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Quando pensamos a política de proteção social para crianças e adolescentes, a história nos leva a períodos anteriores aos debates sobre as políticas sociais, uma vez que crianças e adolescentes possuem condições peculiares que demandam incondicionalmente, para sua sobrevivência, estratégias de proteção e cuidado que devem ser realizadas por adultos.

Partimos assim para as análises dessa história tendo como ponto de início as contribuições de alguns pesquisadores.

Irene Rizzini (2011) é uma referência nos estudos relativos a crianças e adolescentes no Brasil. A autora possui uma vasta obra, na qual estabelece análises críticas acerca das principais questões a respeito do tema. O livro “A Arte de Governar Crianças”, escrito por ela e por Francisco Pilloti, permite compreender a história da atenção à criança desenvolvida no Brasil a partir de vários autores, entre eles Eva Faleiros e Vicente Faleiros.

Rizzini e Pilotti tratam da infância pobre e marginalizada, a maioria chamada de “menores” e que se distingue daqueles chamados de “crianças”. Ainda hoje é abundante o uso do termo “menor” nos meios de comunicação em geral quando se trata da infância pobre, e o uso do termo jovem, criança, adolescente, estudante, quando se trata da infância favorecida.

Apesar do inegável esforço de inúmeros personagens que dedicaram sua vida e trabalho à causa da infância, os autores (2011) afirmam que:

a história das políticas sociais, da legislação e da assistência (pública e privada), é, em síntese, a história das várias fórmulas empregadas, no sentido de manter as desigualdades sociais e a segregação das classes – pobres/servis e privilegiadas/dirigentes (...). Assim, o “problema da infância”, claramente diagnosticado há pelo menos 100 anos como um “problema gravíssimo”, e invariavelmente associado à pobreza, em momento algum foi enfrentado com uma proposta séria e politicamente viável de distribuição de renda, educação e saúde. (RIZZINI; PILOTTI, 2011, p. 16)

O que prevaleceu no Brasil, em toda a história da proteção de crianças e adolescentes, e que persiste até os dias atuais, são as práticas dirigidas ao controle desta população entendendo-a como perigosa, com priorização de propostas assistenciais compensatórias e ausência de políticas básicas efetivas, capazes de fomentar a equidade e o pleno desenvolvimento de cada criança ou adolescente, independentemente de sua origem.

Para compreender melhor esse processo, os autores apresentam um resumo das principais propostas de atenção à infância desenvolvidas no Brasil, avaliando que a criança e o adolescente, historicamente, têm ficado “nas mãos” de diferentes sujeitos como objeto de intervenção, de controle, exercido pelo Estado, pela Igreja, pela sociedade civil e/ou na relação público-privado.

Estas práticas ainda aparecem reatualizadas com novas roupagens e novos discursos legitimadores. A seguir, elaboramos um quadro síntese com os principais aspectos abordados por Rizzini (2011) na construção da histórica dos principais tipos de atendimento dirigidos à infância no Brasil desde o período colonial até os dias atuais.

As experiências se reforçam e complementam no campo da repressão e institucionalização, tendo os pobres como destinatários das ações desenvolvidas por meio de parcerias público-privadas e sem a efetivação de políticas de base como saúde, educação e preparação para o trabalho digno.

Ao longo de todo século XX, não havia significativas garantias legais de proteção. Mesmo com as transformações nas legislações anteriores ao Estatuto, permaneciam como paradigmas hegemônicos: a tutela e o controle; a assistência como prevenção da delinquência; a assistência aos abandonados; repressão aos “delinquentes”, etc. As políticas de base, como saúde, educação, moradia e trabalho, privilegiavam os detentores da carteira de trabalho e suas famílias, e os melhores serviços públicos, como algumas escolas, eram ocupados por meio de acessos clientelistas. Aos desvalidos, a assistência social era marcada pela filantropia, pelo “primeiro-damismo”, no bojo de parcerias, nem sempre éticas, entre o público e o privado, com serviços escassos, focalizados e com grande apelo eleitoreiro.

Boa parte dessas características sobreviveu ao Estatuto da Criança e do Adolescente e permanece ativa nas práticas cotidianas dos programas, projetos e serviços destinados a este público, afinados, apenas no campo do discurso, com a norma hoje vigente.

Outra forma de compreendermos a história da política de proteção social à infância no Brasil é através das análises realizadas por Perez e Passone (2010)43. Os autores apresentam uma cronologia das principais alterações institucionais ocorridas entre 1889 e 2006, bem como as principais características e diretrizes da política social de atendimento à criança e aos adolescentes contextualizando o início, o desenvolvimento e o que o autor chama de consolidação do Sistema de Proteção Social Brasileiro (p. 651).

O primeiro momento examinado é demasiado grande e envolve o surgimento da República Velha até o fim da ditadura militar, em 1985. É analisado em três fases, são elas: a República Velha (1889 até 1930); o autoritarismo populista (1930-1945); e a democracia populista (1945-1964). A seguir a reprodução de um quadro-síntese elaborado pelos autores.

Quadro 1 – Principais normatizações da proteção social de crianças e adolescentes no Brasil (1889-1964)

Períodos Principais normatizações e

legislações

Principais características

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José Roberto Rus Perez é professor Livre-docente da Faculdade de Educação da Unicamp. Coordenador Associado do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas NEPP; Eric Ferdinando Passone é Formado em Psicologia pela Universidade Metodista de Piracicaba (1997-2002); Mestre e Doutor em Educação pela Unicamp (2005- 2012). Atualmente é pesquisador bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e desenvolve pós-doutorado na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (2013-2015)

Primeiros passos: marcos legais e normatizações (1889-1930)

• Código Criminal do Império (1830) • Lei do Ventre Livre (1871)

• Código Penal da República (1890) • Código de Menores (1927)

• Infância como objeto de atenção e controle do Estado; • Estratégia médica-jurídica- assistencial. Autoritarismo Populista e o Serviço de Assistência ao Menor (1930-1945)

• Departamento Nacional da Criança (Decreto-Lei nº 2.024 de 1940) • Serviço de Assistência ao Menor (Decreto nº 3.799 de 1941)

• Estabelece a Legião Brasileira de Assistência (LBA)

• Avanço estatal no serviço social de atendimento infantil; • Organização da proteção à maternidade e à infância. Democracia populista (1945-1964)

• Serviço de Colocação Familiar (Lei nº 560 de 1949)

• Serviço Nacional de Merenda Escolar

(Decreto nº37.106 de 1955) • Instituto de Adoção

(Decreto-Lei nº 4.269 de 1957) • Leis das Diretrizes e Bases da Educação (Decreto-Lei nº 4.024 de 1961) • Manutenção do aparato legal; • Regulamentação dos serviços de adoção.

Fonte: Políticas sociais de atendimento às crianças e adolescentes no Brasil (PEREZ; PASSONE, 2010)

Apesar das várias alterações na estrutura do Estado brasileiro, a concepção hegemônica de infância permaneceu sobre os mesmos pilares instituídos com o código de menores de 1927. Em cena, a disputa de duas compreensões antagônicas acerca da relação entre o Estado e as crianças e adolescentes. De um lado, a visão que privilegia a educação e a assistência; de outro, a visão dos que defendem o controle da infância por meio de ações violentas, de punição e repressão. Esta última, herdada do período do Brasil Colônia e do Império.

Com as profundas transformações econômicas, políticas e culturais que marcaram o ocidente no século XIX, a noção de infância adquire novo sentido social, ou seja, a “criança deixa de ser objeto de interesse, preocupação e ação no âmbito privado da família e da igreja para tornar-se uma questão de cunho social, de competência administrativa do estado” (RIZZINI, 1997, p 24-25 apud PEREZ; PASSONE, 2010, p. 654).

Uma vez objetos da atenção do Estado, serão desenvolvidas estratégias para a intervenção pública na situação das crianças e adolescentes, sobretudo da infância pobre, filha da classe trabalhadora e que aparece como demandante de proteção, higienização, educação e assistência social, bem como alvo do sistema de segurança pública e justiça da época.

Instala-se uma cisão entre os legisladores e também entre a sociedade: “o menor como objeto do direito penal” e o “menor como sujeito de direito” (RIZZINI, 1997, p 24-25 in: PEREZ; PASSONE, p. 661, 2010).

No cenário internacional, no ano de 1948, foi realizado o 9º Congresso Panamericano da Criança, e em 1959 foi proclamada a Declaração Universal dos Direitos da Criança, configurando os primeiros aportes à mudança de paradigma, quando, através destes dispositivos, a ONU definiu a criança como sujeito de direito, considerada como pessoa em desenvolvimento, portadora de necessidades especiais e passíveis de proteção social e legal.

O segundo momento é o da Ditadura Militar (1964-1985). Paradoxalmente, foi em pleno regime militar que o Brasil assumiu formalmente os preceitos da Declaração Universal dos Direitos da Criança, em 1968, ainda que em 1979 o Estado brasileiro promulgasse o “novo” Código de Menores, mais repressivo que o primeiro.

No período da ditadura,

com a ausência total dos espaços de participação política, a autonomia da burocracia estatal se fortaleceu pela atuação da tecnocracia e dos militares dentro do aparato estatal, com o controle centralizado da gestão de programas e a implantação de mecanismos de financiamento articulados ao interesse empresarial-capitalista. Tais fatores possibilitaram a articulação de interesses particularistas no interior da máquina estatal e o aprofundamento do esquema populismo-clientelismo-patronagem. (PEREZ; PASSONE, 2010, p. 662)

Através das palavras de Rizzini, os autores concluem:

Os anos subsequentes foram acompanhados por uma série de denúncias sobre as injustiças cometidas no atendimento infanto-juvenil no país, desvelando “a distância existente entre crianças e menores no Brasil, mostrando que crianças pobres não tinham sequer o direito à infância. Estariam ela em situação irregular. (RIZZINI, 1995, p. 160 apud PEREZ; PASSONE, 2010, p. 663)

O quadro abaixo demonstra as mudanças decorrentes deste período:

Quadro 2 – Principais normatizações da proteção social de crianças e adolescentes no Brasil (1964-1985)

Períodos Principais normatizações e

legislações

Principais características

Ditadura militar e a Fundação Nacional do

• Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (Decreto n. 4.513 de 1964)

• Reordenamento institucional repressivo

Bem-Estar do Menor (1964-1985)

• Diminuição da idade penal para 16 anos (Lei n. 5.258 de 1967)

• Acordo entre o Fundo das Nações Unidas para Infância e o Governo dos Estados Unidos do Brasil (Decreto n. 62.125 de 1968)

• Código de Menores (Lei n. 6.697 de 1979) – “Doutrina da Situação Irregular do menor” • Instituição do Código de Menores de 1979; • Contradições entre a realidade vigente e as recomendações das convenções internacionais sobre o direito da infância.

Fonte: Políticas sociais de atendimento às crianças e adolescentes no Brasil (PEREZ; PASSONE, 2010)

A lógica da Funabem foi substituída pela Fundação Centro Brasileiro para Infância e Adolescência (CBIA) em 1990, tendo como um dos resultados a finalização do segundo momento e a chegada do momento de redemocratização brasileira – 1985 até os dias atuais –, cujo cenário possibilitou o retorno ao debate da Declaração dos Direitos da Criança (1959).

O terceiro momento trabalhado pelos autores foi impulsionado pelo debate da Convenção dos Direitos da Criança (1990). Com o fim da ditadura militar, consolidou-se a sociedade civil brasileira, esta criou movimentos e organizações em defesa das bases jurídicas e políticas para efetivação dos direitos políticos, civis e sociais. É neste ínterim que se estrutura a base da noção dos direitos de crianças e adolescentes que marcou a década de 90 no país e nos fundamenta até os dias atuais. A seguir, passamos a analisar este período.