudou sua estratégia para conseguir recursos e solicitou permissão para instalar uma Roda dos Expostos em Olinda, o que sugere uma certa resistência real em conceder-lhe os recursos para criação dos enjeitados. Dessa forma, a implementação de uma nova estratégia para obtenção de numerário não se daria mais pelo enfrentamento com a Câmara municipal local.104

Concomitantemente, a Câmara do Recife, apesar de reivindicar o repasse da referida consignação a que tinha direito, também não foi contemplada, o que levou o governador da capitania a adotar novas medidas no último quartel do Dezoito. Por diferentes razões, os vereadores olindenses lutaram nas trincheiras do cotidiano por recursos e pela manutenção de sua posição de poder. A Coroa se posicionou

103

CARTA do ouvidor real ao rei [D.João], sobre o requerimento da Santa Casa de Misericórdia de Olinda. Olinda, 20 de março de 1746. AHU_ACL_CU_015, Cx. 61 D. 5203

104

CARTA da Mesa da Santa Casa de Misericórdia de Olinda à rainha [D.Maria I], pedindo recursos e a instalação da roda dos expostos na Santa Casa. Olinda, 29 de setembro de 1779. AHU_ACL_CU_015, Cx. 134 D.10081.

oficialmente ao lado de Olinda na contenda com a Misericórdia, mas quanto às pretensões da Câmara do Recife, tergiversou.

Percorrendo os caminhos do conflito, é possível perceber como os diferentes grupos entendiam o costume de expor crianças, em que dimensões a prática da exposição estava circunscrita, como era nomeada, e que cuidados deveriam ser dispensados aos expostos.

É bom frisar que em nenhum momento os administradores coloniais ou os oficiais das câmaras municipais nomearam a exposição de crianças como uma questão moral, “fruto do desregramento sexual” na Colônia ou da “imoralidade das relações” provenientes em parte das mancebias e concubinatos, como seria taxada depois pelos moralistas e religiosos. Nos seus discursos, diferentemente do discurso da Igreja, as crianças não aparecem como frutos proibidos ou frutos da falha, ou da fraqueza das mulheres, ou ainda das relações ilegítimas. Não se nomeava a prática da exposição de crianças, mesmo daquelas que ao serem abandonadas nas ruas eram devoradas por animais, como “bárbara”, ou que isso compunha sinais de barbárie que deveriam ser eliminados da civilização. Por fim, a exposição de crianças em Olinda e Recife não configurava um problema social para a administração colonial naquele momento, exigindo uma intervenção sistemática no acolhimento e cuidados com os bebês e na repressão das condutas sexuais geradoras de crianças indesejáveis.

Para compreender essas práticas — da exposição de bebês e do seu acolhimento — é preciso lançar um olhar sobre as distintas perspectivas das pessoas envolvidas na teia da exposição. Os atores silenciavam sobre o abandono, enquanto o acolhimento era visto como ação caritativa, portanto vinculada à dimensão do religioso e à esfera doméstica. Acolher e cuidar de crianças pressupunha antes uma decisão pessoal ou familiar do que apoio e incentivo da máquina pública. A Câmara considerava que a Misericórdia tinha obrigação de assistir aos expostos como determinava o Compromisso que havia assumido com a Coroa portuguesa. E a Santa Casa recusava a obrigatoriedade da assistência, pois as obras caritativas dependiam de recursos prévios e destinados para tal fim. Não se fazia caridade apenas com boa vontade e muita fé. Contudo, as duas perspectivas não poderiam ser desconsideradas: ao acolher as crianças expostas, salvando-as da morte, garantiam-se mais súditos para a Coroa numa terra que precisava ser colonizada e ocupada; e ao batizá-las, livravam-se suas almas do temido limbo.

A questão do sustento financeiro precedia às perspectivas futuras do acolhimento, então, a discussão em torno das práticas de assistência era tematizada na sua dimensão política e econômica. A luta que se abria entre as elites do Recife e de Olinda, de um lado, e a vereança de Olinda e a Santa Casa, do outro, se travava pelo controle dos recursos no campo da legalidade e da persuasão junto à Coroa em busca de apoio e alianças. O valor da consignação para os expostos era simbólico face ao enfrentamento de forças na conquista de posições de poder. A assistência aos expostos era uma questão menor na disputa política entre as facções de classe pela permanência do status quo no caso dos vereadores olindenses, e de luta pela autonomia, independência e gerenciamento dos contratos e impostos no caso dos comerciantes do Recife.

Concretamente, a prática de assistir aos expostos tinha como base discursiva a caridade, e foi realizada em três instâncias: a) pela caridade doméstica, com as famílias que decidiam acolher e criar bebês alheios depositados em suas portas; b)