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Consideramos a violência como fenômeno histórico, multifacetado, socialmente construído, complexo, diverso, perpassado por inúmeras mediações tanto da objetividade

como da subjetividade humana. Uma mesma situação pode revelar-se, na experiência de um narrador, como algo violento, enquanto, para outro, a violência pode nem ao menos ser considerada.

Com o propósito de aprofundar o entendimento e obter uma aproximação do complexo processo que envolve esta análise, fizemos uma interlocução com alguns teóricos que se dedicam ou se dedicaram à pesquisa da violência, particularmente contra crianças e adolescentes, como objeto de estudos acadêmicos.

Como explicitado anteriormente, a violência está imbricada no processo de construção e hegemonia da sociabilidade capitalista, é, pois, inerente à sua estrutura. A violência foi principalmente teorizada pelo campo da psicologia, o qual priorizou a busca da relação entre crime e doença mental ou crime e religião; no campo da medicina, priorizou-se o estudo sobre os impactos da violência na saúde, o que gerou uma significativa contribuição para a construção de indicadores e propostas de ação. As pesquisas sobre esse tema no campo da saúde possibilitaram uma melhor especificação e distinção de violências dominantes para determinados grupos sociais e para a sociedade brasileira como um todo.

Minayo inicia os estudos sobre violência a partir da saúde. Entende que este é um lócus privilegiado para análises dos impactos do fenômeno na vida de indivíduos e grupos. Cita que:

A Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) em seu último documento sobre o tema [aponta que] : “a violência, pelo número de vítimas e a magnitude de sequelas orgânicas e emocionais que produz, adquiriu um caráter endêmico e se converteu num problema de saúde pública em vários países” (...) “O setor saúde constitui a encruzilhada para onde confluem todos os corolários da violência, pela pressão que exercem suas vítimas sobre os serviços de urgência, de atenção especializada, de reabilitação física, psicológica e de assistência social” (OPAS, 1993 apud MINAYO, 1994, p. 9)

Também a filosofia e a sociologia, inclusive com o apoio dos dados gerados pela saúde, vêm desenvolvendo estudos sobre violência,

uma visão interativa da origem sócio-histórica e subjetiva, o que, ao mesmo tempo, questiona a postura reducionista que privilegia a causalidade biológica pura e simples assim como a unicausalidade macro ou microssocial. (MINAYO, 2006, p. 24)

A autora relata que há um “duplo corte epistemológico: a multicausalidade e a dialética de causa-efeito” (MINAYO, 2006, p.24). Reafirma, de acordo com Chesnais e

Burke, que não é possível analisar o fenômeno da violência isolando-o da sociedade que o produz, uma vez que é alimentado por fatos políticos, econômicos e culturais, a partir de relações micro e macrossociais. E acrescenta:

No sentido material, o termo parece neutro, mas quem analisa os eventos violentos descobre que eles se referem a conflitos de autoridade, à luta pelo poder e à busca de domínio e aniquilamento do outro, e que suas manifestações são aprovadas ou desaprovadas, lícitas ou ilícitas, segundo normas sociais mantidas por aparatos legais da sociedade ou por usos e costumes naturalizados (MINAYO, 2006, p. 25).

Minayo apresenta uma importante colaboração ao debater com vários autores o entendimento da violência em seu texto “A Violência Dramatiza Causas”, que compõe a publicação “Violência sob o Olhar da Saúde” (2003), editada pela Fiocruz.

Nela observamos que houve o aumento da produção acadêmica acerca da violência sob a ótica da saúde principalmente na década de 90, mas analisa que houve uma produção desigual entre o aprofundamento teórico do fenômeno e a descrição dos problemas gerados pela violência e a apresentação de propostas de soluções.

Houve a priorização dos aspectos normativos de curto prazo em detrimento de uma maior teorização da realidade. Para a autora:

Os poucos textos da área de saúde pública que juntaram a compreensão e a teorização da realidade e problemas específicos de forma interdisciplinar foram claros em mostrar o imbricamento entre historicidade dos fenômenos, o contexto sociocultural e a subjetividade representada pelas particularidades biológicas e intrapsíquicas (MINAYO, 2003, p. 23)

A autora cita um importante estudo sobre violência elaborado por Domenach (1981) e publicada num caderno da UNESCO29. Domenach defende o caráter ontológico da violência ao definir que esta não pode ser entendida fora das relações humanas. Questiona que o comportamento dos animais e os fenômenos da natureza possam ser considerados violência, e define esta como:

uso da força aberta ou oculta, com o fim de obter de um indivíduo ou grupo, ao que não quer consentir livremente (...). O terrível e o fascinante da violência é que oferece a possibilidade de instituir, em benefício do mais forte, relações vantajosas, economizando trabalho e palavras. (DOMENACH, 1981 apud MINAYO, 2003, p. 36)

29

Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). La Violencia y Sus Causas. Paris, 1981.

Também para Domenach (1981), a violência não pode ser entendida fora da sociedade que a gera e fora da violência praticada pelo Estado. Segundo o autor, na sociedade moderna são o desenvolvimento das ideias de democracia e o surgimento das concepções de direitos humanos que levam o conceito de violência a uma percepção negativa.

Minayo traz esta análise para a realidade brasileira, relacionando que é no final da década de 1970 e início de 1980, quando se eleva o sentimento de cidadania e luta pela democracia, culminando com a abertura democrática do país, que há o grande crescimento dos movimentos em prol dos direitos das mulheres, crianças, negros e outros grupos discriminados (MINAYO, 2003).

Entre os autores trabalhados por Minayo (2003), destaca-se Denisov, filósofo russo cuja base de pensamento é a marxista-leninista. Em sua obra “Violência: Ideologia e Política”:

Reconhece que esse fenômeno precisa ser analisado dentro de uma abordagem multifacetária, pois apresenta características externas (quantitativas) e internas (qualitativas, coletivas e subjetivas). Analisa o tema dentro de aspectos que dizem respeito aos indivíduos, grupos, classes, instituições, que, em suas relações, empregam diferentes métodos e meios de coerção e aniquilamento direto ou indireto (econômico, jurídico, militar, social, psicológico) sobre seus semelhantes, com a finalidade de reter ou conquistar poder, posses e privilégios. (DENISOV, 1986 apud MINAYO, 2003, p. 29)

Outro autor citado por Minayo (2003) e que apresenta concepções coerentes com as defendidas nesta pesquisa é Agudelo. Este argumenta que a consciência sobre os direitos leva ao rechaço a todas as formas de violência, sendo esta entendida como processo que “representa um risco maior para a realização do processo vital humano: ameaça a vida, altera a saúde, produz enfermidade e provoca a morte como realidade ou como possibilidade próxima” (AGUDELO, 1990 apud MINAYO, 2003, p. 30).

Neste caso, a autora demarca sua oposição a Marx e Engels, que definem a violência como má ou boa, positiva ou negativa, de acordo com as forças históricas que a sustentam. Ao mesmo tempo concorda com as conclusões de Chesnais, que estudou 200 anos do que ele denomina de violência privada, suicidária e violência coletiva no Ocidente, e concluiu:

que muito mais fizeram pelo apaziguamento das populações a melhoria das condições de vida da classe operária, o acesso de todas as classes à educação formal e o respeito aos direitos e à democratização social, que a constituição de uma segurança pública para coibir os crimes e localizar a legitimidade da

violência nas mãos do estado. (CHESNAIS, 1981 apud MINAYO, 2003, p. 31)

Minayo apresenta um debate interessante ao apontar, de um lado, a oposição e o rechaço a qualquer tipo de violência como fruto da sociabilidade humana que se constitui com as concepções de democracia e direitos humanos e, por outro lado, a concepção, defendida por Marx e Engels de que, dependendo do contexto, a violência pode ser entendida como boa ou má.

Este debate de múltiplas ideias é parte da complexidade que envolve a categoria violência, uma vez que concordamos com o rechaço a qualquer forma de violência, mas entendemos que o contexto da sociabilidade capitalista possui bases inerentes de violência e que esta violência estrutural alimenta a cultura da submissão para a grande massa da população ao passo que também provoca revolta, reprodução, discordâncias e lutas contra os poderes hegemônicos e contra os grupos privilegiados pelas práticas e leis que se instituem nas relações sociais em determinada sociedade.

A oposição à violência nem sempre consegue ser orientada pela não violência. O processo de naturalização desta envolve agentes e vítimas que, em seus atos de oposição, podem também utilizar-se de métodos e técnicas violentas na tentativa de mudança da situação, ou mesmo no processo de reprodução da cultura de violência. Um exemplo clássico desta relação pode ser o conceito de legítima defesa, aceito por grande parte das leis contemporâneas como forma de se proteger contra a ação violenta de outrem.

O que Chesnais (MINAYO, 2003) aponta com tendo maior impacto na violência é a concretização da educação para todos, do respeito aos direitos e a democracia social, o que não pode ser alcançado por todos na sociabilidade capitalista. Mesmo os países que produziram tal acesso à maior parte de sua população, através das políticas do Welfare State, foram responsáveis pelo apoio político e econômico para a inibição desses acessos nos países tidos como de terceiro mundo, especialmente os da América Latina.

Isto nos retorna à concepção defendida por Ianni (2004), já exposta no item 1.1, de que a sociabilidade capitalista é, em essência, violenta. Nas suas conclusões, Minayo (2003) indica alguns consensos que também são compartilhados pelo entendimento de violência presente nesta pesquisa. São eles:

(1) É fato demonstrado pela realidade histórica que existem sociedades mais violentas que outras (...). Portanto, o acirramento da violência não é uma fatalidade. (2) É fruto de observação e pesquisas que as diferentes formas de violência se articulam criando uma expressão cultural naturalizada nas

relações e nos comportamentos, atitudes e práticas. (3) É sem consistência teórica qualquer proposta de visão positivista sobre a violência, devendo ela, portanto, ser sempre analisada como um fenômeno de expressão e parte constitutiva dos processos complexos. (4) É o caráter eminentemente humano da violência que organiza de forma complexa as condições sociais e as especificidades mentais e genéticas com que se manifesta. (5) (...) Considera-se que sempre existirão elementos gerais e especificidades nas formas de apresentação e de reprodução desse fenômeno. (6) É mais profícuo, para efeitos de análise, trabalhar com a proposta de que existem violências em lugar de violência. (7) É importante investir no conhecimento específico e empírico dos problemas, levando-se em conta tempo, espaço, grupos atingidos, gravidade e representação, primeiro para compreender e, em seguida, para agir. (MINAYO, 2003, p. 43)

A partir dos elementos até o momento expostos, podemos inferir, no que tange à totalidade deste debate, que a violência é um fenômeno presente na práxis social como construção ontológica, ou seja, do ser social.

Marilena Chauí (2006) desenvolve argumentos sobre a violência que têm servido de base para reflexões de muitos outros autores. A autora analisa a violência e a ética. A palavra violência é derivada do latim “vis”, que significa força. Para ela, violência é:

1) tudo o que age usando a força para ir contra a natureza de algum ser (é desnaturar); 2) todo ato de força contra a espontaneidade, a vontade e a liberdade de alguém (é coagir, constranger, torturar, brutalizar); 3) todo ato de violação da natureza de alguém ou de alguma coisa valorizada positivamente por uma sociedade (é violar); 4) todo ato de transgressão contra aquelas coisas e ações que alguém ou uma sociedade define como justas e como um direito; 5) consequentemente, a violência é uma ato de brutalidade, servícia e abuso físico e/ou psíquico contra alguém e caracteriza relações intersubjetivas e sociais definidas pela opressão, intimidação, pelo medo e pelo terror. (CHAUÍ, 2006, p. 342)

Os elementos apontados por Chauí têm ampla relevância nesta pesquisa devido ao fato de esta ter como premissa a possibilidade de escolha dos sujeitos sociais de agir ou não com violência. Não faz sentido questionar a violência contra crianças e adolescentes ou contra qualquer outro grupo social ou indivíduo se o ponto de partida é a fatalidade ou a inevitabilidade da violência no processo sócio-histórico da humanidade, bem como a inevitabilidade de suas expressões e intensidades.

Chauí contrapõe à violência o conceito de sujeito ético. A palavra ética define “ta éthiké”, uma parte da filosofia que se dedica às coisas referentes ao caráter e à conduta dos indivíduos e por isso volta-se para a análise dos próprios valores propostos por uma sociedade, e para a compreensão das condutas humanas individuais e coletivas, indagando sobre seu sentido, sua origem, seus fundamentos e finalidades.

A autora refere-se a

uma ética normativa: uma ética dos deveres e obrigações (ex. Ética de Kant), e uma ética não-normativa, que estuda as ações e as paixões em vista da felicidade, e que toma como critério as relações entre a razão e a vontade no exercício da liberdade como expressão da natureza singular do indivíduo ético que aspira felicidade. A ética, normativa ou não, necessita de um fundamento, o conjunto de valores, de noções que baliza a ação do sujeito ético. (CHAUÍ, 2006, p. 340)

Por sujeito ético, compreende o sujeito racional, livre e responsável que responde pelo que faz. “Assim a ação só será ética se for consciente, livre e responsável e só será virtuosa se for realizada em conformidade com o bom e o justo” (CHAUÍ, 2006, p. 341). Não resulta da obediência a uma ordem ou comando e sim da ação livre e autônoma. Por autonomia entende- se a capacidade de dar a si mesmo as regras e normas de sua ação.

Azevedo e Guerra (2001) analisam a significativa influência das experiências violentas durante a infância nas ações de criminalidade e delinquência durante a adolescência. Crianças e adolescentes que crescem sob a égide da violência possuem maiores possibilidades de naturalizar a cultura de violência, seja como agente de violência, seja envolvido em ciclos como vítima de violências, seja entendendo a violência como natural e comprometendo, algumas vezes de forma irreparável, a emancipação e a constituição do ser ético.

Este é um dos elementos trabalhados pelos autores consultados, o ciclo de violência. O ciclo como processos que atualizam a violência de forma recorrente na vida de uma pessoa, de uma família, de uma comunidade, cidade, etc. Muitos autores falam que, além dos ciclos que envolvem a criminalidade entre crianças e adolescentes, estão os ciclos de abusos sexuais, não raro, ciclos intergeracionais, nos quais avós, mães e filhas são vítimas de abusos sexuais. Em alguns casos, há inclusive agressores que abusam das três gerações – sexual, física e psicologicamente.

Nessa perspectiva, entendemos que, quanto mais cedo os indivíduos vivenciam situações de violência, sobretudo as violências no cotidiano, maior a probabilidade de participar da manutenção de ciclos de violência. Isto reforça a necessidade de dar visibilidade ao fenômeno da violência estrutural e da violência doméstica como aquelas de maior expressão e maior impacto sobre a vida de crianças e adolescentes.