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Capítulo 1: Perspectivas teórico-metodológicas desta pesquisa

2.1.1 O autor

2.1.3.1 A subdivisão do corpus em três partes

O romance Domingo à tarde está dividido em três partes, assim optamos por manter essa divisão, na síntese que apresentamos.

a) Primeira parte

A engrenagem de todos os dias (“Oh, às vezes sufoco!” – gania de tempos a tempos a gorducha monitora da clínica. – “Sair daqui por uns meses, nem que fosse para o sertão! E o que me enfurece é saber que as outras pessoas julgam que esta vida é emocionante!”) (NAMORA, 1971, p. 43)

O narrador no decorrer da narrativa expõe suas impressões sobre a prática médica desenvolvida em Lisboa, rememorando o passado e dando significado, por meio de suas interações, às sua lembranças.

Refere-se à falta de tempo que os médicos tinham para si e para a sua família. Lembra-se de Lúcia, médica e sua assistente:

Eu passava muitas horas no hospital, para lá de todos os horários. Até certo ponto, já que não tinha família na cidade, era ali o que Lúcia chamava o meu “santuário” (ibid, 20).

12Sempre que, a partir deste ponto do trabalho, a citação contiver apenas a indicação de referência bibliográfica “(ibid, p.)”, isso significa que estamos nos referindo ao romance que nos serviu de corpus: NAMORA, F. Domingo à tarde. Lisboa: Publicações Europa América. 1971, 183 p.

Descreve a solidão dos médicos, e a importância do “outro” nesses momentos. Em Domingos á tarde, Lúcia, representava o “outro”. Ela estava sempre presente, solidária:

Por vezes, quando a noite nos encontrava ainda no hospital – as noites do hospital oprimiam, esvaziavam-nos até que viesse aquele silêncio de pedra, livoroso e gelado, dos prenúncios da madrugada -, Lúcia estendia uma frase ou os seus dedos ternos para a minha solidão. (ibid, p. 19).

O narrador,reproduz o diálogo que teve com Clarisse, uma de suas pacientes. Ele descreve o clima sombrio, no hospital, devido à constante presença da morte e da dor. E é por meio desse processo de interação, que o narrador se posiciona em relação ao outro e a si próprio:

- Repare, Clarisse: nenhum de nós (nem eu, com a tal segurança que a ofende...) põe na morte a sua assinatura. A morte é-nos tão fortuita e ilógica (ilógica para cada um que se interroga) como muitos acontecimentos da nossa vida. (ibid, p. 58)

Jorge lembra-se de uma conversa descontraída com o médicos, no café do hospital. Romualdo, médico seguro, perguntara-lhe, se já havia reparado como os pacientes iniciam o relato de suas queixas. Naquele momento Jorge não o escutara, no entanto, ao interagir com Clarisse, as palavras de Romualdo passam a ter outro significado para Jorge. Ele experimenta a sensação de impotência diante das diversas reações apresentadas pelos doentes, ao perceberem o inevitável desfecho: o “rebanho à espera da matança”:

Todas as vezes que me lembro disto dá-me a sensação de que ele não chegou a levantar-se mais dali. Que morreu ali, depois de todos nós, a família e eu principalmente, que era médico, termos deixado que a doença o apagasse sem que

ninguém se dar ao incómodo de a estorvar. Só meu pai poderia morrer desse modo. (ibid, p. 64)

Como resultado dessas interações, Jorge observa a dureza do olhar dos parentes e dos outros pacientes, frente a mais uma perda. Ele avalia a dor, que os “outros” sentem diante do inevitável, a morte.

Soube então que a doente tinha morrido. Senti-me, de repente, sem forças para qualquer actividade. Andei de um lado para o outro. Na sala de espera um rosto vagamente conhecido; pertencia, sem dúvida, à família da morta. A mulher recostou-se, fitando-me com os olhos vazios e esbranquiçados. Mas reparei-lhe sobretudo na boca: dava- me a idéia de que esquecera o modo como é feito um sorriso. A linha dura que a desenhava parecia decisiva, uma lasca de pedra. (ibid, p. 51)

Jorge precisava quebrar a frieza daquele momento. Ele não queria conviver com a dor e a tristeza, sempre presentes naquele ambiente hospitalar. Buscava, então, refúgio fora do hospital. Algumas vezes, dirigia-se para os cafés da cidade, outras, caminhava pelas ruas:

A rua é uma boa coisa. Sobretudo vadiar por aí, sem destino. Isso acontecia-me muitas vezes. Nem sempre com prazer, pois era freqüentemente o aguilhão da angústia a impelir-me para a vadiagem. (ibid, p. 37)

Assim, o texto nos remete aos diferentes enfrentamentos da doença, pois percebemos, pela voz do narrador, que os pacientes experimentavam reações diversas:

a poetisa, posto o rumor da sua gloriosa adversidade a circular, vestira , convictamente, o papel de desditosa, propondo ao marido que se fosse adaptando à sua iminente situação de viúvo, quartos separados e, logo depois, vidas à parte. Passava os dias num café, a beber, a consumir-se por dentro e a escrever poemas. (ibid, p. 48)

• outros amavam intensamente:

A velhota ricaça que eu internara numa clínica. No último Natal oferecera centenas de presentes. Escrevia montes de cartas, todos os dias, mesmo a desconhecidos. O importante era que viessem agradecer-lhe, Vê-la, que, durante alguns minutos, ao pensarem nela, a fizessem viva. (ibid, p. 46)

• e outros procuravam se informar sobre as novas técnicas descobertas pela ciência em prol da cura do seu mal:

Quando esses doentes voltavam – e voltavam sempre -, tinham lido livros, consultado outros médicos, e discutiam já as notícias sobre as novas e milagrosas drogas para o seu caso. (ibid, p.46)

Uma polêmica se constrói sobre uma das tais técnicas, a alcachofra H-5, e o narrador se refere a uns “tipos” que trabalhavam esse novo método de destruição de células malignas. O misticismo e a má-fé dos aproveitadores, segundo o narrador, não pára nisso: aparece um biólogo, em Lisboa, um “iluminado de Andorra”, trazendo um novo composto químico. Ironicamente, aquele que nos é apresentado como “interesseiro”, o Guedes, participa de todos os simpósios e conferências ministradas pelo biólogo, e ao buscar o sucesso à custa das crendices dos doentes, que vêem nesse tratamento esperança para uma cura impossível, revela-se como um profissional competitivo e sem ética.

Nessa tônica, percebemos também, o movimento entre Jorge e Clarisse, que procuram estar sempre à escuta um do outro, mas ainda incertos daquilo que um e outro desejam. Clarisse deixa o hospital e termina, assim, a primeira parte do romance.

b) Segunda parte

- Veio procurar a doente ou a mulher?(ibid, p. 88)

O narrador, estrategicamente, descreve como foram longas e chuvosas as semanas que se passaram após a saída de Clarisse do hospital. Sentia-se perturbado ao ouvir o nome de Clarisse. Resolve procurá-la em um dancing existente na cidade. A partir desse acontecimento, começa a transformação pessoal de Jorge:

Na manhã seguinte, a cama de Clarisse, na enfermaria, tinha mudado de dono. Ela cumprira o que me havia anunciado. Toda a enfermaria, de súbito me pareceu deserta e a minha missão, ali, sem objetivo. (ibid, p. 74)

que se concretiza no encontro de ambos em um dancing na cidade:

Olhei para trás, vi-a ainda à entrada do dancing. As dobras transparentes do vestido ondulavam como asas de seda à aragem que viera estremecer a noite pasmada. Pareceu-me irreal. Como irreais, de uma irrealidade louca e dolorosa, foram as horas que se seguiram. (ibid, 88)

Jorge começa a se perceber, por meio do olhar de Clarisse - “mulher”, um homem apaixonado, mais que apenas um médico interessado numa “doente”.

Clarisse quer apenas “um pouco de amor” (ibid, p. 95), isto é, quer ser tratada como mulher; necessita de um pouco de amor, não quer ser mais um simples “caso“ do hospital, quer ser apenas uma mulher:

Não quero ouvi-lo falar mais naquilo que vocês gulosamente chamam o meu “caso”. O hospital está cheio de ”casos”. (ibid, p. 97)

Quando Jorge e Clarisse passam a viver juntos, num apartamento alugado numa das zonas mais recolhidas da cidade, percebemos que tanto um como outra estão confusos, sentem medo do dia seguinte e da solidão. Eles aproveitam todos os momentos , passeiam, conhecem pessoas, cantam, dançam, vivem num frenesi estonteante. Esses momentos, às vezes, são quebrados, pela insegurança de Clarisse a respeito dos sentimentos de Jorge:

Tu, ele, todos. – Fez seguir essas palavras de um longo momento de expectativa. – E eu, afinal, só queria saber se achas que viverei o bastante para... para que possas sentir alguma coisa por mim? (ibid, p. 112)

Percebemos a perturbação de Jorge: ora ele é o homem que vive e ama, ora é o profissional que conhece a evolução e as conseqüências da doença:

- Está bem, Clarisse, mas preferia que os aproveitasses para repousar.

- Oh, este homem! Contigo, a gente nunca sabe de que lado vai chover. Pois vou prevenir-te: Não farei repouso. Não farei coisa nenhuma, ou antes: farei o possível para que estes dias tenham um significado. (ibid, p. 153)

Jorge não só está perturbado pelo envolvimento com Clarisse, mas porque sua vida está desarrumada. Falta-lhe serenidade para o trabalho. O narrador conta que, nem por isso, as tarefas no hospital deixaram de ser executadas com eficiência,

pois Lúcia, sua assistente, o substituía gradualmente. Lúcia o censura pelo desatino, pois seu relacionamento com Clarisse refletia negativamente em sua vida profissional.

Censurava-me o desatino, sim, mas na medida em que se reflectia no meu desleixo profissional. (ibid, p. 136)

Apreendemos essa tensão nos discursos introspectivos de Jorge, como quando visita a casa em que viveu Clarisse, e se apercebe das diferenças sociais e de valores entre ele e ela:

- Pronto, aí tens. Isto é um baldio. – Teve um riso oco com a agudeza terrível de uma guinada. – Bem te preveni que a Clarisse viveu dias em que apetece deixar as ervas cresceram à nossa volta, como nos baldios. Percebes o que quero dizer? [...] – Assim está mais certo. Fico mais pequenina junto de ti. Do meu verdadeiro tamanho. (ibid, p. 147)

O narrador termina a segunda parte com a compreensão de que a visita resultara “benéfica para ambos” (ibid, p. 148).

c) Terceira parte

Mandei-lhe, ao hotel, o primeiro ramo de flores que, até aí, oferecera a uma mulher. (ibid, p. 176)

Na terceira parte, ao se espelhar no “outro”, Jorge se questiona, se auto- avalia, e se angustia. Jorge conscientiza-se que a vida não se resumia apenas ao hospital. Ele necessitava passear, amar e viver como qualquer outra pessoa.

Nesse capítulo descobre as razões pelas quais lutava. Percebe que para se sentir vivo é preciso amar. E é esse amor, que o fez mudar.

A minha reacção era tão intensa e caótica que poderia supor- se que só naquele momento a verdade me fora revelada. Achei-me algemado dentro daquele quarto avulso, repugnante como uma alcova de aluguer, que me separava de todas as armas que poderiam ainda estorvar o desfecho, adiando-o. Fechado num cárcere. Agora, porém, as coisas surgiam-me honestamente esclarecidas: eu não era apenas o médico compadecido, era um homem com uma luta malograda mas definida, sabedor das razões por que lutava.. (ibid, p.163)

Essa descoberta faz com que procure o Guedes, mesmo contrariando todos os seus princípios, pois Guedes era considerado um “fuinha”.

Aliás, repretia pra mim, o que estava em causa era a sorte de Clarisse e não os meus brios. (ibid, p. 171)

Nunca havia encaminhado um ramo de flores para uma mulher, mas ao descobrir a importância de Clarisse em sua vida, manda-lhe flores.

Mandei-lhe, ao hotel, o primeiro ramo de flores que, até aí, oferecera a uma mulher. (ibid, p. 176)

Começa a encontrar sentido na vida, convivendo com Clarisse, mas esse sentido parece se esvair quando ela morre. Jorge compreende que não se pode estar só.

Agora sei que o amor nos faz aproximar as coisas, habitá- las, que pelo amor as reconhecemos e que, depois de lhe recebermos a revelação, nada mais é preciso para nos sentirmos vivos (ibid, p. 18)

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