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Análise da tira 3

No documento 2011FernandaSchneider (páginas 86-89)

3.5 Análise enunciativa das tiras

3.5.3 Análise da tira 3

Figura 5 - Tira 398 Fonte: Iotti (2010)

3.5.3.1 Apresentação da tira 3

Quando os imigrantes italianos ocuparam o Rio Grande do Sul, trouxeram os legados da sua cultura, entre os quais os jogos de cartas, como a canastra, trissete, quatrilho e truco. Na terceira tira que analisamos, o cenário envolve esse espólio da cultura italiana: Radicci está sentado com dois amigos jogando cartas.

Embora não se possa saber exatamente o local em que os três participantes da tira estão, a imagem revela uma situação comum em bares: os personagens jogam cartas, conversam e um deles está fumando. No primeiro quadrinho predominam tons pastéis e evidenciam-se os personagens e a fala de um deles, que diz “mia muié é una Santa”; no segundo, o cenário é composto apenas por quatro cores: verde e amarelo (ao fundo), marrom (mesa e personagens) e branco (fala do personagem). Com essas cores, fica em destaque a fala do personagem.

Em relação à expressão facial dos personanges, no primeiro quadrinho Radicci demonstra tranquilidade e ouve com atenção o que fala o amigo. O personagem que fala tem uma expressão serena, condizente com a afirmação de que sua esposa é “uma santa”. O terceiro personagem, com o cigarro na boca, também ouve atentamente. No segundo quadrinho, as expressões alteram-se: o personagem que está com o cigarro na boca demonstra rebeldia e diz “Sorte tua! A minha ainda tá viva!”. O outro personagem demonstra indignação, enquanto Radicci demonstra espanto.

3.5.3.2 Análise enunciativa da tira 3

Na terceira tira em análise, Radicci participa somente como ouvinte, pois o diálogo estabelece-se entre outros dois personagens, amigos de Radicci. No primeiro quadrinho, o texto verbal proferido por um dos amigos é o seguinte: “mia muié é uma Santa!”. Por meio dessa realização, a linguagem é possível porque cada locutor se apresenta como sujeito: “eu não emprego eu a não ser dirigindo-me a alguém, que será na minha alocução um tu. Essa condição de diálogo é que é constitutiva da pessoa, pois implica em reciprocidade – que eu me torne tu na alocução daquele que por sua vez se designa por eu” (BENVENISTE, 2005a, p. 286). Dessa forma, efetiva-se o ato enunciativo: o eu ( primeiro personagem) intima o tu (Radicci e o segundo personagem), o segundo personagem toma a palavra, torna-se o eu e enuncia-se dizendo, no segundo quadrinho, “sorte tua! A mia ainda tá viva!”.

Locutor e alocutário estabelecem juntos a situação enunciativa: o eu, no primeiro quadrinho, faz um comentário sobre um ele (a não pessoa – sua esposa) – que neste caso é o fato de sua esposa ser uma santa, provavelmente porque é compreensível, companheira, fiel. Ao intimar um tu, constrói-se a categoria de pessoa e espera-se que esse tu se pronuncie a respeito do mesmo assunto: concordando, argumentando ou discordando. Ao ouvir o comentário do amigo, o segundo personagem apropria-se da língua e enuncia-se, deixando de ser alocutário e passando a locutor. Com isso, tem-se uma das características da categoria de pessoa: a reversibilidade. Para Flores et al. (2008, p. 52), “ se tu toma a palavra, já não é mais tu, e sim eu. O que se propunha como eu agora é tu; a relação é refeita, é nova, já não é mais a mesma”. Nesse sentido, pode-se afirmar que o fundamento da intersubjetividade é a inversibilidade da categoria de pessoa, pois a linguagem torna-se possível por meio deste par linguístico indissociável e reversível: eu-tu.

Destacam-se nessa tira dois aspectos. Primeiramente, há a construção de um recurso linguístico utilizado no primeiro quadrinho da tira em análise: a metáfora. O locutor, ao dizer “mia muié é una santa!”, constrói um sentido metafórico – que só existe na cena enunciativa. Essa posição é única e assumida em cada enunciado, porém no segundo quadrinho a metáfora não é “aceita” pelo alocutário, além de ser desconstruída em sua enunciação. Essa desconstrução da metáfora e a construção de um novo sentido para santa é que levam a que entre em cena outro recurso linguístico: o humor. É o que Raskin (1985) chama de a passagem de um script a outro, em que duas hipóteses são suscitadas, mas apenas uma acaba sendo pertinente.

Em segundo lugar, temos o uso do termo ainda em “a mia ainda tá viva”. A gramática tradicional apresenta ainda como um advérbio de tempo. Para Bechara52 (2006, p. 288), “fundamentalmente, distribuem-se os advérbios em assinalar a posição temporal (os de tempo) ou espacial do falante (os de lugar), ou ainda de modo pelo qual se visualiza o ‘estado de coisas’ designado na oração”. Apesar de Bechara apresentar uma visão mais próxima do que se acredita ser analisar a língua, pensa-se que o que se diz do advérbio nessa concepção não seja suficiente para o entendimento do sentido do advérbio no texto, porque não é suficiente na tira em análise dizer que “ainda” é um advérbio de tempo.

Considerando a visão enunciativa da linguagem, podemos ir além. Primeiramente, observemos o sentido do enunciado caso estivesse escrito da seguinte forma: “Sorte tua! A mia tá viva”! Poder-se-ia dizer que o sentido é o mesmo encontrado no enunciado da tira? Ao ler atentamente a frase da tira e o enunciado aqui elaborado, percebemos que não divergem, mas não podemos dizer que o uso de ainda não altera o sentido. O advérbio intensifica o enunciado e, além disso, de “a mia [esposa] ainda tá viva” podem-se depreender alguns pressupostos: o de que a mulher (esposa do locutor) “ainda” não morreu e o de que a esposa morrer não seria ruim, pois o locutor diz que o amigo tem “sorte”.

Essa diferença que se configura entre o que a gramática tradicional conceitua e o que a enunciação possibilita compreender parece-nos evidente no texto “O aparelho formal da enunciação”, conforme Flores e Teixeira (2008, p. 35): “Benveniste concebe uma oposição entre a linguística das formas e a de enunciação”. Desse modo, ainda em sua forma é um advérbio de tempo, mas somente seu uso determinará seu sentido.

A leitura da tira permite perceber que o humor está centrado na construção do sentido do termo santa: a palavra (a forma) se repete nos dois quadrinhos, no entanto a referência é outra. No primeiro momento, para se entender o sentido de santa é preciso ter o conhecimento de que, quando uma mulher é chamada assim, significa que ela é uma boa pessoa/boa esposa segundo os padrões da sociedade (e os do marido!): faz bem os serviços domésticos, é fiel, é compreensiva, cuida dos filhos, não briga. No segundo momento, santa refere-se aos costumes religiosos: oficialmente, uma santa é uma mulher que, por exemplo, a Igreja Católica designa canonizada após um processo de reconhecimento. Isso acontece somente com pessoas que já tenham morrido e tenham compravada sua santidade.

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Evanildo Bechara é autor de gramáticas da língua portuguesa destinadas tanto ao público leigo quanto a profissionais da área. É membro da Academia das Ciências de Lisboa e Doutor Honoris Causa pela Universidade de Coimbra; professor Titular e Emérito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e da Universidade Federal Fluminense (UFF), além de titular da cadeira nº 16 da Academia Brasileira de Filologia e da cadeira 33 da Academia Brasileira de Letras.

Nesse sentido, ao se afirmar que a enunciação “é produto de um ato de apropriação da língua pelo locutor, que, a partir do aparelho formal da enunciação, tem como parâmetro um locutor e um alocutário” (FLORES; TEIXEIRA, 2008, p. 35), conjectura-se que esse quadro teórico dá conta do processo de referenciação, pois o locutor estabelece relação com o mundo por meio do discurso de um sujeito no momento em que mobiliza e se apropria da língua, ao passo que o alocutário correfere. Na tira, o eu (primeiro personagem) ao se enunciar constrói a referência santa = boa esposa; o tu (segundo personagem) aceita sua posição de alocutário e, posteriormente, assume a palavra e enuncia-se, tornando-se nesse momento o eu e constrói outra referência para santa: pessoa que já morreu.

Para entender essa enunciação, é necessário enfatizar a diferença dada ao tratamento da referência pelos níveis de significação: o semiótico e o semântico. Fora do contexto, santa tem um significado dicionarizado, no entanto sua referência é construída na e pela enunciação. É o que encontramos em Benveniste: “no semiótico, ela [a referência] está ausente; no semântico é definidora do sentido porque este se caracteriza pela relação estabelecida entre as ideias expressas sintagmaticamente na frase e a situação de discurso” (FLORES; TEIXEIRA, 2008, p. 32). Dessa forma, o humor é construído pela atribuição de sentido às palavras, ou seja, pela referência construída nessa enunciação pelos interlocutores em seus discursos.

No documento 2011FernandaSchneider (páginas 86-89)