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Análise crítica do aborto sob a perspectiva ética

Desde os primórdios da filosofia ética ou moral se debate a respeito de conceitos sobre o que é certo ou errado, moral ou imoral, principalmente quando envolve assuntos relacionados à proteção da vida – e discutir sobre aborto é um dos pontos mais fortes dessa questão, as respostas sobre a moralidade do aborto e seus efeitos nas mulheres parecem não alcançar uma resposta satisfatória.

Sobre o debate, disserta Kaczor (2014, p. 15):

[...]. Enquanto as pessoas têm a mente aberta a respeito do aborto ou de qualquer outro tema, faz sentido falar dele.

Um enfoque assim aberto é essencial para a vida da mente. Pertence à realização humana buscar lucidez, perspectiva e esclarecimento onde quer que se encontre. Isso implica que a partir do exame mais avançado dos argumentos, da compreensão mais profunda das implicações e da investigação mais ampla da evidência alguém pode mudar seu pensamento.

Desta forma, o aborto é um tema sempre de grande fluxo quando em debate pela opinião pública, e sem dúvida muitas pessoas migraram da posição “pró-vida” à posição “pró-escolha” – e vice-versa – em diversas ocasiões.

Isto é o aborto não é um assunto encerrado, senão em debate público caloroso até os dias atuais. Outrossim, não só o debate, mas também discutir a ética em si do aborto é importante.

Sobre a ética do aborto, inúmeras questões despontam, dentre as quais, para início de debate, é de que em instante o ser humano pode ser definido como pessoa. Acerca disso, diz Kaczor (2014, p. 28):

Se todas essas tentativas de distinguir meros humanos de pessoas falham, o que é que Tooley oferece em seu lugar? Tooley chega a este princípio fundamental: que tem direito à vida um organismo que se compreende a si mesmo como sujeito contínuo de experiência (1972, p. 62). Em apoio a Tooley e repescando uma definição de pessoa sugerida por John Locke, Singer define uma pessoa como um “ser consciente de que sua experiência e capaz de ter desejos e planos para o futuro” (1994, p. 218). Esta definição de pessoa surgida de Locke (1996, p. 138) e ampliada por Singer tem vários elementos; um ser é pessoa se e somente se tem: (1) consciência de sua própria existência, (2) ao longo do tempo e em diversos lugares e (3) a capacidade de ter desejos e (4) planos para o futuro.

Assim, ser humano não é, necessariamente e intrinsecamente, considerado pessoa – sendo aqui irrelevante a discussão sobre a potencialidade do ser humano poder vir a ser pessoa –, e haveria alguns elementos para o ser humano começar a ser definido como pessoa, logo sujeito de direitos.

Outrossim, ainda é feita uma distinção entre seres humanos e pessoas. Assim aduz Kaczor (2014, p. 45-46) ao reproduzir outros entendimentos consolidados sobre a temática:

Primeiro: pessoas têm consciência de objetos e eventos, externos ou internos a elas mesmas, em particular a capacidade de sentir dor (WARREN, 1973, p. 163). Seres humanos a quem falta essa capacidade de consciência, particularmente aqueles a quem falta a faculdade de sentir dor, não são pessoas. Segundo: as pessoas podem raciocinar, têm desenvolvida a faculdade de resolver problemas novos e relativamente complexos (ibid.). Pessoas potenciais, de outra parte, não podem funcionar desse modo. Terceiro: pessoas têm atividade automotivada, isto é, “atividades relativamente independente de controle genético ou externo” (ibid.). Pessoas potenciais não sabem se controlar no grau requerido. Quarto. Pessoas possuem a capacidade de se comunicar por quaisquer meios, em mensagens de uma variedade indefinida de tipos, isto é, “não apenas com número indefinido de conteúdos

possíveis, mas a respeito de um conjunto indefinido de tópicos”

(ibid.). Pessoas potenciais só podem se comunicar muito pouco, ou às vezes simplesmente nada. Finalmente, quinto: pessoas têm “presentes autoconsciência e autopercepção individual, racial ou ambas” (ibid.). Ao meros seres humanos faltam tais predicados. O último critério de personalidade não difere significativamente daquele que Tooley ofereceu no capítulo anterior, mas outros critérios são novos.

Desta maneira, havendo nítida distinção sobre as diferenças entre meros seres humanos e pessoas dotadas de autopercepção e autoconsciência, então nada mais ético do que a possibilidade moral de a mulher ter o direito de decidir sobre o que fazer com o seu corpo – no caso em tela, sobre o feto, já que por mais que possa ser um ser humano, ele não é pessoa, portanto passível de aborto.

Para tal entendimento, é necessário se socorrer da compreensão do que seria pessoalidade. Uma breve definição, porém precisa e certeira, pode ser encontrada em Kaczor (2014, p. 60):

As características mais salientes e frequentemente mencionadas que parecem revelar a pessoalidade depois da concepção e antes do nascimento incluem desejos e anseios conscientes, habilidade, o

começo da movimentação, a capacidade de se mover

espontaneamente, a capacidade de sentir, forma humana reconhecível, formação do cérebro, implantação do embrião no útero.

Antes que as características determinantes – sejam quais forem –

estejam presentes, o aborto seria plenamente lícito. Desde que estejam presentes, o aborto será morte de um ser com valor moral – e inadmissível. É importante então entender a relação entre essas características.

Não somente as características do que seria pessoalidade, senão também é necessário saber quando esta começa – quando esta surge, nasce. Para tanto, entende Kaczor (2014, p. 101) que a vida humana não começa somente na concepção, corrente esta defendida por muitos cientistas de posição “pró-vida” (que usam a concepção como início de vida para deslegitimar o aborto):

A ciência contemporânea também sustenta a possibilidade de a vida humana começar por meio de clonagem. De fato, o nascimento de um ser humano trazido à existência ser fertilização de óvulo por esperma foi anunciado em 26 de dezembro de 2002. Nesse dia foi enviado a todas as redes maiores de notícias o relato de uma mulher apoiada pelo culto raeliano (que crê que a vida humana proveio de clonagem de alienígenas) que tinha dado à luz o primeiro ser humano clonado, uma menininha chamada “Eva”. Ao tempo em que escrevo, essa alegação tem que ser confirmada por fonte independente, mas certamente pode ser que alguém, algures, em algum dia futuro, dê a luz uma criança clonada. Mesmo antes que isso ocorra, o fenômeno da clonagem natural conhecida como geminação monozigótica (um embrião humano se dividir e dar origem a gêmeos idênticos) mostra que ao menos alguns seres humanos não começam a existir na concepção. Assim, a questão em pauta aqui não é se todos os seres humanos começam a existir na concepção (certamente nem todos), mas antes se alguns seres humanos, na realidade a ampla maioria, o comum deles, começam a existir na concepção.

Considerando que a concepção não pode ser o único ponto de partida para a existência do ser humano – e após o parto, o começo da consolidação do ser humano como pessoa –, Lee (1996 apud KACZOR, 2014, p. 101) aponta:

A formação, a maturação e o encontro de células sexuais masculinas e femininas são preliminares de sua união atual, numa célula combinada ou zigoto, que definitivamente marca o início de novo indivíduo. Essa penetração do óvulo pelo espermatozoide e o (sic) se juntarem e combinarem seus respectivos núcleos constitui o processo da fertilização (AREY, p. 55).

Zigoto. Essa célula é o começo de um ser humano; resulta da fertilização de um óvulo pelo esperma. A expressão “óvulo fertilizado” se refere ao zigoto (MOORE, 1987, p. 9).

A vida embrional começa com a fertilização e daqui o começo daquele processo se poder tomar como ponto de partida do estágio I (LARSEN, 1993, p. 19).

Destarte, o ser humano começa a existir depois da concepção, e somente se torna pessoa após o parto – logo o aborto é moralmente lícito -, e este apontamento é feito por Kaczor (2014, p. 130) ao entender que pessoas tem direitos, ao contrário de fetos, que não os possuem:

Uma vez que virtualmente cada célula viva do organismo humano é geneticamente completa, viva e humana, a visão pró-vida pareceria exigir que todo tipo de “matar” células humanas equivalesse a matar uma pessoa humana (RUBENFELD, 1991, p. 621-626; HARRIS HOLM, 2003, p. 120). Afora gametas, todas as células do corpo humano são geneticamente completas e poderiam se desenvolver em embriões por meio de clonagem. Assim, apoiar a pessoalidade na mera completude genética exclui não só o aborto nem só a contracepção, mas o “matar” toda célula humana, qualquer que seja.

Assim sendo, não interessa exatamente qual o caminho lógico e ético a ser percorrido, uma vez que todos estes caminhos, independente do ponto de partida, convergem para o entendimento que, moralmente, o aborto é lícito e possível.

Visando encerrar o tópico – por enquanto –, é necessário ainda falar um pouco acerca de se, eticamente, é ruim abortar alguém. Conforme Kaczor (2014, p. 159):

Contudo, tem-se que levar em conta o fardo de se tornar mãe (diferente de simplesmente estar grávida) como parte da avaliação, e essa é talvez a razão mais significativa, outras não o querem ser de novo, com esse parceiro, nesse momento da vida. Como se tornar mãe é uma mudança incrivelmente significativa na identidade prática da mulher, sobre a qual ela deveria poder exercer o controle, o aborto é moralmente admissível ou ao menos não é indecente (LITTLE, 2003, p. 320-321 apud Kaczor, 2014, p. 159).

Para lidar com essa objeção tem-se que distinguir três aspectos da paternidade-maternidade: o sentido social (criar ou socializar e aculturar a criança após o nascimento), o genético (contribuir com sêmen ou óvulos para a concepção) e o gestacional (portar um ser humano em desenvolvimento). Se o feto humano é pessoa, então a grávida já é mãe em dois sentidos, gestacional, e fora do caso da fertilização in vitro, também geneticamente. Assim, a mulher grávida já é mãe pelo menos nos sentidos genético e gestacional. Resta-lhe optar se quer ou não tornar-se mãe, mas, como o infanticídio, dá-lhe a opção de não continuar mãe nos sentidos biológicos e gestacional.

Pode-se concluir, então, que abortar alguém é moralmente admissível, até porque mesmo se o feto tivesse pessoalidade, ele não seria considerado pessoa por

completo, uma vez que lhe faltam todas as dimensões completas de a mãe do feto poder ser considerada mãe [dimensões estas, a saber: social, genético e gestacional – a mãe do feto não o é no sentido social].

Enfim, ainda é necessário se discutir sobre se também é moralmente admissível permitir aborto em “casos difíceis”. Segundo Kaczor (2014, p. 195), se o feto é ser humano, mas não pessoa, e deliberadamente não é indecente à grávida abortar, tão o mais é nas situações consideradas difíceis:

Embora haja “casos difíceis” tanto para quem apoia como para quem rejeita o aborto, a expressão “casos difíceis” a respeito do aborto em certo sentido é inadequada. Aborto não se escolhe [ao menos normalmente] como algo positivo, assim como o alimento ou o lazer. Na ampla maioria dos casos, o aborto é levado adiante com pesar, como o último recurso, a que não se teria recorrido em outras circunstâncias. Creio que isso se deve ao reconhecimento implícito – mesmo de quem se submete e o perfaz – de que o aborto termina a vida de um ser humano inocente e é moralmente questionável.

Então, por mais que o aborto seja encarado pela ora grávida – e as pessoas que a acompanham – com um certo pesar [de fato, é um difícil encargo a ser decidido], não haveria razões para que esta se sentisse envergonhada de tomar uma decisão que é admissível moralmente e eticamente – e é nada indecente.

Por fim, não existe aqui a pretensão de esgotar os argumentos que decaem as alegações da posição “pró-vida”, contudo cabe demonstrar alguns dos argumentos da posição “pró-escolha” que fornecem subsídio – tanto pela psicologia, quanto pela biológica, assim como pela ética, bem como pela estrita racionalidade – para evidenciar a lícita moralidade das práticas abortivas.

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