• Nenhum resultado encontrado

Análise da Transitividade – Modalidade – Avaliatividade

4 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

4.1 Análise de “Deus sorri como um negrinho”

4.1.2 Análise da Transitividade – Modalidade – Avaliatividade

Repito a codificação seguida na análise para facilitar o acompanhamento:

• Caixa alta – indicação do Processo

• Sublinhado – Participantes e Circunstâncias

• Negrito – análise da Avaliatividade e da Modalidade

• (+) ou (-) se a Avaliatividade for positiva ou negativa, respectivamente. • (↑) ou (↓) se a Avaliatividade for intensificada ou diminuída

Capítulo 7: “Deus sorri como um negrinho”

O menino era uma tentação por demais grande. Nem parecia um meio-dia de inverno. O sol deixava cair sobre as ruas uma claridade macia, que não queimava, mas cujo calor acariciava como a mão de uma mulher. No jardim próximo as flores desabrochavam em cores. Margaridas e onze-horas, rosas e cravos, dálias e violetas. Parecia haver na rua um perfume bom, muito sutil, mas que Pirulito sentia entrar nas suas narinas e como que embriagá-lo. Tinha comido na porta de uma casa de portugueses ricos as sobras de almoço que fora quase um banquete. A criada, que lhe trouxera o prato cheio, dissera, mirando as ruas, o sol de inverno, os homens que passavam sem capa:

– Tá fazendo um dia lindo.

Essas palavras foram com Pirulito pela rua. Um dia lindo, e o menino ia despreocupado, assoviando um samba que lhe ensinara o Querido-de-Deus, recordando que o padre José Pedro prometera tudo fazer para lhe conseguir um lugar no seminário. Padre José Pedro lhe dissera que toda aquela beleza que caía envolvendo a terra e os homens era um presente de Deus e que era preciso agradecer a Deus.

Pirulito MIROU o céu azul onde Deus devia ESTAR

Ator Material Meta Existente Existencial

Apreciação (+) Probabilidade

e (ele) AGRADECEU num sorriso e PENSOU que Deus ERA realmente bom. Comportante Comportamental Mental Portador Relacional Atributo

Fenômeno

Afeto(+) Julgamento(+)(↑)

E PENSANDO em Deus PENSOU também nos Capitães da Areia.

Mental Fenômeno Mental Circunstância Fenômeno Julgamento (+)

Discussão: (Por obra do padre, que lhe fala de outros planos além da vida terrena, esta, plena de miséria), Pirulito alça voos ― em trecho marcado por Processos Mentais ― para aproximar-se de Deus. E nessa viagem mental, ele vê os Capitães da Areia no mesmo plano em que se encontra Deus, o que parece antecipar seu julgamento sobre os companheiros. O Processo Comportamental mostra a exteriorização ― com um sorriso ― do estado interior de Pirulito, feliz, pelo menos naquele momento de contemplação. É o que se chama de metarrelação de avaliação interna, segundo Macken-Horarik (2003).

Por outro lado, o trecho pode fazer pensar em fuga da realidade, movimento que inibiria a consciência crítica da realidade pelos capitães, mas pode ser também a própria crítica do autor que se insere na narrativa por meio dessa descrição.

Eles FURTAVAM, BRIGAVAM nas ruas, XINGAVAM nomes,

Ator Material Material Circunstância Verbal Verbiagem Julgamento(-) Julgamento(-) Avaliação Social (-) Julgamento(-)

DERRUBAVAM negrinhas no areal,

Material Meta Circunstância

Julgamento(-) Julgamento(-) token Avaliação Social(-)

por vezes FERIAM com navalhas ou punhal homens e polícias. Material Circunstância Meta

Frequência Julgamento(-) Apreciação(-)

Discussão: trecho marcado predominantemente por Processos Materiais. Tais processos comportam, nesse contexto, avaliações negativas que se traduzem em agressão física, violência sexual e roubos. Na verdade, esse comportamento é fruto das carências desses garotos (alimentos, moradia, amor, educação) e refletem os problemas sociais crônicos do país. Ainda que de maneira implícita, Jorge Amado mostra uma sociedade sob dois enfoques. Ao ser responsável por esses males, à medida que relega os menores à própria sorte, essa mesma

sociedade torna-se também vítima dessas atividades criminosas.

Mas, no entanto, (os capitães da areia) ERAM bons,

Portador Relacional Atributo Julgamento(+)

uns ERAM amigos dos outros. Se (eles) FAZIAM tudo aquilo

Portador Relacional Atributo Ator Material Meta

Julgamento (+) Julgamento (+) token

É que (eles) não TINHAM casa, nem pai, nem mãe,

Relacional Possuidor Relacional Possuído Circunstância Causa

Avaliação Social (-)

a vida deles ERA uma vida sem TER comida certa

Portador Relacional Portador Relacional Atributo Atributo

Avaliação Social (-)

e DORMINDO num casarão quase sem teto.

Mental Circunstância Apreciação (-)

Discussão: O Processo Material “faziam” retoma, com a expressão “tudo aquilo”, os delitos praticados pelos meninos. Porém, por meio de Processos Relacionais, o narrador ressalta o lado humano e frágil dessas crianças, que agem como delinquentes devido ao abandono em que a sociedade os deixou. As Avaliatividades negativas mostram a precária situação dos capitães. Como mostra Macken-Horarik (2003), o leitor se solidariza com os personagens, adotando uma posição de empatia em relação aos menores abandonados, uma vez que ficam evidentes as motivações que os levaram à marginalidade.

Se (eles) não FIZESSEM tudo aquilo (eles) MORRERIAM de fome, porque

Ator Material Meta Ator Material Circunstância Apreciação (-)

ERAM raras as casas que DAVAM de comer a um, de vestir a outro.

Relacional Atributo Portador Ator Material Meta Beneficiário Meta Beneficiário Apreciação (-)

Discussão: É certo que a necessidade não justifica o crime, no entanto, é preciso abstrair as motivações que Jorge Amado elenca na caracterização desses comportamentos. Há no texto uma relação semântica de oposição, ou metarrelação de oposição. Ao mesmo tempo em que os Processos Materiais apontam para o caráter de marginalidade no comportamento dos menores, os Processos Relacionais sinalizam a vulnerabilidade dessas crianças numa sociedade desigual que impele os menos favorecidos a adotar meios escusos de sobrevivência.

E nem toda a cidade poderia dar a todos. Pirulito pensou que todos estavam condenados ao inferno. Pedro Bala não acreditava no inferno, Professor tampouco, riam dele.

João Grande acreditava era em Xangô, em Omolu, nos deuses dos negros que vieram da África. O Querido-de-Deus, que era um pescador valente e um capoeirista sem igual, também acreditava neles, misturava-os com os santos dos brancos que tinham vindo da Europa. O padre José Pedro dizia que aquilo era superstição, que era coisa errada, mas que a culpa não era deles. Pirulito se entristeceu na beleza do dia. Estariam todos condenados ao inferno? O inferno era um lugar de fogo eterno, era um lugar onde os condenados ardiam uma vida que nunca acabava. E no inferno havia martírios, desconhecidos mesmo na polícia, mesmo no reformatório de menores. Pirulito vira há poucos dias um frade alemão que descrevia o inferno num sermão na Igreja da Piedade. Nos bancos, homens e mulheres recebiam as palavras de fogo do frade como chicotadas no lombo. O frade era vermelho e de seu rosto pingava o suor. Sua língua era atrapalhada e dela o inferno saía mais terrível ainda, as labaredas lambendo os corpos que foram lindos na terra e se entregaram ao amor, as mãos que foram ágeis e se entregaram ao furto, ao manejo do punhal e da navalha. Deus no sermão do frade era justiceiro e castigador, não era o Deus dos dias lindos do padre José Pedro. Depois explicaram a Pirulito que Deus era a suprema bondade, a suprema justiça. E Pirulito envolveu seu amor a Deus numa capa de temor a Deus e agora vivia entre os dois sentimentos. Sua vida era uma vida desgraçada de menino abandonado e por isso tinha que ser uma vida de pecado, de furtos quase diários, de mentiras nas portas das casas ricas. Por isso na beleza do dia Pirulito mira o céu com os olhos crescidos de medo e pede perdão a Deus tão bom mas não tão justo também... pelos seus pecados e os dos Capitães da Areia. Mesmo porque eles não tinham culpa. A culpa era da vida...

O padre José Pedro DIZIA que a culpa ERA da vida e tudo

Dizente Verbal Atributo Relacional Portador Meta Verbiagem

(o padre) FAZIA para REMEDIAR a vida deles pois SABIA

Ator Material Material Meta Mental Afeto (+)

que ERA a única maneira de FAZER com que eles TIVESSEM

Relacional Atributo Material Portador Relacional Fenômeno

Apreciação (+)

uma existência limpa.

Atributo

Avaliação social (+)

Discussão: Em discurso indireto, por meio do Processo Verbal (dizia), o texto mostra, tendo ao fundo a realidade que envolve os capitães da areia, marcada por Avaliações Sociais negativas, o pensamento do padre ― Processo Mental ― de que nada restava aos capitães da areia a não ser sua ajuda. A culpa era da vida.

Porém uma tarde em que ESTAVA o padre e ESTAVA o João de Adão,

Circunstância Existencial Existente Existencial Existente

o doqueiro DISSE que a culpa ERA da sociedade mal organizada,

Dizente Verbal Atributo Relacional Portador Verbiagem

Avaliação social (-) Avaliação social (-)

ERA dos ricos... Que enquanto tudo não MUDASSE, Relacional Portador Existente Existencial Julgamento (-) token Avaliação Social (-) token

os meninos não poderiam SER homens de bem. E DISSE

Portador Relacional Atributo Verbal Probabilidade Julgamento (+)

que o padre José Pedro nunca poderia FAZER nada por eles

Ator Circunstância Material Meta Beneficiário Verbiagem

Probabilidade Apreciação (-)

porque os ricos não DEIXARIAM.

Ator Material Julgamento (-) token

Discussão: Nesse contexto, em conversa com João de Adão, este ― talvez o

alter ego de Jorge Amado ― lhe diz que a culpa era da sociedade, dos ricos ―

marcados com tokens de Julgamento, ou seja, negativo no contexto, e assim deduzido pelo processo da metarrelação. Notemos a descrição da realidade do lugar por meio de Processos Relacionais, e da impossibilidade de mudar essa realidade, com o Processo Material, o processo de fazer.

O padre José Pedro naquele dia tinha FICADO muito triste,

Portador Circunstância Relacional Atributo Graduação (↑)

e quando Pirulito o foi CONSOLAR, EXPLICANDO que ele não LIGASSE

Dizente Receptor Verbal Verbal Experienciador Mental Afeto (+)

ao que João de Adão DIZIA, o padre RESPONDEU BALANÇANDO

Dizente Verbal Dizente Verbal Material Fenômeno

a cabeça magra:

― Tem vezes que eu chego a PENSAR que ele TEM razão,

Circunstância Experienciador Mental Portador Relacional Atributo

Fenômeno____________ Verbiagem

Probabilidade

que isso tudo ESTÁ errado. Mas Deus É bom e saberá DAR remédio.

Portador Relacional Atributo Portador Relacional Atributo Material Meta Fenômeno____________________________________________________________ Verbiagem

Av. Social (-) Av. Social (-) Julgamento (+)

Discussão: O trecho, iniciado em discurso indireto e finalizado em discurso direto, está ancorado em Processos Verbais ― dizer, consolar, explicar, responder ― seguido de Verbiagens em orações projetadas. Os Processos Relacionais e Mentais revelam o dilema do padre diante da visão realista de João de Adão. Estaria mesmo tudo errado? Apesar das Avaliações Sociais negativas, o narrador equilibra essa visão pessimista de forma poética, recorrendo o padre à fé em Deus, que é bom, e dará solução aos males sociais.

Padre José Pedro ACHAVA que Deus PERDOARIA e queria AJUDÁ - los.

Experienciador Mental Experienciador Mental Material Meta Fenômeno

Julgamento (+) Afeto (+)

E como (o padre) não ENCONTRAVA meios, e sim uma barreira na sua frente

Ator Material Meta Meta Circunstância Apreciação (-)

(todos queriam TRATAR os Capitães da Areia ou como a criminosos

Ator Material Meta Atributo

Avaliação Social (-)

como crianças iguais àquelas que foram CRIADAS com um lar e uma família),

Atributo Meta Material Circunstância. Avaliação Social (+)

(o padre) FICAVA como que desesperado, por vezes FICAVA atarantado.

Portador Relacional Atributo Circunstância Relacional Atributo Julgamento (+) Julgamento (+)

Discussão: Os Processos Relacionais e Mentais apontam para o conflito vivido pelo padre. Ao mesmo tempo em que se dispõe a fazer algo pelos meninos, movimento expresso pelo Processo Material “ajudar”, encontra dificuldades. A Avaliação negativa do vocábulo “barreira” diz respeito aos entraves colocados pela própria Igreja e autoridades em relação ao abandono dos menores. Trata-se de uma sociedade que critica o comportamento marginalizado dos garotos, sem questionar a origem desse problema. Essa oposição de valores constitui a metarrelação de oposição, que assim contribui para mostrar a injustiça social em relação aos menores: bons na essência, mas tornados maus pela sociedade indiferente.

Mas esperava que Deus o inspirasse um dia e até lá ia acompanhando os meninos, conseguindo por vezes evitar atos de malvadeza das crianças. Fora mesmo ele um dos que mais concorreram para exterminar a pederastia no grupo. E isto foi uma das suas grandes experiências no sentido de como agir para tratar com os Capitães da Areia. Enquanto ele lhes disse que era necessário acabar com aquilo porque era um pecado, uma coisa imoral e feia, os meninos riram nas suas costas e continuaram a dormir com os mais novos e bonitos. Mas no dia em que o padre, desta vez ajudado pelo Querido-de-Deus, afirmou que aquilo era coisa indigna num homem, fazia um homem igual a uma mulher, pior que uma mulher, Pedro Bala tomou medidas violentas, expulsou os passivos do grupo. E por mais que o padre fizesse não os quis mais ali.

– Se eles voltar, a safadeza volta, padre.

Por assim dizer, Pedro Bala arrancou a pederastia entre os Capitães da Areia como um médico arranca um apêndice doente do corpo de um homem. O difícil para o padre José Pedro era conciliar as coisas. Mas ia tenteando e por vezes sorria satisfeito dos resultados.

A não ser quando João de Adão RIA dele e (João de Adão) DIZIA

Comportante Comportamental Dizente Verbal

que só a revolução ACERTARIA tudo aquilo.

Ator Material Meta Verbiagem

Discussão: Por meio do Processo Material Transformativo “acertar”, o autor aponta, na voz de João de Adão, o ideal da revolução ― nessa passagem com Avaliatividade positiva ― como remédio para as desigualdades sociais. A ideia de sociedade mal organizada é retomada aqui na expressão “tudo aquilo”, de caráter avaliativo negativo.

Lá em cima, na cidade alta, os homens ricos e as mulheres QUERIAM

Circunstância Circunstância Experienciador Mental Apreciação (-) token Julgamento (-) Julgamento (-)

que os Capitães da Areia FOSSEM para as prisões, para o reformatório,

Ator Material Circunstância Circunstância Fenômeno

Avaliação Social (-) Avaliação Social (-)

que ERA pior que as prisões. Lá embaixo, nas docas João de Adão

Portador Relacional Atributo Circunstância. Circunstância Ator Avaliação Social (-) Apreciação (+) Token

queria ACABAR com os ricos, FAZER tudo igual, DAR escola aos meninos.

Material Meta Material Meta Material Meta Beneficiário Julgamento (-) Julgamento (+) Julgamento (+)

Discussão: Os termos “lá em cima” e “cidade alta” carregam uma Avalição negativa implícita (token). É lá que a classe privilegiada, representada por autoridades, alta sociedade e Igreja, decidem os destinos dos menores de maneira desumana e cruel, o que é revelado no texto por meio das Avaliações Sociais negativas “prisões” e “reformatório”. Em sentido oposto, “lá embaixo”, “nas docas”, o personagem João de Adão acredita que a igualdade de oportunidade a todos só ocorrerá de forma radical, expressa pelo Processo Material acabar que completa sua significação no termo negativamente avaliado “os ricos”. Em resumo, essa “forma radical” é apontada como uma consequência da desigualdade social.

O padre queria DAR casa, escola, carinho e conforto aos meninos

Ator Material Meta Beneficiário Afeto (+)

sem a revolução, sem ACABAR com os ricos. Mas de todos os lados

Circunstância Material Meta Circunstância Julgamento (-)

ERA (= havia) uma barreira. (o padre) FICAVA como perdido e PEDIA a Deus Existencial Existente Portador Relacional Atributo Verbal Receptor Apreciação (-)

que o (Deus) INSPIRASSE. E com certo pavor (o padre) VIA que,

Fenômeno Experienciador Mental Circunstância Experienciador Mental

quando PENSAVA no problema, (o padre) DAVA, sem sequer o SENTIR,

Mental Fenômeno Ator Material Fenômeno Mental Apreciação (-)

razão ao doqueiro João de Adão. Então (o padre) era POSSUÍDO de temor,

Meta Beneficiário Portador Relacional Atributo

porque não FORA assim que lhe haviam ENSINADO, e REZAVA

Relacional Circunstância Beneficiário Material Verbal

horas seguidas para que Deus o ILUMINASSE.

Circunstância Ator Meta Material Julgamento (+)

Discussão: O Processo Material “dar”, no início do trecho, aponta o desejo do padre de tornar efetiva sua ajuda aos menores. Todavia, as expressões avaliativas “uma barreira”, “problema” mostram que nada será possível sem a revolução, solução que não se coaduna com os preceitos religiosos do sacerdote. A partir daí, os Processos Mentais e Relacionais sinalizam o conflito interior do padre

que, por meio dos Processos Verbais “pedir”, “rezar” tentará encontrar respostas para tal dilema. O Processo Material “iluminar” é transformativo. Sinaliza, no final do trecho, uma solução que só Deus poderá dar em relação a esses conflitos sociais.

Pirulito fora a grande conquista do padre José Pedro entre os Capitães da Areia. Tinha fama de ser um dos mais malvados do grupo, contavam dele que uma vez pusera o punhal na garganta de um menino que não queria lhe emprestar dinheiro e o fora enfiando devagarinho, sem tremer, até que o sangue começou a correr e o outro lhe deu tudo que queria. Mas contavam também que outra vez cortou de navalha a Chico Banha quando o mulato torturava um gato que se aventurara no trapiche atrás dos ratos. No dia que o padre José Pedro começou a falar de Deus, do céu, de Cristo, da bondade e da piedade, Pirulito começou a mudar. Deus o chamava e ele sentia sua voz poderosa no trapiche. Via Deus nos seus sonhos e ouvia o chamado de Deus de que falava o padre José Pedro. E se voltou de todo para Deus, ouvia a voz de Deus, rezava ante os quadros que o padre lhe dera. No primeiro dia começaram a mofar dele no trapiche. Ele espancou um dos menores, os outros se calaram. No outro dia o padre disse que ele fizera mal, que era preciso sofrer por Deus, e Pirulito então dera a sua navalha quase nova ao menino que espancara. E não espancara mais nenhum, evitava as brigas e se não evitava os furtos era que aquilo era o meio de vida que eles tinham, não tinham mesmo outro. Pirulito sentia o chamado de Deus, que era intenso, e queria sofrer por Deus. Ajoelhava horas e horas no trapiche, dormia no chão nu, rezava mesmo quando o sono o queria derrubar, fugia das negrinhas que ofereciam o amor na areia quente do cais. Mas então amava Deus- pura-bondade e sofria para pagar o sofrimento que Deus passara na terra. Depois veio aquela revelação de Deus justiça (para Pirulito ficou Deus-vingança) e o temor de Deus invadiu o seu coração e se misturou ao amor de Deus. Suas orações foram mais longas, o terror do inferno se misturava à beleza de Deus. Jejuava dias inteiros e sua face ficou macilenta como a de um anacoreta. Tinha olhos de místico e pensava ver Deus nas noites de sonho. Por isso conservava seus olhos afastados das nádegas e seios das negrinhas que andavam como que dançando ante os olhos de todos nas ruas pobres da cidade. Sua esperança era um dia ser sacerdote do seu Deus, viver só para a sua contemplação, viver só para Ele. A bondade de Deus fazia com que ele esperasse consegui-lo. O temor de Deus vingando-se dos pecados de Pirulito fazia com que ele desesperasse.

E é esse amor e esse temor que fazem Pirulito indeciso ante a vitrina nesta hora de meio-dia, cheia de beleza. O sol é brando e claro, as flores desabrocham no jardim, vem uma calma e uma paz de todos os lados. Mas, mais belo que tudo é a imagem da Conceição com o Menino, que está na prateleira daquela loja de uma só porta. Na vitrina, quadros de santos, livros de orações em encadernações luxuosas, terços de ouro, relicários de prata. Mas dentro, bem na ponta da prateleira que chega até a porta, a imagem da Virgem da Conceição estende o Menino para Pirulito. Pirulito pensa que a Virgem está a lhe entregar Deus, Deus criança e nu, pobre como Pirulito. O escultor fez o Menino magro e a Virgem triste da magreza do seu Menino, mostrá-lo aos homens gordos e ricos. Por isso a imagem está ali e não se vende. O Menino nas imagens é sempre gordo, um ar de menino rico, um Deus Rico. Ali é um Deus Pobre, um menino pobre, mesmo igual a Pirulito, ainda mais igual àqueles mais novos do grupo exatamente igual a um de colo, de poucos meses de idade, que ficou abandonado na rua no dia que sua mãe morreu de um ataque, quando levava nos braços, e que João Grande trouxe para o trapiche, onde ficou até o fim da tarde (os meninos vinham e espiavam e riam do Professor e do Grande, afobados para arranjar leite e água para o bebê) quando a mãe-de-santo Don’Aninha viera e o levara consigo, recostado ao seu seio. Só que aquele era um menino negro e o Menino é branco. No mais a parecença é absoluta. Até uma cara de choro tem o Menino, magro e pobre, nos braços da Virgem. E esta o oferece a Pirulito, aos carinhos de Pirulito, ao amor de Pirulito. Lá fora o dia é lindo, o sol é brando, as flores desabrocham. Só o Menino tem fome e frio neste dia. Pirulito o levará consigo para o trapiche dos Capitães da Areia. Rezará para ele, cuidará dele, o

Documentos relacionados