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Análise crítica do aborto sob a perspectiva jurídica

Se a filosofia, e os ensaios sobre a ética, contemplam e abordam a vida, então não poderia ser diferente quando estas questões chegam aos tribunais, seja de que jurisdição for.

Em que pese o debate público sobre a moralidade e a legalização do aborto ainda ser considerado incipiente aqui no Brasil, em outros lugares ele é realmente bem mais desenvolvido – em especial, nos Estados Unidos da América do Norte.

Sobre o aborto em perspectiva de Filosofia do Direito enquanto discussão ética, Dworkin (2016, p. 143) a defende e põe em evidência o embate entre o direito à vida e os direitos da mulher sobre sua vida e seu corpo:

As leis que proíbem o aborto, ou que o tornam mais difícil e caro para as mulheres que desejam fazê-lo, privam as mulheres grávidas de uma liberdade ou oportunidade que é crucial para muitas delas. Uma mulher forçada a ter uma criança que não deseja porque não pode fazer um aborto seguro pouco depois de ter engravidado não é dona de seu próprio corpo, pois a lei lhe impõe uma espécie de escravidão. Além do mais, isso é só o começo. Para muitas mulheres, ter filhos indesejáveis significa a destruição de suas próprias vidas, porque elas próprias não deixaram ainda de ser crianças, porque não mais poderão trabalhar, estudar ou viver de acordo com o que consideram importante, ou porque não têm condições financeiras de manter os filhos. (Sem dúvida, esses diferentes tipos de prejuízo serão multiplicados e intensificados se na origem da gravidez estiver um incesto ou um estupro, ou se a criança nascer com graves deficiências físicas ou mentais.) A adoção, mesmo quando possível, não põe fim a esses prejuízos, pois muitas mulheres passariam por um grande sofrimento emocional durante muitos anos se entregassem um filho para que outras pessoas o criassem e amassem. (Uma das mulheres entrevistadas por Carol Gilligan no estudo sobre o aborto que descrevi no capítulo 2 deste

livro – uma enfermeira católica – já havia entregado um filho para

adoção e não se sentia em condições de voltar a fazê-lo mesmo que a alternativa fosse o aborto. “Psicologicamente”, disse ela, “eu não poderia suportar outra adoção. Precisei de quatro anos e meio para superar o trauma da primeira. Simplesmente me recusaria a passar por isso de novo”.)

Portanto, mesmo no caso de possibilidade de parir o nascituro, e pô-lo para adoção, igual sofrimento adviria, seja para a mulher [ao ter que entregar seu filho a outrem, que mal conhece], seja para a criança [que fica inibida de poder se reencontrar com sua mãe biológica] – e, ao ver de Ronald Dworkin, o aborto seria a maneira menos dolorosa para ambos envolvidos.

Enquanto nos Estados Unidos da América do Norte o debate público sobre aborto já fora julgado no case Roe vs Wade de 1973 – quando a Suprema Corte Norte-Americana decidiu pela despenalização do aborto –, no Brasil este debate

ainda se centra em uma discussão binária entre as posições “pró-vida” e “pró- escolha” (nos Estados Unidos, isto seria equivalente a pro-life e pro-choice, respectivamente).

As discussões brasileiras sobre o aborto ainda rondam tão somente a esfera penal – e os árduos defensores da posição “pró-vida” argumentam que a Constituinte de 1988 decidiu no caput do artigo quinto pela “inviolabilidade do direito à vida”.

Entretanto, Domingues (2008, p. 81) dirime que por mais inviolável que seja a vida, ela não é de todo absoluto – afinal, a Constituição Federal de 1988 não disse a partir de qual instante seria vida nem o grau desta inviolabilidade:

Sem embargo do correto entendimento apresentado com relação ao valor atribuído à vida, sobretudo em razão de ser tal direito substrato para a fruição de todos os demais direitos garantidos pela legislação pátria, não parece ser pacífica a sua utilização para fins do presente debate.

Para José Afonso da Silva, os constituintes de 1988, tendo em vista o caráter controvertido do tema aborto e as tensões que envolveram o debate durante a elaboração do texto, optaram por não densificar uma regra capaz de dirimir a questão em grau hierárquico superior (SILVA, 2003):

Segundo esse autor, três tendências guiaram o debate no seio da Assembleia Constituinte. A primeira impunha a garantia do direito à vida desde a concepção, o que implicava a absoluta impossibilidade de descriminalização do aborto. Em sentido inverso, a outra vertente propunha o reconhecimento do estatuto de sujeito a partir do nascimento com vida, cabendo à mulher a responsabilidade da decisão. A terceira entendia que não cabia à Constituição tomar partido sobre a questão. (SILVA, 2003).

Vê-se que, ao final, nenhuma das três posições prevaleceu de forma pura, embora não se possa depreender que o texto constitucional tenha sido de todo omisso sobre o tema, uma vez que deixou margem para interpretações diversas. Em termos práticos, tudo indica que os constituintes deixaram para a legislação ordinária, em especial, a penal, enfrentar o tema, sobretudo após a definição acerca do momento inicial da vida humana. (SILVA, 2003).

Assim sendo, cabe à legislação infraconstitucional decidir sobre a (des)penalização do aborto. E para tal discussão, o primeiro passo é discutir a partir de qual momento o feto passaria a ser considerado pessoa, logo possuidor do direito à vida. Nesta seara, Domingues (2008, p. 82) aprofunda o debate:

[...] Muitos autores, baseados nos conhecimentos biomédicos, identificam o início da vida a partir da concepção, alegando ser o embrião resultante do encontro de células humanas vivas, o que daria a ele a mesma dimensão desde sempre (SOUZA, 2006).

Outra vertente do pensamento, ainda apoiada em critérios eminentemente biológicos, tende a atribuir o início da vida um pouco mais tardiamente, apoiando-se na constatação de que a viabilidade embrionária depende da estreita interação entre mãe e embrião para que a vida deste possa se estabelecer, o que ocorre após a implantação do embrião intra-útero (MOISÉS et al, 2005).

Correntes mais contemporâneas apresentam proposta distinta para determinar o início da vida humana, chegando algumas, no campo da bioética, a defender a tese de que a vida começa a partir da aceitação da mulher que deseja e decide ser mãe, estabelecendo, assim, um diálogo mais próximo com as ciências psicossociais, em particular com a psicanálise (MOISÉS et al, 2005).

[...] Todavia, essa questão permanece em aberto, uma vez que, tecnicamente, o Direito não avalia o início da vida, apenas reconhecendo no embrião a potencialidade de tornar-se humano e, portanto, tutelando os direitos do nascituro, mesmo que reconheça o início da personalidade civil após o nascimento com vida, conforme dispõe o art. 2º do Código Civil Brasileiro. (MOISÉS et al., 2005).

Assim vendo conforme o exposto acima, percebe-se que o Direito é área cuja qual é dotada de autonomia científica – logo, para delimitar a partir de qual instante se dá o fundamental direito à vida, é necessário haver uma estreita comunicação transdisciplinar entre o Direito e as demais áreas do conhecimento humano, notadamente a biologia.

Ademais, esta estreita comunicação certamente deve ser acelerada, uma vez que não somente o direito fundamental à vida está a ser discutido, mas também outros direitos tão fundamentais quanto – como, por exemplo, o direito fundamental à saúde por intermédio dos programas estatais de saúde de acesso público, consoante Domingues (2008, p. 95-96):

Os dados do Sistema Único de Saúde demonstram que aborto inseguro é um grave problema de saúde pública que contribui para os altos índices de mortalidade e morbidade materna. Realizado em condições inseguras nas clínicas clandestinas, o procedimento oferece às mulheres graves riscos à sua saúde, como a perfuração do útero, além de riscos de complicações generalizadas, como hemorragias e infecções. Muitas mulheres sofrem sequelas permanentes, como infertilidade e histerectomia, sendo esta última à quinta causa de internação hospitalar de mulheres na Rede Pública de Saúde. O abortamento inseguro representa a quarta causa de morte materna no país e responde por 9% dos óbitos maternos na Rede Pública de Saúde.

Deste modo, enquanto não despenalizado o aborto no Brasil, as mulheres continuarão a buscar meios considerados ilícitos para abortamento – e estes meios certamente oferecem muitos riscos à saúde delas, uma vez que dificilmente – nas clínicas clandestinas – existem procedimentos médicos e cirúrgicos adequados para tal prática moralmente aceitável.

Em tempo: uma vez entendido que a vida nasce na concepção, e que toda prática que a interrompe é considerado aborto, então, por conseguinte, poder-se-ia compreender que a (1) reprodução humana medicamente assistida, a (2) geração de filhos doados por gametas, as (3) células-tronco embrionárias, bem como demais tecnologias reprodutivas, seriam todas estas penalizadas por serem técnicas abortivas.

Portanto, e ao fim, percebe-se que as leis penais jamais impedirão de as mulheres buscarem meios para promoverem práticas abortivas necessárias para interromper a indesejável gestação em andamento.

E, enfim, que não é pela via da penalização do abortamento que será defendido o fundamental direito à vida – pelo contrário, é pela penalização do aborto que o direito fundamental à saúde pública das mulheres do Brasil é severamente atingido todos os dias.

CONCLUSÃO

O aborto é uma realidade social desde os primórdios da humanidade sendo praticado sob diferentes justificativas sendo algumas delas de origem social, cultural, religiosa e econômica. A questão histórica do aborto por muito tempo foi vista como algo de repudio social, pois sempre foi imposta a mulher que esta deveria ser mãe.

Quando adentramos ao estudo do direito comparado vislumbra-se que a visão acerca do aborto depende muito do sistema jurídico vigente em determinado momento, no contexto histórico percebe-se que num primeiro momento o aborto era moralmente aceito e juridicamente licito desde que a mulher obtivesse o aval do marido para então poder pratica-lo, em alguns casos o aborto era utilizado como forma de controle populacional, pois não se tinha conhecimento de métodos contraceptivos eficazes.

Após significativas mudanças no cenário social o Estado então passa a legislar sobre o assunto, em alguns países passa-se a fazer uma menção a determinados períodos gestacionais nos quais a mulher ainda pode optar por interromper a gravidez, não sendo assim considerado crime. O que confirma a situação de que o que se protege não é intrinsicamente o direito a vida, mas um direito de quem pode ou não escolher conceber uma nova vida.

No ordenamento jurídico brasileiro o aborto é considerado crime desde os primeiros compilados de lei, o atual código penal descriminaliza o aborto nas situações de risco a gestante e em caso de violência sexual, punindo as demais formas em que se pratica o aborto, percebe-se que a legislação atual ao dar proteção ao direito a vida não a faz de forma absoluta, pois nos referidos casos cabe

a gestante a decisão de interromper ou não a gestação, tornando o aborto assim moralmente aceito. Isso torna ainda mais claro que a mulher tem direito a decidir sobre seu próprio corpo.

Perante o que foi discorrido no trabalho, percebe-se que a legislação atual encontra-se ineficaz ao que pretende resguardar, uma vez que punir pelo aborto não impede que ele aconteça, inexiste razão suficiente para a manutenção dessa norma incriminadora no ordenamento jurídico, pois os efeitos da criminalização do aborto se distribuem de forma desigual na sociedade, atingindo com maior relevância as mulheres pobres, negras e jovens.

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