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Análise da tira 4

No documento 2011FernandaSchneider (páginas 89-93)

3.5 Análise enunciativa das tiras

3.5.4 Análise da tira 4

Figura 7- Tira 333 Fonte: Iotti (2010)

3.5.4.1 Apresentação da tira 4

A quarta tira analisada segue o padrão de tiras elaboradas por Iotti: duas vinhetas apresentadas em justaposição horizontal, de tamanhos iguais. Na primeira, um único personagem compõe a cena, está ao telefone e com uma espingarda nas costas. Logo se conhece seu interlocutor: trata-se de Radicci. Essa informação é evidenciada pelo texto verbal “Radicci, vômo cacá?”. No segundo quadrinho aparecem dois personagens: Radicci e Genoveva. O texto verbal é o seguinte: “Non posso, tô com pontada!”.

Numa primeira leitura, parece coerente alguém que está com “pontada”, termo que designa, popularmente, pneumonia, não poder ir caçar. No entanto, a surpresa é evidenciada pelo texto não verbal, na medida em que a imagem revela que Genoveva segura uma faca com a ponta encostada em Radicci, que está ao telefone. A expressão facial de Radicci revela desgosto e, ao mesmo tempo, ressalva em relação à esposa. Desgosto porque, provavelmente, gostaria de acompanhar o amigo na caçada, e ressalva porque a esposa o está ameaçando com uma faca. Genoveva demonstra, na sua expressão facial, brabeza e desaprovação em relação ao convite recebido por Radicci.

Em relação ao espaço interno dos quadrinhos, tanto o primeiro personagem quanto Radicci e Genoveva parecem estar em suas casas, o que é evidenciado pelo uso de telefones convencionais. Caso fossem celulares, os personagens poderiam estar em outros lugares.

O primeiro personagem apresenta-se com uma vestimenta típica de gaúcho: camisa e lenço. Não podemos desconsiderar o fato de que o lenço é branco e que isso tem significado no Rio Grande do Sul, onde em 1893 iniciou a Revolução Federalista, que tinha dois principais opositores: os maragatos e os chimangos. A identificação de cada grupo era feita pela cor do lenço: os maragatos usavam lenço vermelho, e os chimangos, que representavam o governo do estado, lenço branco. Na tira, o personagem do primeiro quadrinho apresenta-se com lenço branco, o que remete à história da Revolução Federalista. Radicci e Genoveva trajam vestimentas típicas italianas: ele com camisa e calça com listras, ela como uma típica “nona”, com lenço na cabeça, vestido e avental.

3.5.4.2 Análise enunciativa da tira 4

Na quarta tira que compõe este capítulo de análise, o personagem (eu) que aparece no primeiro quadrinho fala ao telefone para um tu, Radicci. Eu e tu, que a princípio são signos

vazios, solidificam-se plenos na instância de discurso. Dessa forma, instalam-se a categoria de pessoa e a correlação de subjetividade. Na oposição eu-tu, somente o eu é realmente a pessoa subjetiva, porque, enquanto o eu é interior ao enunciado, o tu é o exterior e o ele é a não- pessoa.

Para compreender essa noção analisemos cada quadrinho isoladamente. No primeiro aparece um personagem falando ao telefone, que, ao se apropriar da língua e se enunciar, assume sua posição de eu. Contudo, para que isso realmente aconteça, o eu intima um tu a participar desse diálogo. No segundo quadrinho aparecem Radicci e Genoveva. Radicci está ao telefone; por meio da inversibilidade (eu torna-se tu, tu torna-se eu), depois de ouvir o amigo, assume a posição de eu e se enuncia.

Em decorrência disso, tem-se a separação da tríade eu-tu-ele. De acordo com Flores e Teixeira (2008, p. 38), para Benveniste “os pronomes ‘eu/tu’ pertencem ao nível pragmático da linguagem, pois, definidos na própria instância de discurso, referem a uma realidade distinta a cada vez que são enunciados”, ao passo que “o ‘ele’ pertence ao nível sintático, já que tem por função combinar-se com uma referência objetiva de forma independente da instância enunciativa que a contém” (p. 38-39). Em outras palavras, poder-se-ia dizer que é uma separação de pessoa e não-pessoa, que na tira está representada assim: eu (primeiro personagem) – tu (Radicci) x ele (caçar).

Nessa separação de pessoa e não-pessoa parece-nos ser possível afirmar que Genoveva constitui uma não-pessoa, porque é dela – também – que Radicci “fala” quando diz que está com pontada, pois é a esposa que não o deixa ir caçar. Isso é evidenciado na tira por meio do texto não verbal: no segundo quadrinho, Genoveva está com uma faca apontada para Radicci, que está ao telefone sendo convidado para ir caçar. Destaca-se, assim, a importância da “faca” como elemento demonstrativo da vontade de Genoveva de não deixá-lo sair para caçar. Analisada a categoria de pessoa e não-pessoa, destaca-se o texto verbal “Radicci, vômo caçá?/ Non posso, to com pontada!”, presente no primeiro quadrinho. A palavra “pontada” é o eixo central do enunciado. Pelo contexto da fala do Radicci, “pontada” seria uma doença, uma dor aguda. No entanto, esse sentido se desconstrói, dando espaço para outro, pois a linguagem não verbal permite perceber que Genoveva está com a ponta da faca apontada para ele. Assim, “pontada” significa, no segundo quadrinho, a ponta da faca que Genoveva segura na mão.

Evidencia-se, primeiramente, a forma proposicional do enunciado, que poderia ser compreendido da seguinte forma: Radicci está doente (com pontada), então não irá caçar. Entretanto, no segundo quadrinho temos, por meio do texto não verbal, uma explanação

inesperada que desencadeia o humor: Genoveva está com a ponta da faca apontada para Radicci, portanto não irá caçar. Por meio dessa mudança de sentido, comprova-se que as palavras somente têm sentido no discurso, pois, “[...] a cada vez particular, o locutor agencia palavras que neste emprego tem um ‘sentido particular’”, (BENVENISTE, 2006a, p. 231). Isso somente é possível porque o sentido da frase é a imagem/ideia que ela expressa, ao passo que a referência é o que determinada palavra ou frase reporta em cada enunciação.

Para melhor entendimento da concepção de que o locutor agencia palavras que a cada vez terão sentidos novos, mobilizam-se duas noções: forma e sentido. Para Flores et al. (2008, p. 71), “as ‘duas maneiras de ser língua’, inicialmente apresentadas como oposição – semiótico/semântico ou língua/discurso –, ao se estudar o discurso se fundem. O discurso é forma e sentido”. Desse modo, na tira analisada o humor é construído pela possibilidade do sentido novo e inesperado atribuído à palavra “pontada”, por meio da relação indissociável de forma e sentido que precisamos estabelecer, levando em consideração a referência construída nesta enunciação.

Assim, “pontada” tem uma forma e um sentido que são construídos somente no e pelo discurso. Com base na leitura dos textos verbais do primeiro e do segundo quadrinho, o leitor constrói a referência de “pontada” como uma doença. É o texto não verbal que elucida a referência de “pontada” no segundo quadrinho. Na frase, forma e sentido articulam a língua e o uso da língua, “pois os constituintes das frases são os signos – formas da língua -, agora palavras que, ao mesmo tempo em que expressam distinção, porque integrados à frase, expressam sentido” (FLORES et al., 2008, p. 71). Desse modo, evidencia-se que a característica da língua de ser enunciativa é que viabiliza em tiras como esta a construção do humor linguisticamente.

“Pontada” pode fazer parte de um nível inferior – o dos fonemas –, pois pode-se decompor a palavra em [p] – [õ] – [t] – [a] – [d] – [a]. Essas unidades nos permitem delimitar uma unidade superior. Isso pode ser observado no segundo enunciado da tira que contém a palavra “pontada”: “Non posso, to com pontada!”. Ao integrar a frase, as palavras expressam sentidos que são sempre novos a cada enunciação. De acordo com essa noção, Benveniste (2005d, p. 130) assinala que “o sentido é de fato a condição fundamental que todas as unidades de todos os níveis devem preencher para obter status lingüístico”.

Em suma, não é possível deixar o sentido “fora do jogo” (BENVENISTE, 20005d, p. 130), por ser condição indispensável para que se possa analisar linguisticamente como a referência é construída e intervém nas operações.

No documento 2011FernandaSchneider (páginas 89-93)