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3. A SEGUNDA SEÇÃO DA FUNDAMENTAÇÃO: DA SABEDORIA MORAL

3.4. As possíveis formulações do imperativo categórico

3.4.2. A Fórmula da Humanidade (FH)

O enunciado da FH é o seguinte: Age de maneira que trates a humanidade não apenas como puro meio, mas, especialmente, como fim (G-429). Essa formulação nos remete à reflexão, novamente, sobre a motivação do dever. Quais razões nós poderíamos apontar, no domínio da filosofia moral kantiana, como capazes de levar seres racionais a aceitarem o imperativo categórico e, mais importante, a aceitarem-no como princípio-guia de suas ações? A FH permite uma investigação nesse sentido, em busca da possibilidade de uma vontade racional conformar-se à lei moral que quando dirigida aos seres humanos apresenta-se sob a forma de um imperativo categórico. O significado da ação por dever encontra nessa

formulação uma sustentação: agir por dever é agir por estima à humanidade daquele que considero um fim em si mesmo. Não se trata, portanto, de buscar uma finalidade para a ação ou mesmo algo que possa trazer um resultado digno de apreço e louvor. O agente não deve querer um fim que ainda será construído ou que está para acontecer dependendo de sua ação (finalidade com valor relativo ou preço). O significado que Kant quer dar ao conceito de fim é o de um fim já existente por si e, nesse sentido, auto-suficiente cujo valor absoluto é incomparável a qualquer outro valor. Isso deve parecer bem claro no pensamento de Kant, tendo em vista a insistência do filósofo em relação à filosofia prática que segundo ele não deve começar com a avaliação de um fim ou objeto da razão para então se obter a lei moral, mas deve começar com a determinação do princípio da razão. Os princípios morais não podem estar baseados na representação de objetos futuros. Por essa razão Kant considera com tanta convicção que a determinação da vontade por seu objeto resulta numa heteronomia da vontade. Em razão desta heteronomia, a vontade não é autora de sua lei, o que resulta em apenas uma possibilidade: a obtenção de imperativos hipotéticos.

O valor absoluto do qual somos capazes de nos aperceber e, especialmente, nossa capacidade racional de estabelecermos fins e de elaborarmos leis, constituem o motivo para a obtenção de leis as quais devemos seguir. Portanto o valor da humanidade como fim em si mesma está diretamente conectado com a autonomia dos seres racionais e com a motivação para suas ações autônomas.

Mas assim como na idéia de uma vontade absolutamente boa, sem condições restritivas (qual pode ser a aquisição deste ou daquele fim), é mister abstrair de todo fim a obter (o qual não poderia tornar boa uma vontade senão relativamente), como é mister que o fim seja concebido aqui, não como fim a realizar, mas, senão como fim existente por si, portanto que seja concebido de maneira puramente negativa, isto é, como fim contra o qual nunca se deve agir, que nunca deve ser considerado como simples meio, mas sempre e ao mesmo tempo como fim em todo ato de querer.(G- 437)

Não devemos ver somente a nós mesmos como agentes racionais, temos o dever de respeitar a humanidade do outro tratando – o sempre como fim em si. A conduta moralmente boa e correta é expressão de respeito pela humanidade, dever de todo ser racional. O que resguarda essa formulação do imperativo categórico é o valor e a dignidade da humanidade.

O motivo do dever moral pode ser aí encontrado, o que nos permite dizer que a ética kantiana não é vazia e que tem um conteúdo que se revela por meio da idéia do dever atrelada ao valor da humanidade manifesta em cada pessoa considerada como um fim em si mesma. Por esse motivo, ao apresentar o exemplo do filantropo insensível como aquele merecedor de mais valor, Kant não quer dizer que o correto é apenas cumprir regras e não “ajudar a quem precisa”, mas antes deixar claro que devemos ser benevolentes com as pessoas porque enxergamos nelas seres com uma dignidade a ser preservada. Essa atitude de reconhecer no outro seu valor e dignidade merece mais estima do que qualquer sentimento de empatia ou de prazer ao fazer o bem.

Essa não é uma regra ou princípio a ser obedecido, mas um valor que funda regras morais, fornecendo um motivo racional objetivo para os obedecer. Mas não é um valor no sentido de um objeto desejado a ser produzido através da obediência aos princípios morais. É algo existente, cujo valor deve ser respeitado em nossas ações. O que a FH exige de nossas ações não é que persigamos algum resultado ou obedeçamos alguma regra obrigatória, mas antes que expressem o respeito devido pelo valor da humanidade.29

O valor da humanidade reconhecido nas outras pessoas é, na verdade, o respeito que se deve ter pelas pessoas não apenas enquanto meios, mas, sobretudo como fins em si mesmas. Esse é o sentido que Kant dá à ação moral. A humanidade é considerada como objeto de respeito e veneração, portanto a má conduta moral revela-se exatamente no desrespeito a esse valor da humanidade. Entretanto, essa atitude de respeito e valorização não pode permanecer em estados interiores, subjetivos. É necessário que esse respeito se transforme efetivamente em ações morais, cumpridas por dever.30De modo diverso das teorias consequencialistas que colocam o cumprimento dos deveres morais como produtores de estados de coisas desejáveis, a ética Kantiana, apresenta a realização dos deveres morais como obediência e respeito a um mandamento autodado. A FH, entretanto, como salienta Allen Wood, coloca o valor de algo como base de nossos deveres, ou seja, considerar a humanidade como fim em si mesmo não é propriamente respeitar uma regra, mas sim tomar

29

Wood, A. Kant’s ethical thought. Cambridge: Cambridge University Press, 1999.p.177

essa ação (de considerar o valor da humanidade) como razão fundamental para que respeitemos e nos conformemos à própria lei moral.