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3.4 O lugar do Disque 100 no Sistema de Garantia de Direitos

3.4.1 O contexto de criação do Disque 100

Com a conquista constitucional e do Estatuto da Criança e do Adolescente, as ONGs e os movimentos sociais se fortaleceram na década de 90 e empreenderam articulações em nível nacional e internacional, formando redes de instituições com temas de interesse comum. Cabe aqui o destaque ao Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, a luta nacional contra o extermínio de crianças e adolescentes e a luta contra a violência sexual e maus tratos de crianças e adolescentes.

Maria Lúcia Leal64 (1998) discute a participação das organizações da sociedade civil e os elementos conceituais e políticos relevantes ao debate construído em nossa pesquisa. As ONGs formam e envolvem uma diversidade de instituições, pequenas e grandes, algumas “quase empresas”, ou seja, com grandes diferenças entre si, principalmente quanto aos objetivos institucionais, o público-alvo, orientação ideológica, ação política, etc. É no cenário político que algumas organizações não governamentais passam a assumir um papel mais propositivo na construção das políticas.

A autora explica que: “o Estado, para enfrentar a questão social, precisa da participação da sociedade civil, e a sociedade civil para garantir seus direitos precisa participar do espaço público estatal” (LEAL, 1998, p. 133). Parte significativa das ONGs passa a desempenhar um papel político, crítico e propositivo, em contraponto ao papel

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No item 1.3.1 deste trabalho são abordados os indicadores oficiais sobre violência contra criança e adolescente.

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Líder do Grupo Violes, Prof.ª Dr.ª Maria Lúcia Pinto Leal do Departamento de Serviço Social da UnB e coordenadora do NEIJ/CEAM.

tradicionalmente desempenhado com as ações de cunho caritativo na relação Estado e sociedade civil.

Longe de padrões homogêneos de luta, as ONGs desenvolvem pautas distintas entre si, abarcando temas como o meio ambiente, a violência, as drogas, a família, entre outros. Leal ressalta a necessidade de não utilizar, para o entendimento das ONGs, abordagens totalizantes, e sim abordagens que se definam pela diversidade e que as enfatizem como processo, não como modelo. A autora continua:

As ONGs que atuam no combate à exploração, abuso sexual e maus tratos, têm construído nos últimos anos, um espaço de mobilização social, permitindo a criação de uma concepção sobre o fenômeno, através de uma articulação em nível nacional e internacional, para ampliar e fortalecer os espaços de luta para enfrentamento do fenômeno. (LEAL, 1998, p. 138)

Como alternativa aos desafios postos com a redemocratização, as ONGs têm fomentado a estruturação de Redes que estabelecem mediações entre o universo público e a sociedade civil. “Nesse caso, as redes correspondem às articulações/interações vinculadas às ações/movimentos reivindicatórios, visando à mobilização de recursos, o intercâmbio de dados e experiências e a formulação de projetos de vida e políticas” (LOIOLA, 1996 apud LEAL, 1998, p. 143)

No caso específico do combate à exploração, abuso sexual e maus tratos contra a infância, a atuação se baseou na dimensão política (na correlação de forças presentes no espaço público); na educação (na construção de conhecimento e competências acerca do problema); na informação (articulando a sistematização e socialização de dados, experiências e denúncias); nas parcerias (relações conflituosas e cooperativas na implantação de políticas públicas) (LEAL, 1998).

A autora resume que:

O papel das ONGs que atuam no combate à exploração sexual, abuso e maus tratos de crianças e adolescentes no Brasil a partir de 1993, tem sido o de contribuir para uma participação efetiva das ONGs na implantação de políticas de atendimento às crianças e adolescentes e releitura da legislação para a desmobilização da ação do agressor, do usuário e das redes de comercialização. Têm contribuído também para a mobilização da sociedade e a quebra do silêncio – estratégias da desmobilização da exploração, abuso e maus tratos na família, na rua, nas redes de comercialização e na mídia. (LEAL, 1998, p.144)

Leal apresenta alguns marcos do processo de mobilização das ONGs para o enfrentamento da exploração, abuso sexual e maus-tratos de crianças e adolescentes no Brasil. Um de grande significado foi o ano de instauração da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da prostituição65 infanto-juvenil, em 1993, que investigou situações dramáticas do problema. Esta CPI havia sido respaldada pelos relatórios da CPI do extermínio de Crianças e Adolescentes de 1990 e da CPI da Violência contra Mulher de 1992. Em 1994, aconteceu a 1ª Conferência Metropolitana sobre Prostituição Infanto-Juvenil Feminina e Políticas Públicas em Salvador, onde foram elaborados subsídios para o Conanda formular política neste campo. Em 1996, foi realizado o “Seminário contra a Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes nas Américas” como momento preparatório para o 1º Congresso Mundial de Enfrentamento à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, ocorrido em Estocolmo, Suécia, no mesmo ano66.

O Seminário das Américas gerou a Carta de Brasília, e o Congresso de Estocolmo gerou uma Declaração e uma Agenda para Ação:

La Agenda para la Acción contra la Explotación Sexual Comercial de Niños, Niñas y Adolescentes ofrece um marco detallado y categorias de acciones que lós gobiernos deben realizar em asociación com organizaciones de la sociedad civil y otros actores pertinentes para combatir los delitos de explotación sexual comercial de niños, niñas y adolescentes. En general, estas acciones se concentran en: 1) Coordinación y cooperación; 2) Prevención; 3) Protección; 4) Recuperación, rehabilitación y reinserción; y 5) Participación de la niñez. Por lo tanto, la Agenda para la Acción es uma estructura formal y rectora utilizada por los gobiernos que la han adoptado y que están comprometidos com la lucha contra la ESCNNA. (ECPAT, 2006, p. 8)67

A partir da Agenda para Ação, os países que firmaram o compromisso no Congresso Mundial, a exemplo do Brasil, comprometeram-se com o desenvolvimento de campanhas, políticas e alterações na legislação, e com a elaboração de um Plano Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, sendo o documento brasileiro lançado em Natal (RN) no ano de 2000.

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Este termo, utilizado na época, não é mais considerado pertinente no que se refere à criança e ao adolescente. Qualquer relação comercial que envolva práticas sexuais com crianças e adolescentes é considerada exploração sexual de crianças e adolescentes.

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Em 2001, aconteceu o 2º Congresso Mundial em Yokohama, Japão e, em 2008, o 3º Congresso, no Rio de Janeiro, Brasil, o qual teve como documento final a “Carta do Rio de Janeiro”.

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INFORME GLOBAL DE MONITOREO DE LAS ACCIONES en contra de la explotación sexual comercial de niños, niñas y adolescentes – Brasil. Acessado em 21 de out. 2014. Disponível em:

É neste processo que se desenvolvem experiências no campo da mobilização, do atendimento, da comunicação, da prevenção e, particularmente importante para nossa pesquisa, da experiência da criação do número nacional de denúncia de violência sexual contra a criança e o adolescente pela Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência (Abrapia), em 1997. Em 2003, o serviço foi assumido pelo Governo Federal e transformado no Disque Denúncia, e depois, em 2010, transformado no Disque Direitos Humanos – Disque 100, o qual detalhamos a seguir.

O Disque Direitos Humanos – Disque 100 é oriundo do Disque Denúncia Nacional de Abuso e Exploração Sexual criado em 1997 pela Abrapia. Inicialmente o serviço foi criado para atendimento e encaminhamento de situação de violência sexual contra crianças e adolescentes, visando ampliar a oficialização de denúncias através de um serviço de anonimato e garantia de preservação da identidade do denunciante.

Enquanto esteve sob o gerenciamento da Abrapia, a estrutura do Disque-Denúncia foi organizada com o atendimento telefônico e o encaminhamento das denúncias – inicialmente circunscrito no Rio de Janeiro e posteriormente todo o país. Foram articuladas também redes por estado, para atendimento e monitoramento local das denúncias (SDH, 2011).

No Plano Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Criança e Adolescente (2000), foi destacada a necessidade de criar instrumentos que facilitassem o procedimento de denúncia, uma vez que a violência sexual está envolvida por tabus que atingem vítimas e inibem processos diretos de denúncia. Outra demanda apresentada desde o Plano foi a imprescindibilidade de um sistema nacional de registro, notificação ou sistematização de denúncias, que pudesse apresentar dados nacionais e locais sobre a situação da violência sexual, e assim subsidiar tanto ações da sociedade civil quanto planejamento de ações e políticas pelo poder público.

Cabe aqui observar que, na versão do Plano 2013, o problema do conhecimento de toda a abrangência da situação da violência sexual contra crianças e adolescentes ainda se apresenta como um desafio.

Em 2003, o Governo Federal criou o Programa Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes (PNEVSCA) sob a responsabilidade da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR). Entre as principais ações do Programa estão o Disque Denúncia Nacional - Disque 100 e o Programa de Ações Integradas e Referenciais de Enfrentamento à Violência Sexual Infanto-Juvenil no Território Brasileiro (PAIR). Ao ser assumido como ação governamental, passou por investimentos para ampliação e qualificação.

Atualmente um serviço semelhante e em expansão são as “helplines” ou canais de ajuda. Estes diferem do Disque 100 por não serem canais de oficialização da denúncia e encaminhamento às autoridades locais competentes. As “helplines” têm como proposta o apoio, orientação e fortalecimento para autoproteção e denúncia, não configurando, assim, substitutos dos disques denúncias.68