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Para análise do corpus foi de grande valia os conceitos de Bakhtin e do discurso do outro, por possibilitar a apreensão das diversas vozes que circulam em nosso corpus.

O conceito bakhtiniano de vozes possibilitou a compreensão ativa do tempo histórico em que se desenvolveu a estória, já que Bakhtin utiliza o texto literário não só para compreender algumas questões teóricas, mas também para debater temas de sua época.

Fernando Namora recria vozes que participam dos acontecimentos passados e presentes da narrativa, fazendo um registro da cenografia por onde ecoam as vozes (hospital, dancing). O autor tece comentários sobre o “já dito”, dando um outro sentido para o dizer do outro, estabelecendo uma relação dialógica com a situaçaõ de produção do texto.

3.1. Os discursos dos outros, no discurso do narrador

3.1.1. A interação médico-paciente: diante de si mesmo e diante dos outros

Talvez o filme nos ensine a ser gente. Gente de verdade. Com os mesmos interesses e fraquezas dos outros. (ibid, p. 22)

Em diferentes situações de produção, circulação e recepção dos discursos do narrador, ora ele dialoga consigo mesmo, com suas rememorações e suas valorações sobre o mundo que o cerca, ora interage com interlocutores discursivos exteriores a ele mesmo, dos quais ele é o porta-voz e, ao mesmo tempo, o intérprete.

Logo no início do primeiro capítulo, descreve a si próprio sob a ótica de olhos alheios. O narrador internaliza, para o “eu”, o julgamento de valor do “outro”:

Nos outros não admitia, pois é o riso o que particularmente

me ofende nos medíocres. Poderiam, enfim, julgar-me um snobe ou um torturado. (ibid, p.11)

Ao iniciar o segundo capítulo, descreve Lúcia como “insignificante”, com “ar pasmo perpétuo”. No entanto, as interações do dia-a-dia transformam a avaliação que o narrador tem de Lúcia. O que julgava ser “devoção”, passa a ser “competência”.

O “eu” interage não só com os outros, mas também com o contexto sócio- cultural representado. O narrador relaciona a sua “enfatuada aridez”, com “células vorazes dos tumores” a lhe digerir o que tinha de espontâneo:

E, também eu reconhecia, sem que isso me redimisse, que a

minha enfatuada aridez era uma espécie de enxerto bastardo que, como as células vorazes dos tumores,

digeriria insidiosamente o que em mim havia de confiado e espontâneo.(ibid, p. 16)

Os “espaços sociais” interferem nas atitudes de Jorge, a quem o narrador dá voz, por meio do discurso indireto livre. Na avaliação dele, a “frieza”, “o sofrimento”, “a dor,” eram reflexos do ambiente hospitalar, mas este seria a sua última oportunidade de diálogo humano:

Que espécie de aridez? E pus-me a pensar que o hospital

era a minha única ou última oportunidade de diálogo humano. Que seria de mim sem essa oportunidade, embora

lhe resistisse (ibid, p. 50)

[...] cheguei ao hospital, pesando-me nos olhos todo o denso rescaldo da insónia e das emoções (ibid, p. 88)

Sempre dando voz a Jorge, por meio do discurso indireto livre, o narrador o descreve a tentar “espairecer”, caminhando pela rua:

A rua é uma boa coisa. Sobretudo vadiar por aí, sem destino. Isso acontecia muitas vezes. Nem sempre com

prazer, pois era freqüentemente aguilhão da angústia a impelir-me para a vadiagem(ibid, p. 38).

Em outras ocasiões, o médico dirige-se ao café do hospital ou ao dancing que fica na cidade. No entanto, a sua “insociabilidade” está presente:

E de novo, e de súbito, a memória me levou ao meu

No dancing, procura a mulher e, necessita desse “outro” para se encontrar. O diálogo, a voz de Clarisse se expressa em discurso direto, e o comentário do narrador dá voz a Jorge em discurso indireto livre:

- Veio procurar a doente ou a mulher?

[...] Ela não podia saber o quanto a sua pergunta me

perturbava e também não compreenderia o absurdo de qualquer das respostas.

- E entrou também por acaso, não é isso que vai dizer-me?

Mente! É um reles mentiroso. (ibid, p. 88)

A relação com os “outros” faz com que Jorge re-elabore certos conceitos. Aquele que não entendia de mulheres, passa a percebê-las.

- Gosto de flores, ainda não to disse. E gosto doidamente de flores lilases.

Eu, porém, já dera por isso(ibid, p.113).

[A relação Jorge / Clarisse será mais explorada no tópico 4.3, uma vez que a história gira em torno dela, a quem o narrador dá voz, em discurso indireto livre:

quem deveria ter escrito esta narrativa era Clarisse, porquanto é dela, e só dela, que iremos falar (o que direi

3.1.2 A recuperação, pelo narrador, da figura do médico Jorge e as transformações sofridas durante as interações

Nunca sentira, até aí, tão funda e maciça inutilidade. Clarisse tinha razão. Qual era o meu papel junto dela e dos outros? Com que argumento válido, leal e justo os encarcerávamos? Pois não era tão pouca a vida, a vida deles, e tão imensa, urgente e legítima a fome de a viver? Ia decidir, de vez, mudar de serviço. Nenhum espertalhão me seguraria mais ali. (ibid, p. 74)

Guiado pela voz do narrador, o romance escrito em primeira pessoa cria um efeito de aproximação entre o mundo ficcional construído e o leitor, de modo a evidenciar as marcas lingüísticas que denotam a interação e o dialogismo constitutivo de todo enunciado.

O tempo, na narrativa, é marcado por expressões como “Nesse tempo” (ibid, p.11), “foi nessa época” (ibid, p.18) ou “mais tarde” (ibid, p.30), que recuperam as lembranças de Jorge.

A imagem que o narrador dá de si é o de fio condutor do romance. Há um afastamento, mas sem muito distanciamento, entre o narrador e o protagonista Jorge, e as ações desse último são “julgadas” pelo primeiro. Temos a impressão de que o narrador se dissocia da personagem que é ele mesmo.

Por meio das próprias escolhas lexicais, dos qualificativos (“insociável”, “desalmado”, “nervoso”, “insuportável”) e do tempo verbal (pretéritos perfeito e imperfeito), temos, na obra, o encontro de Jorge com o “outro”.

A tensão entre esse “eu” subjetivo e o “outro” Jorge do mundo exterior é criada na obra, por meio das palavras representadas do “outro”, naquele mundo, e marcam a fusão entre narrador e protagonista. Ele se representa a si mesmo:

se traduzia nos modos como fazia crer às pessoas que a

presença delas me era insuportável (ibid, p. 11)

O narrador se apresenta como um “eu” “insociável”, que sofre transformações a partir das interações, de conflito ou de concordância, com vários outros “tus”, em diferentes ambientes sócio-culturais: com Clarisse, com Lúcia, com Guedes, com Romualdo, com Dona Eufrásia, com o hospital, com o café, com o dancing, com os passeios bucólicos, etc., como está discursivamente, mostrado na narrativa.

O narrador avalia a si mesmo, criando um jogo entre o presente e o passado, num efeito de proximidade e distanciamento. Ao fazer esta reflexão, ele assimila palavras, isto é, a reação e a voz dos “outros” (em discursos citados) e, ao re- elaborá-las, expressa um tom valorativo de censura a si mesmo, caracterizado no texto por palavras como “arrogância”, “aspereza”, “exibicionismo”. No caso da palavra “aspereza”, ele aplica ainda o qualificativo “gratuita”, criando uma intensificação de seu caráter negativo. “Exibicionismo” aparece como uma explicação das outras palavras destacadas e como sua conclusão ou arremate:

Penso ainda, muitas vezes, e apesar de tudo o que se

passou, no significado dessas minhas ondas de fastio,

arrogância e aspereza. Aspereza gratuita – que se poderia

resumir, com mais rigor, nesta palavra que hoje, após os

acontecimentos que me fizeram revelar muitas coisas dos outros e de mim próprio, deveria envergonhar-me: exibicionismo. (ibid, p. 12)

O narrador dá voz à Clarisse, às vezes em discurso indireto livre, outras, em discurso direto, como se vê a seguir.

Quem deveria ter escrito esta narrativa era Clarisse, porquanto é dela, e só dela, que iremos falar (o que direi de mim é, afinal, pretensioso e abusivo)

[...]

“Chamo-me Clarisse e vou morrer. Mas, entretanto,

conheci um tipo que era médico e resolvera os seus problemas de consciência escolhendo uma especialidade cujos clientes não tinham um migalho de esperança à sua frente.” (ibid, p. 14)

No entanto, ao mesmo tempo, ele questiona as palavras que põe na boca de Clarisse:

Um começo bonito, embora suspeite que Clarisse nunca o

teria preferido. (ibid, p. 14)

“um começo bonito” é a avaliação do narrador, enquanto “embora suspeite que Clarisse nunca o teria preferido” é avaliação que ele faz a partir do que acha que seria o ponto de vista de Clarisse.

Esse efeito discursivo-narrativo é produzido com a alternância e a mistura dos sujeitos do discurso. Ao estabelecer uma relação dialógica entre essas vozes, são levadas em conta as suas atitudes responsivas, e, no trecho que tomamos como exemplo, é como se o narrador estivesse diante de um espelho, e visse o “outro”, Clarisse, à qual dá voz em discurso indireto livre, observando e censurando as atitudes:

um tipo que era médico e resolvera os seus problemas de consciência escolhendo uma especialidade cujos clientes não tinham um migalho de esperança à sua frente (ibid, p. 14).

No entanto, em função da interação com Clarisse, Jorge vai começando a mudar, transformado pelo olhar avaliativo dela (“com irritada decepção”), em um médico mais humano, mais preocupado com os dramas que o rodeavam

Suspeitei algumas vezes que ela me reconhecia, com

irritada decepção, que talvez a minha dureza fosse um disfarce, que por debaixo desta crosta enfatuada sangrava a minha tímida adesão aos dramas que me rodeavam..(

ibid, p. -32)

O narrador se coloca em primeira pessoa, marcando sintaticamente sua voz e sua subjetividade ao enunciar o verbo “suspeitei” e o pronome pessoal “me”. Ao dialogar com seus “outros”, há uma relação conflitante que leva a uma re- significação do sujeito, dado que sua constituição vem do encontro entre pelo menos dois “eus”, o do narrador e o do médico:

Escrevo estas recordações com um mal-estar que não tenho capacidade para definir. [...] seria bem melhor, nem

que fosse por pudor, guardá-las para mim. (ibid, p. 55)

A situação do narrador envolve um dilema pessoal e humano mais amplo. Gradativamente, ele vai reconstruindo o tom de sua relação com Clarisse. As escolhas e combinações lexicais, cuidadosas, mostram o seu descontrole emocional (“nervos descomandados”, “rudeza”), em tensão com a sua nova sensibilidade, mais terna, cautelosa e afável:

Embora trouxesse os nervos inteiramente

descomandados o que sempre me fazia mais taciturno e rude nos dias que se seguiram procurei ser, para Clarisse, de uma terna, embora cautelosa, afabilidade”. (ibid, p. 55)

A delicadeza de um momento de impotência, cansaço e inutilidade do médico caracteriza o seu limite de tolerância (“fadiga pesada e definitiva”, “inutilidade funda e maciça”) :

Quando entrei no gabinete, uma fadiga pesada e definitiva inchava-me os braços. De um modo entediado, apoiei-os na secretária. Nunca sentira, até aí, tão funda e maciça

inutilidade(ibid, p. 71)

e sua decisão de mudar de serviço, pois sua missão perdera o significado que tinha:

Na manhã seguinte, a cama de Clarisse, na enfermaria, tinha mudado de dono. Ela cumprira o que me havia anunciado.

Toda a enfermaria, de súbito, me pareceu deserta e a minha missão, ali, sem objectivo. (ibid, p.74)

Todas as reações de desânimo de Jorge ocorrem em função de Clarisse ter deixado o hospital.

Em discurso indireto livre, o narrador dá voz a Jorge, que estabelece um diálogo com o tempo (“um dia e outro dia”, “semanas longas e pesadas”) que passa e lhe incide na indisposição, embora haja outro motivo para o fastio de seus dias, como a umidade (“chuvinha” lá fora, e “charco de fastio”, dentro dele). Termos técnicos da Medicina (“neura”, “medularmente”, “ossos”) são usados, na descrição desse mal-estar:

Um dia e outro dia. Semanas longas e pesadas como neura numa tarde de domingo. A chuvinha, silenciosa e furtiva, não tinha parança. Era, nas ruas, um espelho

trêmulo e, cá dentro, um charco de fastio onde os ossos se atolavam. O tempo incidia medularmente na minha

disposição. Apenas o tempo? (ibid, p. 75)

O narrador se fecha dentro dele mesmo e, na sua memória, dá voz ao discurso do “outro” por meio da citação, em discurso direto, da frase de um livro, que lhe reflete o estado de espírito.

Lembrara-me nesses dias, estranhadamente, de uma frase que lera havia muito: “Fechei a alma num porão” Em que livro? Era uma frase vazia, perdida, uma folha à procura da árvore donde se despegou, mas respondia-me a um estado

de espírito igualmente solto das suas raízes. (ibid p. 75) O narrador mostra que Jorge compreende que não pode estar só; e isso é marcado sintaticamente pela mudança da primeira pessoa do singular para a primeira pessoa do plural. O narrador já não diz “eu”, assume o “nós”, com a incorporação do “outro”, ao seu discurso. Clarisse faz parte de sua vida, mas ambos pressentem que se encontram às vésperas da separação.

E assim foram continuando as nossas deambulações, sempre vividas nesta atmosfera de transitoriedade, penosa de explicar, de quem sabe que se encontra na véspera de

uma separação. (ibid, p. 149)

Ao constatar a iminente morte de Clarisse, o narrador volta a dar voz a Jorge, em discurso indireto livre, não mais um “nós” (Jorge e Clarisse), mas de novo um “eu” (“Chego” ao fim) transformado (“talvez eu já não seja o mesmo”, “o meu reencontro”)

Chego ao fim. Com a sensação de ter atravessado um

corredor onde o ar fosse irrespirável. Abro os músculos do peito, dilato-me, preparo-me para alcançar uma atmosfera desafogada. Mas, ao abrir os brônquios, doem-me as feridas. Talvez eu já não seja o mesmo e tenha sido

necessária esta experiência, e também as cicatrizes que a avivam, para que ao atingir a claridade, o meu reencontro com os mortos e os vivos seja mais límpido e

3.1.3. A Interação Jorge/Clarisse

“Vive, Clarisse, por mim e por ti, dá-me a certeza de que existes! (ibid, p. 132)

Relacionado ao tema do romance, a interação médico-paciente está expressa por meio do discurso direto nos diálogos entre Jorge e Clarisse.

As vozes de Clarisse (paciente) e Jorge (médico) são marcadas sintaticamente pelo travessão (e pelo ponto de interrogação), buscando, com esse recurso convencional, conferir verossimilhança ao procedimento médico:

- Dói-lhe aqui?

– Nunca me doeu coisa alguma . - Trouxe comigo algumas análises [...]

- Que sente? E desde quando? - Já o disse há pouco.

[...]

– O seu nome?

- Clarisse (ibid, p. 27-28)

O narrador avalia a reação de Clarisse, analisando a situação como um todo, um “não-dito” (“rosto tenso”) e, por meio do discurso indireto livre, comenta que ela não lhe dava o direito de desvalorizar suas queixas: há a junção da palavra do "outro“ no discurso do narrador. Isso faz com que ele polemize com a sua atitude, numa curiosa inversão: a paciente minimiza o que sofre, mas espera do médico outra atitude. E ele se mostra afetado pelo modo como ela agiu. Há um confronto entre representações das expectativas sobre o comportamento do médico diante da doente.

A doente reagiu. Percebi-lho logo no rosto tenso. Se lhe era lícito desvalorizar as suas queixas, parecia-lhe, porém,

que eu não tinha igual direito. (ibid, p. 28).

O Jorge narrador busca, a todo momento, justificar o seu agir, na situação de dilema em que se encontra, e os momentos de interação com Clarisse caracterizam a preocupação com este “outro” específico. Há uma re-significação no “agora” da narrativa, do nome Clarisse, que, matizada de emoção adquire, para Jorge, um novo sentido. A vivência anterior com o nome (momento narrado do romance) é praticamente apagada pela vivência atual (momento da narração), indicando que o homem que existe no médico foi afetado pela paciente:

Clarisse. Um nome por coincidência misturado com certas leituras ignóbeis da minha adolescência. Mas esse outro

nome eu estaria agora a escrevê-lo com emoção (ibid, p.

28).

A constituição de Jorge se realiza durante o processo da interação com Clarisse, em toda a história, em que ele estabelece uma relação dialética na avaliação de si mesmo e do “outro”. Ele tece o texto demonstrando o desconforto diante de seu próprio agir profissional: sua atitude perante a paciente é ambivalente:

Aprendi toda essa história violentando-lhe os monossílabos.

Esteve a fitar-me algum tempo em silêncio e tive a

impressão, aliás repetida com a maioria dos doentes, de

que ela experimentava uma secreta e jubilosa surpresa em verificar o pouco, que, afinal, tinha para me dizer . Um dos meus assistentes ia preenchendo a ficha e tomando notas sobre o interrogatório. Ela, desconfiada, franzia as sobrancelhas, dando muito mais importância a esse misterioso relatório, que não poderia vigiar, do que aos

trejeitos que eu repetia com a boca, fazendo rodar o cigarro, quase mastigado, com a ponta da língua, enquanto

lhe explorava demoradamente certas regiões do corpo (ibid, p. 27)

O narrador avalia a realidade constrangida de Clarisse (dando-lhe voz em discurso indireto livre), mas ao mesmo tempo, mostra-lhe a superioridade de quem tem o saber médico e o poder de decidir o tratamento.

Aquela era a boa altura de a domar até ao último estertor de gatinha caprichosa - e não a desperdicei. Via-a

esgadanhar-se lá por dentro, antes de ceder, anuindo numa voz constrangida (ibid, p. 29)

Essa reação caracteriza-se no acento dado neste contexto à palavra “domar”, na voz de Jorge, complementando-se com “e não a desperdicei”. Os termos “gatinha caprichosa”, ”esgadanhar-se”, e “constrangida” caracterizam a fragilidade de um doente à mercê de um capricho do profissional.

Há um continuum na narrativa, e ao mesmo tempo uma certa duplicidade. Ao avaliar a si e aos outros Jorge se redime “talvez eu me tivesse excedido”, embora seguisse sua estratégia padrão, usada para doentes volúveis como Clarisse, que desdenha sua própria condição e desafia a autoridade do médico.

Clarisse baixou os olhos, humilhada.

Talvez eu me tivesse excedido, embora fosse meu hábito produzir desde logo esse choque psicológico em todos os doentes que me pareciam volúveis, capazes de trair o nosso esforço. (ibid, p. 29)

Clarisse interpela Jorge (discurso direto):

- O senhor como se chama? (ibid, p. 29)

e o assistente dele, indignado, apressa-se a manter a distância médico-doente (discurso direto) e a autoridade do profissional:

- Dr. Jorge. Deve chamar-lhe Sr. Dr. Jorge. (ibid, p. 29)

Nesse momento, Jorge se lembra de quando perguntou a Clarisse a mesma coisa, logo no início da primeira consulta:

- o seu nome? (ibid, p. 28)

Assim, quando Clarisse se mostra “rebelde”, ele se mostra distante, e mesmo profissionalmente autoritário, mas quando Clarisse se mostra distante, ao tratá-lo por “senhor” (médico), ele se sente desafiado, desrespeitado.

Percebemos pelas marcas discursivas usadas pelo narrador, que a doença de Clarisse está no início e que se prevê uma continuidade de sua evolução: “arrastar- se”, “primeiros tempos”. A locução adverbial “uma vez por outra”, combinada com a recomendação “procure”, e o substantivo “consulta”, estabelecem a idéia de continuidade no tratamento:

- A doença pode arrastar-se. E não creio que isto seja ambiente para si. Aliás, durante estes primeiros tempos, nada a impede de continuar a sua vida lá fora. Basta que,

uma vez por outra, nos procure na consulta. (ibid, p. 30) Assim como Jorge questiona as conseqüências (“um deslize”) que o enunciado “durante os primeiros tempos”, poderia ter desencadeado na sua relação com Clarisse

Aquele “durante os primeiros tempos” fora, porém, um

deslize. Felizmente, ela nem se lembrou de desdobrar as

palavras, como outras o fariam, sempre alertadas pelo pressentimento de um perigo oculto; estava sobretudo

interessada neste duelo, para ela excitante, entre nós ambos. (ibid, p. 30),

ele também justifica continuamente o seu agir, recorrendo a Lúcia, assistente com quem interage no dia a dia do hospital. Polemiza no ponto de vista dela, funde em seu discurso as impressões dela, por meio do discurso indireto (Lúcia diria que)

Se Lúcia nos tivesse ouvido, sempre dada a interpretar

romântica e generosamente as minhas reacções, diria, por

certo, que eu concedia à doente a última oportunidade de respirar a vida. (ibid, p.30).

Jorge se auto-analisa mediante o recurso de confronto entre as avaliações do “outro” e de si próprio: interpreta que, do ponto de vista “romântico e generoso” da personagem Lúcia, em oposição às “reações” dele, “ele concedia à doente a última oportunidade de respirar”

Ao mesmo tempo, em “Era aquela a sua maneira de, contrariando-me, exibir uma personalidade” (ibid, p. 31), há um “duelo” em que Jorge e Clarisse se aproximam inconscientemente um do outro, do ponto de vista de Jorge. A reação de enfrentamento da parte dela, passa a ser, para ele, uma forma de aproximação. A rebeldia incomoda o médico, mas atrai o homem.

Jorge se desaponta com relação ao agir esperado de Clarisse: além de adiar sua saída do hospital (o que é dito pela voz da enfermeira, em discurso indireto livre), ela contraria a indicação de alta, prescrita pelo profissional, desafiando-o. Essa atitude não é comum no contexto de um hospital, no qual o médico é o detentor do saber, e pensa poder dispor dos outros:

Mais tarde, sempre por intermédio da enfermeira, soube

que a rapariga decidira ficar no hospital. Pelo contrário: o ensejo de me fazer sentir que adiara, antes, para melhor

momento, não era assim tão fácil dispor dos outros: (ibid, p. 30)

O sentido de “perturbação” instaurado na relação de Clarisse e Jorge reforça- se à medida que o narrador constrói discursivamente algumas cenas da enfermaria:

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