• Nenhum resultado encontrado

PARTE 2 O ESTATUTO DO DIREITO COMO OBJETO SEMIÓTICO E O

2.2 O discurso jurídico como expressão: gramática e narratividade

2.3.2 Análise da classe e coleta dos componentes: discurso jurídico, discurso do direito e

Como já referido, o que se chamou de discurso jurídico não é um objeto homogêneo, pois nele é possível distinguir dependências, níveis, dimensões. E é aqui que a distinção proposta por Correas entre discurso jurídico e discurso do direito ganha relevância, embora haja de colocá-la em outro patamar. Assim, em primeiro lugar, a fim de promover um ajustamento entre as terminologias até aqui empregadas – emprestadas de diversas propostas teóricas que abordam o direito como objeto da Semiótica – e de avançar o estudo, propõe-se a primeira análise desse objeto que se tem designado como discurso jurídico. Há de lembrar que por “análise” se compreende, na esteira de Hjelmslev, a operação que consiste em se passar da classe aos seus componentes, o que é compatível com um método dedutivo. Ademais, buscar- se-á, nestes desdobramentos do estudo, orientar-se pelo princípio do empirismo de Hjelmslev, segundo qual a descrição teórica de objetos postos a exame deve ser, neste encadeamento de prioridades, não contraditória, exaustiva e tão simples quanto possível. Da primeira operação de análise, exsurgem da classe dois componentes que podem ser aproximados do que Correas (1995, p. 114) referiu como “discurso do direito” e “discurso jurídico”. Sem arriscar ainda declarações sobre a estrutura interna de tais componentes, percebe-se, ainda com Correas, que ambos os componentes constituem semióticas e que um deles é uma metassemiótica que conota a segunda como integrante de seu plano do conteúdo. Assim, de modo a respeitar também a descrição de Greimas e Landowski seguida até aqui, propõe-se manter o termo “discurso jurídico” para a classe composta por essas duas semióticas. A um dos objetos emergentes da análise se pode designar, como fez Correas, discurso do direito, ou simplesmente direito; ao outro, por estabelecer-se como metassemiótica em relação ao primeiro, metadiscurso jurídico.

Já se aventurando na descrição dessas duas semióticas que surgem da análise do discurso jurídico, é mister esclarecer que a descrição realizada anteriormente sobre a estrutura narrativa do discurso jurídico corresponde precipuamente ao plano da expressão de uma dessas duas semióticas, mais especificamente, ao plano da expressão do discurso do direito. Assim, o plano da expressão do discurso do direito, designado por Landowski como “nível” profundo e caracterizado por apresentar marcas sintáticas, corresponde ao esquema actancial em que sujeitos realizam operações de disjunção e conjunção criadoras de efeitos jurídicos (atos jurídicos) e, devido a isso e nessa qualidade, subordinam-se ao seu império (trate-se do legislador, do magistrado, do administrador, do operador, do cidadão comum). Não obstante

sua estrutura sintático-narrativa particular, o discurso do direito possui também uma estrutura semântica que será necessário detalhar, pois a partir das formas de interação entre esses dois planos serão flagrados diversos gêneros discursivos, como o legislativo, o judicial, o administrativo, o quotidiano etc. Logo, o discurso o direito não é, a exemplo da classe a que pertence, um todo homogêneo, e seus diferentes gêneros apontam justamente para as variações em seus planos da expressão e do conteúdo. Avançar mais do que isso na análise, entretanto, exige considerarem-se as diferenças estruturais existentes entre as duas grandes tradições do pensamento jurídico ocidental: a tradição romano-germânica e a Common Law.

O metadiscurso jurídico, ao conotar o discurso do direito em seu plano do conteúdo, também apresentará sensíveis variações em relação a uma ou outra tradição, o que há de explorar-se à frente. Já se pode adiantar, contudo, que o metadiscurso jurídico não apresenta a mesma estruturação do discurso do direito, seja em um seja em outro de seus planos. Também não é um objeto homogêneo, pois apresenta gêneros decorrentes da variação nas formas de ineteração entre seus dois planos: esses gêneros são a Teoria do Direito e a Jurisprudência73. Ao se desconsiderar as diferentes teorias da fonte de direito que prevalecem na tradição romano-germânica e na da Common Law, pode-se equivocadamente equiparar a Jurisprudência, típica da primeira, e o Precedente, típico da segunda. Espera-se que a partir do instrumental analítico fornecido pela Semiótica se possa contribuir para corroborar a distinção entre eles, defendendo-se aqui que a Jurisprudência é gênero discurso pertencente ao metadiscurso jurídico, e o Precedente, componente da estrutura narrativa do discurso do direito em seu gênero judicial. Não obstante as lacunas a serem preenchidas, já se pode arriscar, a partir dessas operações de análise realizadas, um modelo geral do discurso jurídico, conforme consta da Figura 10.

Destarte, mesmo diante dessa nova clivagem, é possível dizer que o discurso jurídico é um discurso conotado em relação à língua natural. Isso é já observável em relação ao discurso do direito, porque ele se forma ao impor à língua natural, com seus planos da expressão e do conteúdo, uma nova organização por meio da projeção de uma nova forma ou valor, isto é, fazendo da língua natural, que é uma semiótica, a substância a partir da qual emergirão novas unidades de expressão e de conteúdo oposicionalmente dispostas em estruturas sintática e semântica próprias. Isso ficou bastante evidente ao se abordar o plano da expressão do direito e sua estrutura modal e sintático-narrativa conforme proposta de Landowski, pois o direito

73 Nessa mesma linha, Araújo (2005, p. 48) declara que “[...] a doutrina, em seu amplo espectro de produção científica, é uma metalinguagem descritiva. A jurisprudência é uma metalinguagem prescritiva, que encontra correspondência no âmbito das condutas, produzindo efeitos no interior da ordem jurídica.”

utiliza-se de apenas alguns arranjos actanciais possíveis na língua natural, além de formular atuantes próprios, inexistentes nela. Logo, a estrutura sintática da língua natural não simplesmente aproveitada pelo discurso do direito, mas reelaborada, motivo porque é apenas substância, e não uma semiótica tomada incólume como plano. Por isso, não se pode concordar com Warat (1984, p. 37) quando declara que o discurso do direito é formulado em linguagem natural, pois por mais que o discurso do direito e as normas que o compõem careçam da precisão e da eliminação de ambiguidades que seria desejável a uma linguagem científica, não se pode ignorar que o conjunto de normas jurídicas é formulado em um esforço, ainda que falho, de constituição de uma linguagem própria. Contudo, não se pode discordar dele quando afirma que:

Os positivistas lógicos silenciam completamente o fato de que a ideologia pode ser também considerada como uma dimensão pragmática da linguagem. A ideologia não só encontra-se presente no discurso natural, como também constituiu sistema de evocações contextuais sugeridas no uso pragmático do discurso cientifico. (WARAT, 1984, p. 46).

Não se encontra ainda, a esta altura da exposição, em condições de enfrentar essa discussão, exigente de se considerar as diversas dimensões do discurso jurídico, de modo que por ora importa estabelecer, de um ponto de vista semiótica, a relação entre discurso do direito e língua natural. Assim, parece ser mais preciso, conforme aqui se assevera, considerar que o discurso do direito conota a língua natural, tomando-a como substância sobre que será projetada uma forma e assim surgindo unidades (de expressão ou de conteúdo) dispostas oposicionalmente em planos (de expressão ou de conteúdo), conforme descrito na Figura 11.

Exemplo desse esforço do discurso do direito em diferenciar-se da língua natural a fim de constituir-se em um grau conotado em relação a ela surge ao se examinar as unidades de expressão e correlatas unidades de conteúdo das palavras “homicídio” e “assassinato”: na língua portuguesa, ambas as palavras são sinônimas (variantes), de modo que a unidade de conteúdo por elas veiculada, a de “conduta de um indivíduo que tira a vida de outrem”, é, na maioria dos contextos, a mesma, ou há pouco motivo para diferenciá-las, a não ser pela origem etimológica: “homicídio” tem origem latina e “assassinato” tem origem árabe. Todavia, apenas uma dessas unidades de expressão existentes na língua portuguesa é escolhida para integrar o plano da expressão do discurso do direito formulado a partir do português: no Código Penal Brasileiro, tem-se “Homicídio simples, Art. 121. Matar alguém: Pena - reclusão, de seis a vinte anos” (BRASIL, Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de

1940); no Código Penal Português, “Artigo 131º, Homicídio, Quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos.” (PORTUGAL, Lei n. 59, de 4 de Setembro de 2007). Assim como o plano da expressão da língua natural não é simplesmente transferido para o discurso do direito, mas reelaborado – tanto que uma unidade de expressão como “assassinato” não faz parte do vocabulário técnico-dogmático da legislação penal –, a unidade de conteúdo veiculada pela unidade de expressão “homicídio” não passa incólume ao plano do conteúdo do discurso do direito, pois que o conceito contido na expressão “homicídio” apresenta no discurso do direito uma especificidade inexistente na língua natural.

O metadiscurso que conota o discurso legislativo penal, a ciência do Direito Penal, identifica caracteres na unidade de conteúdo “homicídio” que o distinguem de outras unidades a que está disposto oposicionalmente, tal como objetividade jurídica (bem ou interesse penalmente tutelado), sujeito ativo (crime próprio ou comum), sujeito passivo (vítima genérica ou específica), tipo subjetivo (culpa stricto sensu ou dolo) e tipo objetivo (conduta). Essas categorias próprias da elaboração teórica do Direito Penal são, de um ponto de vista semântico, traços distintivos ou semas que emergem da análise componencial dos tipos penais ou sememas que formam o plano do conteúdo ou estrutura semântica do discurso legislativo penal. Tanto é assim que por meio dessas categorias ou semas é possível distinguir condutas tipificadas como “homicídio”, “infanticídio”, “latrocínio”, “roubo”, “furto”, “injúria”, “difamação”, “calúnia”, “corrupção ativa”, “corrupção passiva” etc. São também sememas que integram o plano do conteúdo do metadiscurso designado como Direito Penal, que conota o discurso legislativo penal, pois nesse nível são unidades de conceitos delimitados, definidos e oposicionalmente dispostos.