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A Fórmula da Lei Universal (FLU) e a Fórmula da Lei da Natureza (FLN)

3. A SEGUNDA SEÇÃO DA FUNDAMENTAÇÃO: DA SABEDORIA MORAL

3.4. As possíveis formulações do imperativo categórico

3.4.1. A Fórmula da Lei Universal (FLU) e a Fórmula da Lei da Natureza (FLN)

As duas primeiras formulações do imperativo kantiano dentre as cinco que apresento,28 são a Fórmula da Lei Universal e a Fórmula da Lei da Natureza que em outras palavras determinam respectivamente o seguinte: Age de forma que a máxima de tua ação possa ser tomada como Lei Universal (G-421) e Age de forma que a máxima de tua ação possa ser tomada, pela tua vontade, como Lei Universal da Natureza (G-421). A primeira formulação do imperativo categórico aqui denominada Fórmula da Lei Universal é apresentada pelo filósofo como a própria expressão do imperativo categórico de forma que as demais formulações seriam desdobramentos dela servindo de auxiliares para a sua compreensão. Apesar disso, nas demais formas do imperativo kantiano aparecem elementos que podem servir como resposta as críticas endereçadas à ética do autor, tais como a crítica do vazio (falta de conteúdo) e a do formalismo. O sentido dessas duas fórmulas apresentadas é analisado por Kant através de quatro exemplos nos quais ele aplica sua lei e nos quais o que interessa é justamente a correção da máxima (se é ou não moral), são eles os exemplos: suicídio, empréstimo (promessa falsa), talentos (cultivo dos dons naturais) e beneficência (filantropia). As máximas não morais nestes casos, quando universalizadas, levam a uma contradição, segundo Kant.

No caso do suicida que por amor de si resolve acabar com a própria vida, sua máxima é contraditória com relação à finalidade da natureza que é sempre a conservação da vida. A máxima daquele que atenta contra a própria vida, ou planeja fazê-lo, por encontrar-se desesperado e sem razões para permanecer vivo é a seguinte: “por amor de mim mesmo, estabeleço o principio de poder abreviar a minha existência, se vir que, prolongando-a tenho mais males que temer do que satisfações a esperar dela”.(G-422)Tal princípio do amor de si não pode ser elevado à condição de lei universal (da natureza). A contradição na máxima que

se apresenta nesse caso impede sua adequação com o princípio supremo do dever.

Da mesma forma temos uma contradição na máxima daquele que em situação de apuros promete algo sabendo que não irá cumprir, visto que além de termos uma contradição prática, o próprio conceito de promessa perde o seu significado. O exemplo nesse caso é o de um homem que por encontrar-se em situação de extrema necessidade pede dinheiro emprestado mesmo sabendo que não terá condições de devolvê-lo. A pessoa em questão, porém, não vê alternativa para resolver seu problema se não aquela de fazer uma promessa falsa. Ainda que impelido por essa vontade, o agente pergunta a si mesmo se seria possível transformar em lei universal a máxima segundo a qual peço dinheiro emprestado por me considerar em situação de apuros, prometendo restituir a quantia apesar de saber que não o farei. Tal exigência do amor de si ou da utilidade própria deve ser submetida à seguinte questão: o que aconteceria se esse meu princípio subjetivo, se essa minha máxima se transformasse em regra, em lei universal e, portanto válida para todos? Depois do exame dessa questão, Kant argumenta que o ser racional tem condições de concluir que não é possível admitir como lei universal que todo homem que necessite de um empréstimo ou de qualquer outra coisa possa prometer algo tendo por certo o não cumprimento desse juramento. Isso seria o mesmo que tornar impraticável todo ato de prometer bem como inalcançável qualquer finalidade proveniente dessa promessa mentirosa, já que ninguém mais acreditaria em qualquer juramento, sendo que em seu conceito estaria contida a idéia de sua falsidade. Por esse motivo, além de termos nesse exemplo a presença de uma contradição prática, também podemos observar uma contradição lógico-conceitual considerando-se que o conceito de promessa perde seu sentido original.

Já no exemplo dos talentos, daquele que prefere o gozo dos prazeres da vida ao cultivo de seus talentos naturais, há uma contradição não no conceito, mas no querer, na vontade. Nesse caso teríamos a vontade contrariando as Leis da Natureza. O ser racional tem uma finalidade em sua vontade e, portanto, deve querer que todas as suas faculdades se desenvolvam. “Como ser racional, ele quer necessariamente que todas as suas faculdades atinjam seu pleno desenvolvimento, visto que lhe são de utilidade e lhe foram dadas para toda espécie de fins possíveis”.(G-423) Kant considera que é possível um mundo em que as pessoas decidam não aprimorarem seus talentos, porém não podemos de fato querer um mundo assim. Em algumas civilizações dos “mares do sul”, por exemplo, é possível encontrarmos pessoas que prefiram não desenvolverem suas capacidades, entretanto, o

homem racional deve buscar o aprimoramento de seus talentos e com isso uma maior autonomia, ampliando suas possibilidades de escolha e em conseqüência sendo mais livre.

O quarto e último exemplo é o da beneficência. Kant cita um quarto homem que dispondo de uma vida farta, sem necessidades quaisquer e observando outras pessoas que, vivendo com graves dificuldades, careceriam de ajuda pensa: cada qual que cuide de seus problemas e que procure ser feliz com aquilo que tem, não prejudicarei ninguém, porém não me empenharei em auxiliar quem quer que seja. A máxima a ser julgada nesse caso é a seguinte: “não devo ajudar os necessitados, devo permanecer indiferente ao sofrimento alheio sem, no entanto, prejudicar alguém” (G-423). Ao universalizarmos a máxima do egoísta racional, a máxima da não-beneficência, também temos uma contradição na vontade já que apesar de concebermos como possível essa situação não se pode querer que as coisas sejam assim. Não podemos querer que esse princípio vigore como Lei Natural porque podemos em alguma circunstância de nossas vidas passar por situação semelhante e necessitarmos da ajuda alheia. É possível um mundo cuja lei seja a lei da “não beneficência”, mas obviamente o ser racional não desejaria, segundo Kant, tal estado de coisas.

As outras três formulações do imperativo categórico são assim intituladas: Fórmula da Humanidade (FH), Fórmula da Autonomia (FA) e Fórmula do Reino dos Fins (FRF). A observação desses últimos três enunciados do imperativo categórico permite o preenchimento do suposto “vazio” deixado por Kant nas duas primeiras fórmulas e, além disso, especialmente na fórmula da autonomia, encontramos as idéias iluministas de sua época de liberdade e igualdade, bem como do uso da razão para a conquista desses ideais.