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Aborto: análise critica sob as perspectivas ética e jurídica

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Academic year: 2021

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UNIJUI - UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

MICHELI RAQUEL ERTHAL WOTTRICH

ABORTO: ANÁLISE CRITICA SOB AS PERSPECTIVAS ÉTICA E JURÍDICA

Ijuí (RS) 2017

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MICHELI RAQUEL ERTHAL WOTTRICH

ABORTO: ANÁLISE CRITICA SOB AS PERSPECTIVAS ÉTICA E JURÍDICA

Monografia final do Curso de Graduação em Direito objetivando a aprovação no componente curricular TCC.

UNIJUÍ – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. DCJS – Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais

Orientador: MSc. Luiz Paulo Zeifert

Ijuí (RS) 2017

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Dedico este trabalho a todos que, de uma

forma ou outra, me apoiaram, mas

especialmente a minha família pelo incentivo e força nas horas mais difíceis.

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AGRADECIMENTOS

A Deus, quando por vezes me vi desacreditada e perdida, Ele me fez vivenciar a alegria de me formar.

A meu orientador, Prof. Luiz Paulo Zeifert, por sua dedicação, disponibilidade e compreensão em minhas inúmeras dúvidas.

A minha mãe, Marcia, e minha irmã, Mariele, que sempre me apoiaram e acreditaram nesse sonho.

Ao meu esposo, Eno, por sua paciência e carinho durante esses anos.

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¨Ou nenhum indivíduo da espécie humana tem verdadeiros direitos ou todos têm os mesmos. E aquele que vota contra o direito do outro, qualquer que seja religião, a sua cor ou sexo, abjurou, a partir deste momento, dos seus próprios direitos.¨

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RESUMO

O presente trabalho de pesquisa faz um estudo sobre a evolução do aborto, desde uma perspectiva a partir de sua conceituação, sua posterior penalização, e agora a pretensão de descriminalizá-lo. Há de ser feita uma abordagem que além de permear os aspectos históricos envolvidos nisto, permeia igualmente os aspectos éticos e jurídicos envoltos ao tema, bem como a visão contemporânea sobre o tema e os principais debates nisto envolvido. Por fim, a presente monografia entende que aborto não é crime, pelo contrário, é um direito da mulher.

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ABSTRACT

The present research work makes a study about the evolution of abortion, from a perspective based on its conceptualization, its later penalization, and now the pretension to decriminalize it. An approach must be taken which, in addition to permeating the historical aspects involved, also permeates the ethical and legal aspects involved, as well as the contemporary view on the theme and the main debates involved. Finally, this monograph understands that abortion is not a crime, on the contrary, it is a woman's right.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...9

1 ABORTO...11

1.1 Apontamentos sobre a legislação comparada, histórica e atual...12

1.2 Legislação brasileira...16

2 ÉTICA...20

2.1 Apontamentos históricos...22

2.2 Visão contemporânea: alguns autores...26

3 ABORTO: O ÉTICO E O JURIDICO...32

3.1 Análise crítica do aborto sob a perspectiva ética...32

3.2 Análise crítica do aborto sob a perspectiva jurídica...37

CONCLUSÃO...42

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INTRODUÇÃO

A presente pesquisa tem por escopo a abordagem da temática do aborto por intermédio de uma análise crítica sob o viés ético e jurídico. Inicialmente será feita uma abordagem histórica do aborto, perpassando pelo direito comparado e a legislação brasileira, em seguida, as observações adentram no campo ético com apontamentos históricos e uma visão contemporânea, e, por fim, então será trabalhado o ponto de vista crítico do assunto.

No primeiro capítulo, fez-se uma abordagem quanto à conceituação do aborto, a origem e significado da palavra segundo alguns autores e logo em seguida adentrou-se no contexto da historicidade do aborto pelo direito comparado e pela legislação brasileira trazendo as hipóteses em que o aborto deixa de ser considerado um crime, ou seja, despenalizado.

No segundo capítulo realizou-se uma busca histórica sobre a ética, sua conceituação através dos ensinamentos de filósofos clássicos como Platão, Sócrates e Aristóteles do período antigo, mostrando uma ética de busca do bem estar social. Em seguida o estudo segue nos termos da ética segundo Kant e Peter Singer, uma ética aplicada à atualidade e aos diferentes seres.

E por fim, no terceiro capítulo será feita a análise crítica do aborto através da ética e do direito, buscando, enquanto analisado pelo ponto de vista ético, mostrar alguns pontos mais relevantes dos grupos pró-escolha e pró-vida. Ainda, quando analisado o tema pelo viés legal, intenta o trabalho demonstrar que a legislação em vigor se mostra ultrapassada e incoerente com a atual situação.

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Para a realização do presente trabalho utilizou-se o método hipotético dedutivo, que exigiu, para além da utilização de material bibliográfico físico, documentos eletrônicos, sites, blogs entre outras plataformas virtuais.

Com toda a informação coletada através dos meios supracitados tornou-se possível elaborar um referencial teórico coerente com o tema e indispensável ao desenvolvimento daquilo ao que a pesquisa se propunha, ou seja, responder ao problema proposto sobre as entraves referentes ao aborto, apontando o que as diversas sociedades trazem a respeito do assunto do decorrer dos tempos sob o ponto de vista ético e jurídico, buscando questionar-se sobre o que em determinada sociedade pode ou não ser considerado ético, afinal o aborto é ético? Trata-se de um direito a vida ou um direito da mulher?

Estas são, portanto algumas das questões que o presente trabalho buscará responder, sem pretensões, no entanto, de esgotar por completo o tema haja vista que existem inúmeras sociedades que não foram trazidas ao enfoque de estudo bem como seus ordenamentos jurídicos vigentes. Mas almeja além do objetivo perseguido deixar claro alguns aspectos referentes ao assunto diante do atual contexto social.

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1 ABORTO

A temática do aborto, cada vez mais em voga, divide opiniões, de modo a assegurar acaloradas discussões. Esse debate implica desconforto, o que faz com que as pessoas tenham pensamentos diferentes a respeito do assunto. Segundo Prado (1991, p. 9):

A palavra aborto é hoje uma das palavras mais explosivas, mais carregadas de tabus e preconceitos de nossa linguagem cotidiana. Todos sabemos o que significa, e, no entanto, se quatro pessoas se reunirem, é provável que tenham opiniões divergentes ou que surjam conflitos entre elas.

Segundo Alves (1999, p. 193), etimologicamente a palavra aborto deriva do latim “abortus”, sendo que “ab” significa privação e “ortus” nascimento, ou seja, aborto nada mais é que a privação do nascimento:

Considera-se aborto a interrupção da gravidez com a conseqüente [sic] destruição do produto da concepção. Consiste na eliminação da vida intra-uterina [sic]. Não faz parte do conceito de aborto, a posterior expulsão do feto, pois pode ocorrer que o embrião seja dissolvido e depois reabsorvido pelo organismo materno, em virtude de um processo de autólise; ou então pode suceder que ele sofra processo de mumificação ou maceração, de modo que continue no útero materno. A lei não faz distinção entre o óvulo fecundado [3 primeiras semanas de gestação], embrião [3 primeiros meses], ou feto [a partir de 3 meses], pois em qualquer fase da gravidez estará configurado o delito de aborto, quer dizer desde o início da concepção até o início do parto. (CAPEZ, 2004, p.108).

Conforme Pimentel (1997), o conceito de aborto significa, basicamente, a questão de escolha entre a vida e a morte de um embrião humano em via de desenvolvimento:

Assim, apesar de bastante difundido, o problema da moralidade do aborto é histórica e contextualmente localizado e qualquer tentativa de solucioná-lo tem que levar em consideração a diversidade moral e cultural das populações atingidas. (DINIZ; ALMEIDA, 1998).

Desde os primórdios existe essa preocupação acerca do que consiste o aborto. A discussão tem desdobramentos que englobam o campo jurídico, medicinal, ético, religioso e político:

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A proteção da vida intra-uterina [sic] como valor social perde-se na penumbra das eras. Evidencia-se tal preocupação nos documentos mais antigos da historia humana na terra, nas pinturas rupestres, o homem consignava em gravuras sua inquietação. (ALVES, 1999, p.192).

Essa prática milenar é vista de diversas formas no ordenamento jurídico: ao se adentrar no estudo do direito comparado, pode-se dizer que em alguns países a conduta não é tipificada como crime, ao contrário de outros, como é o caso do Brasil, em que a conduta é ilícita, exceto quando se tratar do chamado aborto necessário.

1.1 Apontamentos sob a legislação comparada: histórica e atual

A prática abortiva é tão antiga quanto às civilizações. Desde seus primórdios, há o conhecimento de algumas técnicas abortivas, embora à época já fosse prevista sanção pra quem a praticasse:

Historicamente, os primeiros dados de que dispomos referentes ao aborto são do código de Hammurabi, 1700 anos antes de Cristo. Nele considera-se o aborto como um crime acidental contra os interesses do pai e do marido, e também uma lesão contra a mulher. (PRADO, 1991, p.42).

Segundo Alves (1999), a criminalização do aborto no Código de Hammurabi trazia disposições repressivas ao terceiro que o praticasse:

Art. 209. Se alguém bate numa mulher livre e a faz abortar, deverá pagar dez siclos pelo feto.

Art. 210. Se essa mulher morre, se deverá matar o filho dele.

Art. 211. Se a filha de um liberto aborta por pancada de alguém, este deverá pagar cinco siclos.

Art. 212. Se essa mulher morre, ele deverá pagar meia mina.

Art. 213. Se ele espanca a serva de alguém e esta aborta, ele deverá pagar dois siclos.

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Na lei Hebraica condenava-se aquele que praticasse o aborto mediante violência, condenando-o a arcar com o prejuízo econômico que sofresse o marido da vítima (PRADO, 1991).

Conforme o livro de Êxodo (cap. 21, v. 22-25):

Se alguns homens pelejarem, e um ferir uma mulher grávida, e for causa de que aborte, porém não havendo outro dano, certamente será multado, conforme o que lhe impuser o marido da mulher, e julgarem os juízes. Mas se houver morte, então darás vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé,queimadura por queimadura, ferida por ferida, golpe por golpe.

Vislumbra-se de tal contexto histórico que a punição para quem praticasse o aborto tinha um caráter compensatório, indenizatório à figura masculina, que poderia ser o pai ou o marido da gestante:

[...] A mulher era considerada durante toda sua vida como um ser

enquadrado em minoridade. Não tinha autonomia sobre si, vivendo sob a tutela do pai, do esposo e, na falta desses do Estado. Os filhos eram considerados propriedade do pai, que tinha direito de vida e morte sobre eles. (VERARDO, 1987, p. 80).

Na Grécia Antiga, a questão também era objeto de debates e análises pelos filósofos: “Hipócrates negava o direito ao aborto e exigia aos médicos jurar não dar as mulheres bebidas fatais para a criança no seu ventre.” (WIKIPEDIA, 2016, grifo nosso).

Por outro lado, Aristóteles via a prática com outros olhos, pois a compreendia como um método eficiente para a conquista da estabilidade da população grega. De acordo com o ensinamento de Verardo (1987, p. 80), também adotaram posição favorável ao tema os filósofos Sócrates e Platão:

Ao que parece Sócrates era a favor de facilitar o aborto quando a mulher o desejasse. Platão prescrevia o aborto às mulheres de mais de 40 anos, como condição de contenção do aumento populacional, isto é como parte de planejamento da cidade.

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Constata-se, por conseguinte, que em Esparta a situação era vista de forma diferente. Para Verardo (1987) o envolvimento dos espartanos com a defesa militar do território foi principal argumento para a proibição do aborto e afirma que:

Juridicamente, o aborto era proibido, mas o Estado poderia decidir sobre o destino dos nascidos malformados. Estes em geral, eram eliminados. O aumento populacional era importante para a formação de novos exércitos de guerreiros. (VERARDO, 1987, p. 81).

No direito romano antigo o aborto não era visto como um crime, afinal juristas e filósofos não viam o feto como um ser vivo. À época o entendimento firmado era de que:

O feto não tinha autonomia em relação à mulher, era considerado como parte integrante de seu corpo e se ela abortasse nada mais fazia do que dispor de seu próprio corpo. O aborto era uma pratica comum. (VERARDO, 1987, p. 81)

Ocorre que, em um segundo período do direito romano, a prática não era penalizada, mas estava condicionada a aceitação do marido, pois este era possuidor do direito de vida e morte de sua família (VERARDO, 1987):

Se o direito romano não dispunha, nessa época, não dispunha sobre o aborto, sabe-se por outro lado, que essa prática era utilizada como arma de agressão e vingança das esposas contra seus maridos, mesmo correndo o risco de que lhes fosse aplicada a pena de morte (VERARDO, 1987, p. 81).

Além disso, Prado (1991, p. 45) chama a atenção para o fato de o Estado considerar o aborto como um ato indigno contra a moral, buscando defender interesses demográficos e proteger os costumes, promulga medidas em favor da família numerosa:

Apesar da nova legislação e da punição atinente, a interrupção da gravidez com o consentimento do marido era permitida, e em legislações posteriores a mulher foi sempre considerada como sujeito do crime, cabendo ao marido puni-la ou não, considerando-se ele o único prejudicado (PRADO, 1991, p. 46).

Nos Estados Unidos, inicialmente, a prática abortiva intencional era proibida. Os norte-americanos tinham forte influência religiosa sobre o assunto. Por se tratar

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de um país praticante do sistema jurídico caracterizado pelo common-law, essa situação tomou rumos diferentes:

Esta visão contrária ao aborto continuou dominante no cenário estadunidense até meados da década de 60, quando algumas leis legalizando o aborto em certas situações, como em casos de estupro ou incesto foram instituídas. (CHAVES, 2013).

Em 1973, a Suprema Corte Americana manifestou uma opinião sobre a constitucionalidade ou não das leis referentes ao aborto, definindo os parâmetros a serem adotados pelos Estados:

Todavia, devido ao tipo de federação existente neste país, os estados possuem certa autonomia para restringirem a prática do aborto, apesar de não poderem bani-la completamente. (CHAVES, 2013).

Atualmente os Estados Unidos não punem a prática abortiva, sendo considerada legal desde que feita antes do chamado período de viabilidade do feto:

Entretanto, a notável Corte colocou um requisito para que esta prática pudesse ser considerada legal. Este foi que o aborto poderia ser feito a qualquer momento antes do período de viabilidade, momento esse em que o bebê já possui um desenvolvimento biológico suficiente para sobreviver fora do útero materno. Segundo a própria Corte, “O período de viabilidade normalmente começa após sete meses de gravidez (28 semanas), mas ele pode começar mais cedo, algumas vezes tão cedo quanto à 24ª semana de gravidez”. Após esse período, somente é permitido o aborto em casos de perigo à saúde da mãe. (CHAVES, 2013).

No direito alemão, por sua vez, o aborto foi recepcionado de diferentes formas ao longo dos períodos e isso ocorre devido ao sistema jurídico vigente: romano-germânico. Chaves (2013, grifo nosso) enfatiza que “a forma como o aborto é tratado por esse é muito dependente de códigos instituídos pelo poder legislativo”:

[...] durante o nazismo, qualquer tipo de aborto de alemães era duramente punido. Por outro lado, em períodos mais liberais, o aborto, pelo menos em algumas situações, era liberado. (CHAVES, 2013).

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Importante aqui observar que, até meados do século XIX, a Alemanha não possuía um sistema jurídico único, os estados eram independentes naquele território, “O ponto de partida jurídico foi a formação da Alemanha como Estado em 1871” (CHAVES, 2013, grifo nosso).

A legislação atual na Alemanha autoriza o aborto durante o primeiro trimestre gestacional, estando o sistema público de saúde autorizado a praticar o aborto nas mulheres de baixa renda, “desde que elas obrigatoriamente passem por um aconselhamento designado para encorajá-la a ter o bebê” (CHAVES, 2013). Contudo não é necessário que elas justifiquem sua decisão.

1.2. Legislação brasileira

O aborto, desde os primórdios da colonização, não era aceitável devido à forte influência que detinha a doutrina Católica, as práticas abortivas eram condenadas por todos dos religiosos da época, afinal a mulher foi criada e posta para conviver com o homem e juntos eles perpetuassem a espécie.

Nessa época o aborto ia contra o que estabelecia o Estado e a Igreja, na medida em que realizava um controle demográfico. A perseguição ao aborto também tinha outra causa, este poderia ser fruto de uma ligação fora do matrimônio, sendo entendido como um mau fim de uma situação irregular e a prole bastarda feria os interesses mercantilistas da metrópole, como também da Igreja. (REBOUÇAS apud DEL PRIORE, 2010).

Nesse sentido, o aborto no período do Brasil Colônia era considerado uma afronta aos desígnios da mulher, haja vista que seu papel era somente o de reproduzir. Por um viés puramente religioso a maternidade lhe era imposta como forma de tentar redimir-se do pecado original que ela havia cometido e segundo Rebouças (2010, grifo nosso) “a perseguição ao aborto se devia muito mais a sexualidade e aos interesses políticos econômicos do que em prol da vida de uma criança”:

Embora existisse repressão à prática abortiva isso não impedia que as mulheres recorressem a técnicas desumanas para abortar, utilizando-se desde chás e ervas como também se desferindo golpes e introduzindo objetos cortantes em seu

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corpo, “ao tentar livrar-se do fruto indesejado, as mães acabavam por matar-se”. (REBOUÇAS, 2010, grifo nosso).

Uma das primeiras legislações a fazer menção sobre o aborto foi o Código Penal do Império de 1830, mais precisamente elencado no capitulo dos crimes contra a segurança das pessoas e a vida. O legislador tratou do respectivo assunto em apenas dois artigos e instituiu pena para o terceiro que auxilia ou fornece os meios para que essa conduta venha a acontecer, não mencionando punição propriamente a gestante,

[...] Punia somente o realizado por terceiro, com ou sem consentimento da gestante. Criminalizava, na verdade, o aborto consentido e o aborto sofrido, mas não o aborto provocado, ou seja, o auto-aborto. A punição somente era imposta a terceiros que interviessem no abortamento, mas não há gestante, em nenhuma hipótese. O fornecimento de meios abortivos também era punido, mesmo que o aborto não fosse praticado, como uma espécie, digamos, de criminalização dos atos preparatórios. Agravava-se a pena se o sujeito ativo fosse médico, cirurgião ou similar. (BITENCOURT apud FALCÃO, 2016).

Já em 1890, o Código Penal da República faz menção ao auxílio de terceiros e ainda traz a distinção do aborto com ou sem a expulsão do feto, o Estado diferente da antiga legislação agora prevê a punição a gestante que aborta, mas ameniza sua pena caso tenha cometido para ocultar desonra,

O Código Penal de 1890, por sua vez, distinguia o crime de aborto caso houvesse ou não a expulsão do feto, agravando-se se ocorresse a morte da gestante. Esse Código já criminalizava o aborto praticado pela própria gestante. Se o crime tivesse a finalidade de ocultar desonra própria a pena era consideravelmente atenuada. Referido Código autorizava o aborto para salvar a vida da parturiente: nesse caso, punia eventual imperícia do médico ou parteira que, culposamente, causassem a morte da gestante. (BITENCOURT apud FALCÃO, 2016).

Atualmente encontra-se em vigor o Código Penal de 1940 (BRASIL, 1940), fazendo menções explícitas sobre o aborto no capítulo Crimes Contra a Vida, mais precisamente nos artigos 124 a 127 e no artigo 128 a forma permissiva do aborto:

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Art.124 Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque, pena de detenção de um a três anos;

Art.125 Provocar aborto, sem o consentimento da gestante, pena de reclusão de três a dez anos;

Art.126 Provocar aborto com o consentimento da gestante, pena de reclusão de um a quatro anos.

Aplicando se a pena do artigo anterior se a gestante não é maior de quatorze, alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência.

Percebe-se que o atual Código Penal continua prevendo a punição do terceiro que incide na prática abortiva, seja com ou sem o consentimento da mulher grávida, bem como estabelece a sua penalidade. Já o artigo 127 descreve a forma qualificada do ato, como se vê:

Art.127 As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um terço, se, em consequência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém à morte.

Considerando que nem toda a pratica abortiva é antijurídica, há previsão legal daquelas que possuem o devido amparo legal, a saber:

Art.128. Não se pune o aborto praticado por médico:

Aborto necessário

I – Se não há outro meio de salvar a vida gestante;

Aborto no caso de gravidez resultante de estupro

II – Se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de

consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal. (Grifo nosso).

Não é punível o aborto quando este for necessário, visando resguardar a vida da gestante, nesse sentido:

Reconhece, pois, a lei que não se pode exigir que alguém permaneça em situação que expõe a perigo a própria vida, que corra riscos. Inquestionável que legitima é sua defesa, pois seu agir decorre do estado de necessidade. (DIAS, 2004, p. 87).

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O segundo caso é quando se está diante de uma gravidez resultante de outro delito, o estupro. Dias (2004, grifo nosso) destaca que “são situações em que a lei reconhece a inocorrência de ato delituoso, autoriza a preservação de direito próprio, ainda que se sacrifique outro bem jurídico”:

[...] O estupro, crime hediondo, atinge a dignidade e viola a integridade física da mulher. Não cabe impor a quem foi violentada que permaneça em suas entranhas com o que se pode identificar quase como o fruto do crime. (DIAS, 2004, p. 87).

Complementa, ainda, Domingues (2008, p. 73):

A segunda hipótese prevista no Código Penal, também denominada de aborto sentimental, trata de casos de interrupção de gravidez resultante de estupro e fundamenta-se no direito à honra, a integridade física e psíquica da mulher e a segurança social, já que o estupro é delito previsto no Código Penal em seu art.213.

Todavia esse entendimento não é majoritário na sociedade, que através de grupos chamados de pró-vida que defendem arduamente o direito à vida do nascituro, embasados em princípios constitucionais, religiosos e éticos:

Entendo que a Constituição Federal não admitiu a hipótese do aborto sentimental, porque, pela primeira vez faz menção à inviolabilidade do direito à vida e não mais, como nos textos passados, ao respeito aos direitos concernentes à vida. O discurso é direto e claríssimo. (MARTINS, 2008, p.101).

E para finalizar a questão do comparativo do exposto nesse capitulo podemos dizer que a legislação sobre o aborto no mundo passou por diversas transições, seu reflexo encontra-se nas estruturas socioeconômicas e ideológicas de cada período. Com o decorrer do tempo, a mulher foi conquistando seu espaço na sociedade e assim conseguindo resguardar seus direitos.

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2 ÉTICA

Inicialmente este capítulo visa analisar a ética por meio da sua conceituação no decorrer da história, através dos estudos de pensadores clássicos que se dedicaram com afinco na abordagem do tema, perpassando por sua origem, suas modificações até sua conceituação mais atual.

A palavra ética segundo Sánchez (2003, p. 24, grifo nosso) “vem do grego ‘ethos’, que significa analogamente ‘modo de ser’ ou ‘caráter’ enquanto forma de vida também adquirida ou conquistada pelo homem.”

Ou ainda, conforme o Dicionário Michaelis (2017), ética é:

Ramo da filosofia que tem por objetivo refletir sobre a essência dos princípios, valores e problemas fundamentais da moral, tais como a finalidade e o sentido da vida humana, a natureza do bem e do mal, os fundamentos da obrigação e do dever, tendo como base as normas consideradas universalmente válidas e que norteiam o comportamento humano.

Dessa forma, entende-se que “a ética pode ser o estudo das ações ou dos costumes, e pode ser a própria realização de um tipo de comportamento.” (VALLS, 1994, p. 7). Ou seja, a ética fornece princípios que visam orientar racionalmente o agir humano, sem imposição coercitiva de conduta, mas sim como uma forma de orientação do indivíduo que “não prescreve conteúdo, não diz o que concretamente, ele tem de fazer em cada situação que se depara” (CENCI, 2001, p. 44, grifo nosso).

Ainda nesse sentido, salienta Cenci (2001, p. 47):

A ética requer uma postura de autonomia por parte do indivíduo, exigindo que ele se justifique de forma convincente, isto é, com boas razões, seu agir diante dos outros. [...] enquanto reflexão crítica

acerca de princípios e formas de vida, a ética visa,

fundamentalmente, formar indivíduos autônomos, livres, racionais, capazes de justificarem por si próprios e com boas razões seu agir.

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Podemos dizer que a ética serve como instrumento de equilíbrio entre os diferentes ocupantes da sociedade, visando o bom funcionamento social, podendo ser equiparada como forma de justiça social:

[...] que lida com a compreensão das noções e dos princípios que sustentam as bases da moralidade social e da vida individual. Em outras palavras, trata-se de uma reflexão sobre o valor das ações sociais consideradas tanto no âmbito coletivo como no âmbito individual. (RIBEIRO, 2017).

Assim, percebe-se que a ética busca fundamentar um melhor modo de conviver, estudando a conduta humana, para fornecer aos indivíduos subsídios para uma possível resolução de suas contendas:

Uma boa teoria ética deveria atender à pretensão de universalidade, ainda que simultaneamente capaz de explicar as variações de comportamentos, características das diferentes formações culturais e históricas. (VALLS, 1994, p. 16).

Na atualidade muito se fala em ética. Isso, porém, não significa que exista clareza sobre seu real sentido, o que ocasiona diversas confusões, pois normalmente emprega-se a expressão ética a contextos relacionados a uma questão de moral.

Tal situação acaba implicando dar sentido diverso do correto, induzindo a erro ou talvez de forma mais grave resultando numa modificação conceitual, uma vez que a ética e a moral possuem uma estreita relação.

Afinal, a ética preocupa-se em estudar as experiências vivenciadas pela moral, suas normas e a aplicabilidade delas no decorrer dos dias, segundo Sánchez (2003, p. 22):

A ética não cria moral, conquanto seja certo que toda moral supõe determinados princípios, normas ou regras de comportamento, não é a ética que os estabelece em determinada comunidade.

Por fim, pode-se dizer que estudar ética é buscar uma reflexão teórica sobre o homem em suas diversas formas, costumes e ações, que vem passando por

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muitas modificações em sua conceptualização desde os primórdios da humanidade, como passaremos a expor de forma sucinta fazendo um apanhado histórico que vai desde a antiguidade até os pensadores mais contemporâneos.

2.1 Apontamentos históricos

Os primeiros passos de estudo dessa ciência ocorreram na Grécia, no chamado de período áureo do pensamento, com a colaboração de filósofos que teceram teorias e definições que têm enquadramento até hoje.

Assim, “a reflexão grega neste campo surgiu como uma pesquisa sobre a

natureza do bem moral, na busca de um princípio absoluto de conduta” (VALLS,

1994, p. 24, grifo nosso).

Sócrates nasceu em Atenas por volta do ano de 470 a.C. e ficou conhecido por conduzir a transformação do pensamento grego, pois até então os filósofos preocupavam-se em explicar a origem do universo baseados na observação das forças da natureza – “com Sócrates o ser humano voltou-se para si mesmo [...] a preocupação de Sócrates era levar as pessoas, por meio do autoconhecimento, à sabedoria e à prática do bem” (FERRARI, 2008, grifo nosso).

Seus ensinamentos eram praticados em forma de diálogos, em locais públicos: “Sócrates considerava muito importante o contato direto com os interlocutores, o que é uma das possíveis razões para o fato de não ter deixado nenhum texto escrito” (FERRARI, 2008, grifo nosso).

E seus ensinamentos fascinavam aos que lhe ouviam, suas ideias e pensamentos passaram a compor as obras de alguns de seus discípulos, como Platão.

Sócrates pregava a importância do cuidado com a perfeição da alma acima de qualquer outra coisa, e segundo CENCI (2001, p. 16), é ela quem distingue o homem dos demais seres, pois a essência do homem está na alma, é a virtude

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quem a expressa, cultivar a virtude torna a alma boa, pois virtude é conhecimento e o vício ignorância.

Resumindo, para Sócrates, bondade, conhecimento e felicidade se entrelaçam estreitamente. O homem age retamente quando conhece o bem e, conhecendo-o, não pode deixar de pratica-lo; por outro lado, aspirando ao bem, sente-se dono de si mesmo e, por conseguinte, é feliz. (VAZQUEZ, 1997 p.231 apud EGG, [s.d.], p. 6).

Ou seja, Sócrates enfatiza a importância ao conhecimento para que assim possa-se agir moralmente bem, pois o homem só agiria mal por ignorância, por desconhecimento da virtude, pois o mais valioso dos bens do homem está na alma, “trata-se de uma ética intelectualista na qual a virtude se identifica com o conhecimento” (CENCI, 2001, p. 17, grifo nosso).

Sócrates, através de seus ensinamentos, revoluciona os valores daquela época, e acaba sendo acusado de corromper as pessoas, sendo assim condenado a cometer suicídio, ingerindo um composto de ervas, falecendo em 399 a.C.

Seus ensinamentos então passam a ser trabalhados em forma de diálogo nas obras do filosofo Platão (427-347 a.C.), que, assim como seu mestre, parte da ideia de que todos os homens buscam a felicidade, os gregos apontavam a busca da felicidade como centro da ética, “os homens deveriam procurar, então, durante esta vida, a contemplação das ideias, e principalmente da ideia mais importante, a ideia de bem” (VALLS, 1994, p. 24, grifo nosso).

Platão deixa claro em sua Teoria das Ideias que existem dois mundos, de acordo com Egg ([s.d.], p. 7):

Ao contrário do se pode pensar, o mundo das Ideias, de Platão, é o lugar das coisas verdadeiras enquanto o mundo real é o lugar onde

reinam as aparências e as sombras

Pois, para o filósofo, a verdadeira realidade está no mundo das ideias e só pode ser alcançada através da razão.

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A filosofia platônica faz a distinção entre o corpo e a alma, acreditando que a alma é imortal e aguarda a felicidade, mas, que enquanto a morte não chegar, o homem deve buscar sempre o bem para que a virtude o conduza à purificação e assim o levem a contemplar o Sumo Bem.

Assim, o que mais caracteriza a ética platônica é a ideia do Sumo Bem, da vida divina, da equivalência de contemplação filosófica e virtude, e da virtude como ordem universal. A distância entre as virtudes intelectuais e morais é pequena, pois a vida prática se assemelha muito à teórica. (VALLS, 1994, p. 28).

Nessa senda, podemos dizer que uma vida ética, segundo a concepção platônica, está atrelada ao conhecimento, pois o homem sábio é virtuoso, e assim consegue estabelecer a ordem, a harmonia e o equilíbrio em sua vida; que é através do uso reto da razão que o homem alcança os verdadeiros valores a serem seguidos.

Nesse sentido, a ética platônica ocupa-se com o correto modo de agir visando o alcance do Sumo Bem, pois quando o homem busca o bem em si mesmo, a virtude o conduz ao bem individual e coletivo.

O sábio faz penetrar em sua vida e em seu ser a harmonia que vem do habito de submeter-se á razão. Dialética e virtude devem andar juntas, pois a dialética é o caminho da contemplação das ideias e a virtude é esta adequação da vida pessoal às ideias supremas. (VALLS, 1994, p. 26).

Já o aprendiz de Platão, também filósofo grego, Aristóteles (384-322 a. C) tinha uma observação mais empírica que de seu mestre, definido a ética como um saber prático, uma filosofia das coisas humanas.

Sendo o Bem a forma precisa para o alcance da felicidade, o mais alto bem a ser alcançado, último e perfeito, consoante VALLS (1994, p. 29):

É nesse sentido que podemos dizer que a ética aristotélica é finalista e eudemonista, quer dizer, marcada pelos fins que devem ser alcançados para que o homem atinja a felicidade (eudaimonía)

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Essa concepção de bem como objetivo fim se torna ainda mais clara quando Aristóteles escreve as primeiras linhas ao estudo da ética no livro Ética a Nicômaco que: “toda arte, toda a investigação e igualmente toda a ação e escolha tendem a algum bem, por isso foi dito acertadamente que o bem é aquilo ao qual todas as coisas tendem” (apud PEGORARO, 2006, p. 37, grifo nosso).

Ou seja, o bem está posto como uma meta a ser alcançada, do início ao fim, é tudo que se almeja atingir:

A felicidade, no sentido aristotélico, é entendida como sendo o maior bem do homem e é identificada como a arte do viver bem e de fazer o bem. Neste sentido, ela é o único fim que não visa a outro. A felicidade é “valiosa” e deve ser considerada como a maior virtude que desperta o humano para a arte do viver bem e com sabedoria. (SILVA, 2013, p. 76).

No entanto, para que seja possível alcançar a felicidade, o homem, como um ser político, social, deve utilizar-se da razão para alcançar as virtudes éticas, desviando-se dos impulsos e das paixões, mantendo o controle sobre elas.

Para que isso seja possível, ele deve agir com equilíbrio, pois “ele não pode apenas viver, mas ele precisa viver racionalmente, isto é, viver de acordo com a razão”. (VALLS, 1994, p. 30).

Nesse sentido, nos ensina Cenci (2001 p. 30-31):

Dessa maneira, sempre devemos agir de acordo com a razão prudencial, ou seja, escolhendo os meios adequados, moralmente legítimos, para alcançar a felicidade. Concebendo-se, assim, o agir moral identificado com o agir racional, tem-se que prudente não é aquele que faz escolhas pensando apenas no presente ou em determinadas circunstâncias, mas o que procede escolhendo o que lhe convém para o conjunto de sua vida.

Sendo assim, a virtude para Aristóteles não está inserida no homem desde seu nascimento; ela advém da pratica diária, e é necessário que se tenha bons hábitos e que os exercite diariamente, pois quanto mais ele praticar melhor se tornará, isso se comprova nas palavras do próprio Aristóteles quando diz que

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A virtude é um habito adquirido, voluntário, deliberado, que consiste no justo meio em relação a nós, tal como o determinaria o bom juízo de um varão prudente e sensato, julgando conforme a reta razão e a experiência. (apud VALLS, 1994, p. 33).

Na ótica aristotélica, a ética é uma virtude, desperta o viver com sabedoria, e para que seja possível alcançar esse estágio o homem precisa exercer o autocontrole com relação aos seus sentimentos, ações ou atitudes, aplicando o meio termo, a justa medida, pois é necessário que se abstenha dos extremos, pois o equilíbrio está entre o vício do excesso e da escassez:

O meio-termo, a justa medida, não é algo dado em si, que se possa conhecer antes de avaliar as circunstâncias do agir, mas algo que se tem de considerar a partir das diferentes situações em jogo para, então, poder ser estabelecido na ação. (CENCI, 2001, p. 43).

Sendo assim, a virtude está atrelada ao caráter de cada indivíduo que deve buscar a medianeidade, através de suas ações, “a ética não parte da ideia de bem ou conceitos abstratos, mas, sim, do fático, do agir humano, que é contingente” (CENCI, 2001, p. 44). Ou seja, quanto mais ético e virtuoso for o seu pensar e agir, mais próximo estará da felicidade, pois é esse o bem máximo almejado por todos.

2.2 Visão contemporânea: alguns autores

No chamado período contemporâneo, após significativas transformações de diferentes ordens, como social, econômica e política e das marcantes evoluções filosóficas, eis que surge a necessidade da ética ser idealizada sob novos paradigmas diante dos diversos desdobramentos acerca de uma visão moral.

A ética contemporânea, diante desta marcante fase passa a reavaliar os comportamentos e os princípios,

[...] que a ética, libertada de seus pressupostos teológicos, seja

antropocêntrica, isto é, tenha seu centro e fundamento no homem,

embora este ainda se conceba de uma maneira abstrata, dotado de uma natureza universal e imutável. (SÁNCHEZ, 2003, p. 280).

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Considerado um dos propulsores dessa expressiva mudança da concepção ética, o filósofo prussiano Immanuel Kant entendeu que “o progresso material, cultural e científico não pode acontecer sem o progresso da moral” (PEGORARO, 2006, p. 101, grifo nosso).

Kant almejava uma ética de validade universal, firmada na igualdade fundamental entre os homens, pois sua filosofia baseava-se em encontrar no próprio homem o conhecimento verdadeiro e o agir livre.

A ética kantiana tem como base o dever, expressado através de formulações de imperativo categórico, na qual uma tornou-se clássica pelo seguinte termo “age de tal modo que a máxima da tua vontade possa valer sempre ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal” (VALLS, 2004, p. 169, grifo nosso).

Para que se possa ter uma maior compreensão do pensamento kantiano é necessário que entendamos que ele também distingue o mundo em sensível e inteligível, sendo o primeiro deles aquele que se compõe das coisas naturais, das experiências vivenciadas pelo indivíduo, que está sob os regimentos físicos e biológicos, que considera sem liberdade.

E no mundo inteligível o homem tem liberdade, “a razão humana tem a propriedade de determinar-se a agir independente das causas empíricas, isto é, o homem toma consciência de outra causalidade que é a causalidade da liberdade” (apud PEGORARO, 2006, p. 102, grifo nosso).

Segundo Pegoraro (2006), o homem perpassa por esses dois mundos, quando por sua parte biológica está sujeito à variedade de suas inclinações, quando se utiliza da razão, vontade e da liberdade, adentra no mundo inteligível onde é causa de sua lei moral, pode-se dizer então que a ética kantiana é dualista.

Todavia, diferente do da concepção de harmonia proposta por Aristóteles, Kant por sua vez encerra a moral no reino da razão pratica livre, se a moral é a racionalidade do sujeito, este deve agir de acordo com o dever e somente por respeito ao dever, sem esperar recompensas ou finalidades.

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Em outros termos, a liberdade de agir moralmente está condicionada a se sobrepor a sua parte sensível, ainda que isso seja visto como uma obrigação, uma coação da parte racional, a vontade verdadeiramente boa deve agir sempre conforme o dever e por respeito ao dever, “se o homem age por puro respeito ao dever e não obedece a outra lei a não ser a que lhe dita a sua consciência moral, é como ser racional puro ou pessoa moral, legislador de si mesmo” (SÁNCHEZ, 2003, p. 283, grifo nosso).

Percebe-se que o imperativo categórico de Kant é mandamento de ordem universal sem conteúdos concretos, pois não visa obter uma finalidade prática, referem-se a todos os homens em todo o tempo, pois o homem é um ser livre e autônomo e como tal deve buscar realizar o que ele tem como melhor, mais racional, refletindo sobre essa máxima e se questionando se ela é digna de ser universalizada.

De acordo com Cortella, o agir moralmente de Kant sugere algo especial:

Ele diz que tudo o que não se puder contar como fez, não se deve fazer. Porque, se há razões para não poder contar, essas são as mesmas razões para não fazer. E não estou falando de sigilo, estou falando de vergonha. Pois existem coisas que não podem ser contadas porque pertencem ao terreno da privacidade, do sigilo. Mas há aquelas que não podemos contar porque nos envergonham nos diminuem. (CORTELLA; BARROS FILHO, 2014, p. 20).

Percebe-se que Kant deixou claro que o homem é responsável pelos seus atos, pois deve tomar consciência do seu dever moral consigo e com seus semelhantes, “isto é um eco bem forte categórico enunciado na forma de respeito a própria pessoa, bem como à humanidade, tratando-a como um fim em si e nunca como um meio” (PEGORARO, 2006, p. 109). Evidencia-se que a moral é inseparável da atividade prática do homem.

O imperativo categórico de Kant é referencial de toda sua filosofia moral, o que ocasionou que sua filosofia fosse apreciada ou até mesmo criticada por alguns,

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pois se acredita que não seja humanamente possível exercer a reflexão continua sob cada novo agir:

Os críticos de Kant costumam dizer que ele teria as mãos limpas, se tivesse mãos, ou seja, que desta maneira é concretamente impossível agir. Impossível agir refletindo a cada vez, aplicando ao caso concreto a fórmula do imperativo categórico. Seria querer começar, a cada vez, tudo de novo, seria supor em si uma consciência moral tão pura e racional que nem existe, e seria reforçar, na prática, o individualismo. A outra crítica, complementar a esta, é a de que não se pode ignorar a história, as tradições éticas de um povo, etc., sem cair numa ética totalmente abstrata. (VALLS, 1994, p. 21).

A ética Kantiana revoluciona o pensamento filosófico a partir de sua obra, nos mostrando que não será mais possível discorrer sobre ética sem mencionar os preceitos do imperativo categórico, que concede ao homem a opção de agir conforme a sua consciência racional sempre buscando realizar aquilo que entende ser o mais correto a ser fazer, baseado em uma lei natural universal.

Peter Singer, pensador contemporâneo, trabalha os preceitos éticos de forma muito abrangente, ele escreve sobre a questão da ética prática, sua aplicabilidade nos mais diferentes meios, abordando o tratamento dados às minorias étnicas, a igualdade para mulheres, debatendo assuntos polêmicos como aborto e eutanásia.

Singer (2002) utiliza de forma indiferente às palavras ética e moral, reconhecendo que para algumas pessoas a moral encontra se em desuso, sendo vista como um sistema de proibições dos mais diferentes tipos.

Às vezes, as pessoas acreditam que a ética é inaplicável ao mundo real, pois imaginam que a ética seja um sistema de normas simples e breves, do tipo “não minta”, “não roube” e “não mate”. Não surpreende que os que se atêm a esse modelo de ética também acreditem que ela não se ajusta as complexidades da vida. (SINGER, 2002, p. 10).

Uma ética que se preocupa apenas com uma nobreza teórica, mas que na prática não pode ser aproveitável não é algo ideal, pois segundo Singer (2002, p.10, grifo nosso) “um juízo ético que não é bom na prática deve ressentir-se também de um defeito teórico, pois a questão fundamental dos juízos éticos é orientar a prática.”

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Mas de que forma podemos concluir que um agir está ou não sendo pautado pelos valores éticos? O que é viver sob padrões éticos? Singer para nos responder a essa pergunta nos remete a analisar a vida de diferentes povos, toda a sua cultura, seus costumes e assim embora pratiquem algo que não seja aceito pelos preceitos éticos convencionais, eles estariam ainda assim vivendo de acordo com o padrão ético, pois de alguma forma acreditam que seu agir esta correto.

Ou seja, viver de acordo com padrões ético é defender o modo como se vive, com uma razão de ser e podendo justifica-lo:

Podemos achar a justificativa inadequada e sustentar que as ações estão erradas, mas a tentativa de justificação, seja ela bem-sucedida ou não, é suficiente para trazer a conduta da pessoa para a esfera do ético, em oposição ao não ético. Quando por outro lado, as pessoas não conseguem apresentar nenhuma justificativa para o que fazem, podemos rejeitar sua alegação de estarem vivendo de acordo com padrões éticos, mesmo se aquilo que fazem estiver de acordo com princípios morais convencionais. (SINGER, 2002, p. 18).

A justificativa comportamental ética não vem embasada exclusivamente em interesses pessoais, pois uma vez que se detenha apenas ao individual ela não poderá ser aceita, pois a noção de ética se remete a algo muito maior que o particular, “a ética se fundamenta num ponto de vista universal, o que não significa que um juízo ético particular deva ser universalmente aplicável.” (SINGER, 2002, p. 19, grifo nosso).

Pensar a ética a partir de um ponto de vista universal requer que deixamos de aceitar nossos interesses como principais e passamos a ver o interesse do outro como necessário, mas diferente do utilitarismo clássico que buscava as “melhores consequências” essa nova concepção de utilitarismo deve ser vista como uma posição mínima, segundo Singer (2002, p. 22):

Uma base inicial à qual chegamos ao universalizar a tomada de decisões com base no interesse próprio. Se pretendemos pensar eticamente, não podemos nos recusar a dar esse passo. Se vamos nos deixar convencer de que devemos extrapolar o utilitarismo e aceitar princípios ou ideais morais, precisamos dispor de boas razões para dar mais esse passo

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Singer trabalha com o utilitarismo na forma de preferências não se preocupando em maximizar ou minimizar prazeres e dores, mas buscando adequar as ações as preferências daqueles que foram atingidos por elas ou por suas consequências:

O Utilitarismo baseado nos interesses defende que a igualdade é um princípio moral fundamental não um enunciado de fatos. [...]. Assim, aqueles que são dignos de consideração moral não são factualmente iguais, mas seus interesses devam ser igualmente considerados independentemente das características ou classe a que os afetados pertençam ou até mesmo da espécie. (SOUZA, 2012).

Enfim, ao se adotar o entendimento acima dito por Singer, percebe-se que a mulher tem direito ao aborto, pois esta é uma opção ética sua que surge de modo utilitário – e também porque a mulher possui interesses próprios, pois sendo o feto parte de seu corpo, ela que, por interesse próprio, eticamente melhor decida sobre seu próprio corpo.

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3 ABORTO: O ÉTICO E O JURÍDICO

O aborto é um caso típico de divergência quanto aos posicionamentos éticos a respeito do assunto, para alguns se trata do incontestável direito a vida, para outros é uma questão de direito das mulheres com relação ao seu corpo.

Portanto, falar sobre a moralidade e a legalidade do aborto não é tarefa fácil, pois engloba uma série de fatores como religião, cultura, condições econômicas, entre outros.

Possivelmente que umas das dificuldades em tratar da temática do aborto se dá ao passo que praticamente todos nós conhecemos alguém que é defensor extremista da vida e assim considera a prática do aborto totalmente inadmissível: são os chamados de pró-vida, e seus argumentos em defesa da vida abarcam diferentes teses, desde as religiosas até as que afirmam que o feto é possuidor de direitos e aceitar o aborto é algo imoral.

Por outra via, existem aqueles que consideram o aborto moralmente admissível, considerando-o como um legítimo exercício da liberdade humana e do direito da mulher sobre seu próprio corpo – são os defensores do pró-escolha.

3.1 Análise crítica do aborto sob a perspectiva ética

Desde os primórdios da filosofia ética ou moral se debate a respeito de conceitos sobre o que é certo ou errado, moral ou imoral, principalmente quando envolve assuntos relacionados à proteção da vida – e discutir sobre aborto é um dos pontos mais fortes dessa questão, as respostas sobre a moralidade do aborto e seus efeitos nas mulheres parecem não alcançar uma resposta satisfatória.

Sobre o debate, disserta Kaczor (2014, p. 15):

[...]. Enquanto as pessoas têm a mente aberta a respeito do aborto ou de qualquer outro tema, faz sentido falar dele.

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Um enfoque assim aberto é essencial para a vida da mente. Pertence à realização humana buscar lucidez, perspectiva e esclarecimento onde quer que se encontre. Isso implica que a partir do exame mais avançado dos argumentos, da compreensão mais profunda das implicações e da investigação mais ampla da evidência alguém pode mudar seu pensamento.

Desta forma, o aborto é um tema sempre de grande fluxo quando em debate pela opinião pública, e sem dúvida muitas pessoas migraram da posição “pró-vida” à posição “pró-escolha” – e vice-versa – em diversas ocasiões.

Isto é o aborto não é um assunto encerrado, senão em debate público caloroso até os dias atuais. Outrossim, não só o debate, mas também discutir a ética em si do aborto é importante.

Sobre a ética do aborto, inúmeras questões despontam, dentre as quais, para início de debate, é de que em instante o ser humano pode ser definido como pessoa. Acerca disso, diz Kaczor (2014, p. 28):

Se todas essas tentativas de distinguir meros humanos de pessoas falham, o que é que Tooley oferece em seu lugar? Tooley chega a este princípio fundamental: que tem direito à vida um organismo que se compreende a si mesmo como sujeito contínuo de experiência (1972, p. 62). Em apoio a Tooley e repescando uma definição de pessoa sugerida por John Locke, Singer define uma pessoa como um “ser consciente de que sua experiência e capaz de ter desejos e planos para o futuro” (1994, p. 218). Esta definição de pessoa surgida de Locke (1996, p. 138) e ampliada por Singer tem vários elementos; um ser é pessoa se e somente se tem: (1) consciência de sua própria existência, (2) ao longo do tempo e em diversos lugares e (3) a capacidade de ter desejos e (4) planos para o futuro.

Assim, ser humano não é, necessariamente e intrinsecamente, considerado pessoa – sendo aqui irrelevante a discussão sobre a potencialidade do ser humano poder vir a ser pessoa –, e haveria alguns elementos para o ser humano começar a ser definido como pessoa, logo sujeito de direitos.

Outrossim, ainda é feita uma distinção entre seres humanos e pessoas. Assim aduz Kaczor (2014, p. 45-46) ao reproduzir outros entendimentos consolidados sobre a temática:

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Primeiro: pessoas têm consciência de objetos e eventos, externos ou internos a elas mesmas, em particular a capacidade de sentir dor (WARREN, 1973, p. 163). Seres humanos a quem falta essa capacidade de consciência, particularmente aqueles a quem falta a faculdade de sentir dor, não são pessoas. Segundo: as pessoas podem raciocinar, têm desenvolvida a faculdade de resolver problemas novos e relativamente complexos (ibid.). Pessoas potenciais, de outra parte, não podem funcionar desse modo. Terceiro: pessoas têm atividade automotivada, isto é, “atividades relativamente independente de controle genético ou externo” (ibid.). Pessoas potenciais não sabem se controlar no grau requerido. Quarto. Pessoas possuem a capacidade de se comunicar por quaisquer meios, em mensagens de uma variedade indefinida de tipos, isto é, “não apenas com número indefinido de conteúdos

possíveis, mas a respeito de um conjunto indefinido de tópicos”

(ibid.). Pessoas potenciais só podem se comunicar muito pouco, ou às vezes simplesmente nada. Finalmente, quinto: pessoas têm “presentes autoconsciência e autopercepção individual, racial ou ambas” (ibid.). Ao meros seres humanos faltam tais predicados. O último critério de personalidade não difere significativamente daquele que Tooley ofereceu no capítulo anterior, mas outros critérios são novos.

Desta maneira, havendo nítida distinção sobre as diferenças entre meros seres humanos e pessoas dotadas de autopercepção e autoconsciência, então nada mais ético do que a possibilidade moral de a mulher ter o direito de decidir sobre o que fazer com o seu corpo – no caso em tela, sobre o feto, já que por mais que possa ser um ser humano, ele não é pessoa, portanto passível de aborto.

Para tal entendimento, é necessário se socorrer da compreensão do que seria pessoalidade. Uma breve definição, porém precisa e certeira, pode ser encontrada em Kaczor (2014, p. 60):

As características mais salientes e frequentemente mencionadas que parecem revelar a pessoalidade depois da concepção e antes do nascimento incluem desejos e anseios conscientes, habilidade, o

começo da movimentação, a capacidade de se mover

espontaneamente, a capacidade de sentir, forma humana reconhecível, formação do cérebro, implantação do embrião no útero.

Antes que as características determinantes – sejam quais forem –

estejam presentes, o aborto seria plenamente lícito. Desde que estejam presentes, o aborto será morte de um ser com valor moral – e inadmissível. É importante então entender a relação entre essas características.

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Não somente as características do que seria pessoalidade, senão também é necessário saber quando esta começa – quando esta surge, nasce. Para tanto, entende Kaczor (2014, p. 101) que a vida humana não começa somente na concepção, corrente esta defendida por muitos cientistas de posição “pró-vida” (que usam a concepção como início de vida para deslegitimar o aborto):

A ciência contemporânea também sustenta a possibilidade de a vida humana começar por meio de clonagem. De fato, o nascimento de um ser humano trazido à existência ser fertilização de óvulo por esperma foi anunciado em 26 de dezembro de 2002. Nesse dia foi enviado a todas as redes maiores de notícias o relato de uma mulher apoiada pelo culto raeliano (que crê que a vida humana proveio de clonagem de alienígenas) que tinha dado à luz o primeiro ser humano clonado, uma menininha chamada “Eva”. Ao tempo em que escrevo, essa alegação tem que ser confirmada por fonte independente, mas certamente pode ser que alguém, algures, em algum dia futuro, dê a luz uma criança clonada. Mesmo antes que isso ocorra, o fenômeno da clonagem natural conhecida como geminação monozigótica (um embrião humano se dividir e dar origem a gêmeos idênticos) mostra que ao menos alguns seres humanos não começam a existir na concepção. Assim, a questão em pauta aqui não é se todos os seres humanos começam a existir na concepção (certamente nem todos), mas antes se alguns seres humanos, na realidade a ampla maioria, o comum deles, começam a existir na concepção.

Considerando que a concepção não pode ser o único ponto de partida para a existência do ser humano – e após o parto, o começo da consolidação do ser humano como pessoa –, Lee (1996 apud KACZOR, 2014, p. 101) aponta:

A formação, a maturação e o encontro de células sexuais masculinas e femininas são preliminares de sua união atual, numa célula combinada ou zigoto, que definitivamente marca o início de novo indivíduo. Essa penetração do óvulo pelo espermatozoide e o (sic) se juntarem e combinarem seus respectivos núcleos constitui o processo da fertilização (AREY, p. 55).

Zigoto. Essa célula é o começo de um ser humano; resulta da fertilização de um óvulo pelo esperma. A expressão “óvulo fertilizado” se refere ao zigoto (MOORE, 1987, p. 9).

A vida embrional começa com a fertilização e daqui o começo daquele processo se poder tomar como ponto de partida do estágio I (LARSEN, 1993, p. 19).

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Destarte, o ser humano começa a existir depois da concepção, e somente se torna pessoa após o parto – logo o aborto é moralmente lícito -, e este apontamento é feito por Kaczor (2014, p. 130) ao entender que pessoas tem direitos, ao contrário de fetos, que não os possuem:

Uma vez que virtualmente cada célula viva do organismo humano é geneticamente completa, viva e humana, a visão pró-vida pareceria exigir que todo tipo de “matar” células humanas equivalesse a matar uma pessoa humana (RUBENFELD, 1991, p. 621-626; HARRIS HOLM, 2003, p. 120). Afora gametas, todas as células do corpo humano são geneticamente completas e poderiam se desenvolver em embriões por meio de clonagem. Assim, apoiar a pessoalidade na mera completude genética exclui não só o aborto nem só a contracepção, mas o “matar” toda célula humana, qualquer que seja.

Assim sendo, não interessa exatamente qual o caminho lógico e ético a ser percorrido, uma vez que todos estes caminhos, independente do ponto de partida, convergem para o entendimento que, moralmente, o aborto é lícito e possível.

Visando encerrar o tópico – por enquanto –, é necessário ainda falar um pouco acerca de se, eticamente, é ruim abortar alguém. Conforme Kaczor (2014, p. 159):

Contudo, tem-se que levar em conta o fardo de se tornar mãe (diferente de simplesmente estar grávida) como parte da avaliação, e essa é talvez a razão mais significativa, outras não o querem ser de novo, com esse parceiro, nesse momento da vida. Como se tornar mãe é uma mudança incrivelmente significativa na identidade prática da mulher, sobre a qual ela deveria poder exercer o controle, o aborto é moralmente admissível ou ao menos não é indecente (LITTLE, 2003, p. 320-321 apud Kaczor, 2014, p. 159).

Para lidar com essa objeção tem-se que distinguir três aspectos da paternidade-maternidade: o sentido social (criar ou socializar e aculturar a criança após o nascimento), o genético (contribuir com sêmen ou óvulos para a concepção) e o gestacional (portar um ser humano em desenvolvimento). Se o feto humano é pessoa, então a grávida já é mãe em dois sentidos, gestacional, e fora do caso da fertilização in vitro, também geneticamente. Assim, a mulher grávida já é mãe pelo menos nos sentidos genético e gestacional. Resta-lhe optar se quer ou não tornar-se mãe, mas, como o infanticídio, dá-lhe a opção de não continuar mãe nos sentidos biológicos e gestacional.

Pode-se concluir, então, que abortar alguém é moralmente admissível, até porque mesmo se o feto tivesse pessoalidade, ele não seria considerado pessoa por

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completo, uma vez que lhe faltam todas as dimensões completas de a mãe do feto poder ser considerada mãe [dimensões estas, a saber: social, genético e gestacional – a mãe do feto não o é no sentido social].

Enfim, ainda é necessário se discutir sobre se também é moralmente admissível permitir aborto em “casos difíceis”. Segundo Kaczor (2014, p. 195), se o feto é ser humano, mas não pessoa, e deliberadamente não é indecente à grávida abortar, tão o mais é nas situações consideradas difíceis:

Embora haja “casos difíceis” tanto para quem apoia como para quem rejeita o aborto, a expressão “casos difíceis” a respeito do aborto em certo sentido é inadequada. Aborto não se escolhe [ao menos normalmente] como algo positivo, assim como o alimento ou o lazer. Na ampla maioria dos casos, o aborto é levado adiante com pesar, como o último recurso, a que não se teria recorrido em outras circunstâncias. Creio que isso se deve ao reconhecimento implícito – mesmo de quem se submete e o perfaz – de que o aborto termina a vida de um ser humano inocente e é moralmente questionável.

Então, por mais que o aborto seja encarado pela ora grávida – e as pessoas que a acompanham – com um certo pesar [de fato, é um difícil encargo a ser decidido], não haveria razões para que esta se sentisse envergonhada de tomar uma decisão que é admissível moralmente e eticamente – e é nada indecente.

Por fim, não existe aqui a pretensão de esgotar os argumentos que decaem as alegações da posição “pró-vida”, contudo cabe demonstrar alguns dos argumentos da posição “pró-escolha” que fornecem subsídio – tanto pela psicologia, quanto pela biológica, assim como pela ética, bem como pela estrita racionalidade – para evidenciar a lícita moralidade das práticas abortivas.

3.2 Análise crítica do aborto sob a perspectiva jurídica

Se a filosofia, e os ensaios sobre a ética, contemplam e abordam a vida, então não poderia ser diferente quando estas questões chegam aos tribunais, seja de que jurisdição for.

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Em que pese o debate público sobre a moralidade e a legalização do aborto ainda ser considerado incipiente aqui no Brasil, em outros lugares ele é realmente bem mais desenvolvido – em especial, nos Estados Unidos da América do Norte.

Sobre o aborto em perspectiva de Filosofia do Direito enquanto discussão ética, Dworkin (2016, p. 143) a defende e põe em evidência o embate entre o direito à vida e os direitos da mulher sobre sua vida e seu corpo:

As leis que proíbem o aborto, ou que o tornam mais difícil e caro para as mulheres que desejam fazê-lo, privam as mulheres grávidas de uma liberdade ou oportunidade que é crucial para muitas delas. Uma mulher forçada a ter uma criança que não deseja porque não pode fazer um aborto seguro pouco depois de ter engravidado não é dona de seu próprio corpo, pois a lei lhe impõe uma espécie de escravidão. Além do mais, isso é só o começo. Para muitas mulheres, ter filhos indesejáveis significa a destruição de suas próprias vidas, porque elas próprias não deixaram ainda de ser crianças, porque não mais poderão trabalhar, estudar ou viver de acordo com o que consideram importante, ou porque não têm condições financeiras de manter os filhos. (Sem dúvida, esses diferentes tipos de prejuízo serão multiplicados e intensificados se na origem da gravidez estiver um incesto ou um estupro, ou se a criança nascer com graves deficiências físicas ou mentais.) A adoção, mesmo quando possível, não põe fim a esses prejuízos, pois muitas mulheres passariam por um grande sofrimento emocional durante muitos anos se entregassem um filho para que outras pessoas o criassem e amassem. (Uma das mulheres entrevistadas por Carol Gilligan no estudo sobre o aborto que descrevi no capítulo 2 deste

livro – uma enfermeira católica – já havia entregado um filho para

adoção e não se sentia em condições de voltar a fazê-lo mesmo que a alternativa fosse o aborto. “Psicologicamente”, disse ela, “eu não poderia suportar outra adoção. Precisei de quatro anos e meio para superar o trauma da primeira. Simplesmente me recusaria a passar por isso de novo”.)

Portanto, mesmo no caso de possibilidade de parir o nascituro, e pô-lo para adoção, igual sofrimento adviria, seja para a mulher [ao ter que entregar seu filho a outrem, que mal conhece], seja para a criança [que fica inibida de poder se reencontrar com sua mãe biológica] – e, ao ver de Ronald Dworkin, o aborto seria a maneira menos dolorosa para ambos envolvidos.

Enquanto nos Estados Unidos da América do Norte o debate público sobre aborto já fora julgado no case Roe vs Wade de 1973 – quando a Suprema Corte Norte-Americana decidiu pela despenalização do aborto –, no Brasil este debate

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ainda se centra em uma discussão binária entre as posições vida” e “pró-escolha” (nos Estados Unidos, isto seria equivalente a pro-life e pro-choice, respectivamente).

As discussões brasileiras sobre o aborto ainda rondam tão somente a esfera penal – e os árduos defensores da posição “pró-vida” argumentam que a Constituinte de 1988 decidiu no caput do artigo quinto pela “inviolabilidade do direito à vida”.

Entretanto, Domingues (2008, p. 81) dirime que por mais inviolável que seja a vida, ela não é de todo absoluto – afinal, a Constituição Federal de 1988 não disse a partir de qual instante seria vida nem o grau desta inviolabilidade:

Sem embargo do correto entendimento apresentado com relação ao valor atribuído à vida, sobretudo em razão de ser tal direito substrato para a fruição de todos os demais direitos garantidos pela legislação pátria, não parece ser pacífica a sua utilização para fins do presente debate.

Para José Afonso da Silva, os constituintes de 1988, tendo em vista o caráter controvertido do tema aborto e as tensões que envolveram o debate durante a elaboração do texto, optaram por não densificar uma regra capaz de dirimir a questão em grau hierárquico superior (SILVA, 2003):

Segundo esse autor, três tendências guiaram o debate no seio da Assembleia Constituinte. A primeira impunha a garantia do direito à vida desde a concepção, o que implicava a absoluta impossibilidade de descriminalização do aborto. Em sentido inverso, a outra vertente propunha o reconhecimento do estatuto de sujeito a partir do nascimento com vida, cabendo à mulher a responsabilidade da decisão. A terceira entendia que não cabia à Constituição tomar partido sobre a questão. (SILVA, 2003).

Vê-se que, ao final, nenhuma das três posições prevaleceu de forma pura, embora não se possa depreender que o texto constitucional tenha sido de todo omisso sobre o tema, uma vez que deixou margem para interpretações diversas. Em termos práticos, tudo indica que os constituintes deixaram para a legislação ordinária, em especial, a penal, enfrentar o tema, sobretudo após a definição acerca do momento inicial da vida humana. (SILVA, 2003).

Referências

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