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4. A TERCEIRA SEÇÃO DA FUNDAMENTAÇÃO: A TENTATIVA DE DEDUÇÃO

4.2. A análise do conceito de vontade livre

Kant investiga o conceito de vontade buscando encontrar a necessidade da pressuposição da liberdade. Tanto é assim que há logo no princípio da seção uma redefinição do conceito de vontade relacionando-o ao conceito de liberdade exposto logo a seguir.41Escreve Kant, “A vontade é uma espécie de causalidade dos seres viventes, enquanto dotados de razão, e a liberdade seria a propriedade que esta causalidade possuiria de poder

como estes podem referir-se a priori a objetos, e distingo-a da dedução empírica que indica a maneira como um conceito foi adquirido mediante experiência e reflexão sobre a mesma, e diz, portanto respeito não à legitimidade, mas ao fato pelo qual a posse surgiu”.(KrV, B-117)

41 Já havíamos identificado um conceito de vontade, anterior ao que será apresentado imediatamente, na segunda

agir independentemente de causas estranhas que a determinam”; (G-446, grifos do autor). Eis que temos aí um conceito negativo de liberdade que é, na verdade, o conceito de liberdade transcendental encontrado na Crítica da Razão Pura, de liberdade como espontaneidade.42

Temos então que toda vontade racional é livre ao menos no sentido negativo (a liberdade seria uma propriedade da vontade que faz com que ela seja determinada por ela mesma e não por causas estranhas). Sendo a vontade livre, no sentido de não ser determinada por algo a não ser por ela mesma, em sentido negativo, portanto, temos que essa vontade tem a propriedade da autonomia. A vontade livre autônoma além de não ser determinada por causas naturais, também é livre no sentido de dar leis a si mesma. A partir dessa formulação, Kant busca mostrar que a lei que a vontade determina para si é o imperativo categórico. Entretanto, o conceito determinado de moralidade está reduzido à idéia da liberdade e, no entanto, a liberdade ainda não foi demonstrada como algo real em nós e mesmo na natureza humana. Isso quer dizer que pela simples análise do conceito de vontade Kant não pode encontrar a possibilidade de supor a liberdade.

Ora, é necessário que se registre aqui que o argumento de Kant explora dois conceitos de liberdade, o primeiro deles negativo e o outro positivo. O conceito de causalidade, segundo Kant, implica em si mesmo o conceito de leis de acordo com as quais temos algo que se comporta como causa que, por sua vez e por sua eficiência, produz o que podemos chamar “efeito”. A liberdade enquanto causa, não é desregrada. Ela pode ser considerada causa eficiente, independente de alguma causa anterior e, no entanto, respeitar uma lei, a saber, a de produzir por sua atividade algum efeito. Muito embora na experiência, tenhamos causas e efeitos a se encadearem de acordo com as leis da natureza, podemos ter um outro tipo de causalidade, capaz de produzir livremente seus efeitos, segundo uma lei autônoma. Nesta medida, o conceito de liberdade positiva, derivado da análise do conceito de liberdade negativa é aquele que está mais perto da possibilidade da razão prática ser pura, aparecendo como condição mesma da realidade da lei moral. Não percamos de vista, portanto, o seguinte ponto: é a própria lei moral que nos constrange a admitir que existe, de fato, a liberdade. E

42 Kant define na Crítica da Razão Pura um sentido cosmológico de liberdade que é o que ele denomina

“liberdade transcendental”. Eis a passagem em que esta definição se encontra “a faculdade de iniciar

espontaneamente um estado, e cuja causalidade, pois, não está por sua vez, como o requer a lei da natureza, sob

uma outra causa que a determine quanto ao tempo. Neste significado, a liberdade é uma idéia transcendental pura (...)” KrV-B561, grifos do autor.

isso significa que o que Kant tem em mente é caracterizar o imperativo moral exatamente como a lei de uma vontade livre. (G-446)

Antes mesmo de conseguir estabelecer qualquer relação entre a vontade e a liberdade na construção da idéia de uma “vontade livre”, já na segunda seção, Kant havia identificado a vontade com a razão prática43, donde conclui que toda vontade é racional (para que se possa agir voluntariamente a razão torna-se necessária). Contudo, é através de uma conexão com a liberdade que Kant quer estabelecer a possibilidade da racionalidade da vontade. Mas a questão que se pode pertinentemente fazer neste momento é a seguinte: a razão afinal de contas necessariamente implica uma vontade? Todo ser racional é dotado de vontade? Ora, Kant não pode apresentar e defender tal argumento, já que a faculdade de desejar tem uma origem independente desta cognição.

Kant parece querer diluir possíveis confusões em relação a esta questão quando salienta que o que ele precisa é apenas estabelecer uma conexão entre vontade e racionalidade para que ainda possa seguir com seu argumento acerca da possibilidade da liberdade. Assim, temos a seguinte restrição apresentada por Kant: “E afirmo que a todo ser dotado de vontade devemos atribuir necessariamente também a idéia de liberdade, mercê da qual somente ele pode agir.” (G-448, grifo meu) Então, se toda vontade é racional mas nem toda racionalidade é dotada de uma vontade, a liberdade encontra-se sempre associada a uma razão possuidora de vontade, caso contrário, para um ser racional carente de vontade, não se poderia falar certamente em vontade autônoma e, menos ainda em uma vontade livre.

A pretensão de Kant é partir da idéia segundo a qual o conceito de autonomia da vontade leva ao próprio princípio da moralidade ou então, por outras palavras, que o princípio da autonomia é o próprio princípio da moralidade. Não pode haver uma vontade autônoma moralmente neutra. Sendo a vontade de todo o ser racional livre, por sua autodeterminação, deixando de ser por isso mesmo um simples efeito natural, então, todo ser racional, por força dessa autonomia de sua vontade pode considerar-se livre, capaz de dar leis a si mesmo. Essa liberdade, porém, é admitida apenas sob a forma de idéia necessária para servir de fundamento para as ações dos seres racionais do ponto de vista prático.

A idéia de vontade livre aparece ligada de forma indissociável à autonomia da vontade, já que somente uma vontade que é livre tem condições de escolher a quem deve obedecer, aos impulsos sensíveis ou à razão. Mais uma vez, a lei moral é, portanto o próprio

princípio da autonomia da vontade suposto na idéia da liberdade. Essa noção de liberdade é, como já salientamos, positiva e Kant a retira da definição transcendental ou negativa de liberdade segundo a qual podemos dar início a uma série de eventos sem que para isso exista uma causa empírica, há uma certa espontaneidade da razão que a permite agir sem a determinação das leis da natureza. Isso significa que a lei moral que determina a vontade, não está submetida a uma causalidade natural. Portanto, pode-se dizer que a liberdade em sua definição negativa nos sugere a possibilidade da lei moral que, no entanto, só pode encontrar sua realidade no conceito positivo de liberdade que remete à causalidade da vontade. Por esse motivo, a noção de liberdade enquanto causalidade da vontade permanece como idéia fundamental para a convicção da validade do imperativo categórico.