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4 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

4.3 Discussão dos Resultados das análises

Resgato a seguir as perguntas de pesquisa que nortearam a proposta desse trabalho:

(a) Que escolhas no sistema da Transitividade contribuem para possibilitar a crítica social em Capitães da Areia?

A análise da Transitividade apresenta resultados reveladores. O autor não esconde a vida criminosa dos meninos, haja vista a ocorrência reiterada de Processos Materiais que constroem o sentido de marginalidade na vida dos menores. Nesses Processos, os Atores, na maior parte dos casos, sãoas crianças e a condução da narrativa parece camuflar o sentido de fragilidade. Quando, porém, essa representação é confrontada com os Processos Materiais em que Jorge Amado expõe a rigidez das autoridades como Atores das medidas repressivas, revelam-se aí as forças em desequilíbrio. No confronto desses elementos, fica clara a crítica social que permeia todo o romance.

Os Processos Relacionais são importantes na medida em que determinam as identidades desses seres sociais (Estado, Igreja, sociedade e meninos de rua) e, por meio dessas representações, revelam quão desigual é essa balança.

Por meio de divagações ― representadas no enredo por Processos Mentais e externadas por Processos Verbais na fala do padre, de Pirulito e do inconformado João de Adão ― o autor revela o lado humano de seres que precisam lutar desde a infância para sobreviver, seres cujo comportamento foi determinado pelo abandono a que foi relegada sua existência.

Para a Linguística Crítica (FOWLER, 1991), qualquer aspecto da estrutura linguística carrega significação ideológica, ou seja, cada escolha tem sua razão de ser (LI, 2010). É nesse sentido que a orientação política e ideológica de Jorge Amado determinou as escolhas lexicogramaticais na composição de Capitães da

Areia. Uma análise crítica criteriosa nos revela as condições sociais de produção

desse modelo peculiar de literatura (KITIS, MILAPIDES, 1997). Assim, ao escrever alinhando seu texto a uma linguagem mais coloquial e próxima do povo, Jorge Amado produz um discurso coerente com a proposta de engajamento político a que se filiou, em que persiste o sentido da denúncia.

A análise por meio dos recursos teórico-metodológicos da Gramática Sistêmico-Funcional (HALLIDAY, 1985, 1994; HALLIDAY; MATHIESSEN, 2004) permitiu relacionar a microestrutura das escolhas léxicogramaticais do texto com a macroestrutura das relações de poder do discurso. Nesse sentido, o sistema da Transitividade ofereceu as categorias analíticas que mostram as funções semânticas de cada escolha, para, no decorrer do texto, por meio do processo de logogênese, toda gama de valores implicados desvendam a ideologia que percorre o texto amadiano.

(b) Que escolhas no sistema da Avaliatividade realizam também essa função?

A respeito da avaliatividade, a noção de prosódia (LENKE, 1998) ― a avaliação que se estende em todo desenvolvimento da narrativa ― favorece ao que Macken-Horarik (2003) chama de leitura relacional. Essa concepção de leitura é importante à medida que faz emergir do texto de Jorge Amado a crítica em relação à estrutura social de poder constituído e às instituições que o compõem, bem como confirmar a posição antagônica e vulnerável dos menores abandonados.

Conforme indicam as ocorrências, Jorge Amado prefere estruturas linguísticas de avaliatividade explícita ― “sociedade mal organizada”, “a culpa era dos ricos”, “semelhantes atentados”, ― denominadas também de expressões de Atitude

inscritas.

Há, entretanto, algumas ocorrências de avaliações implícitas (tokens de Atitude) ao longo da narrativa como, por exemplo, “eficiência da polícia”, que traz implicitamente uma apreciação negativa. Ora, não há nada de positivo quando, de forma sutil, revela-se o caráter brutal dessa instituição que, no contexto da Ditadura, servia apenas para perseguir e punir e nunca para proteger, mesmo em se tratando de menores abandonados.

Dessa forma, as avaliações evocadas (implícitas) como “os ricos”, “obediência” da polícia à lei se revelam no processo da prosódia, ou seja, são assim (positiva ou negativa) consideradas porque fazem parte daquilo que seria funcionalmente uma única avaliação, mas que se encontram espalhadas pelo texto.

Para Macken-Horaric (2003), por meio de uma leitura relacional, estabece-se uma relação semântica entre diversas fases do texto. Nesse sentido, Jorge Amado

faz uso da sobreposição de fases. Essas escolhas avaliativas do autor vão construindo metarrelações de oposição e transformação entre uma fase e outra.

Em determinados trechos, aparecem com certa frequência elementos de Atitude que comportam apreciações e avaliações sociais negativas no que se refere ao modo de vida dos meninos abandonados (“bando de crianças delinquentes”, “assalto”, “atentados”, “castigo merecido”, “ferir com navalhas ou punhal”). Entretanto, há fases em que são projetadas as visões e sentimentos de personagens como o padre José Pedro e Pirulito (“os capitães da areia eram bons”, “eram amigos uns dos outros”, “o padre queria dar escola, carinho, conforto aos

meninos”), proporcionando uma espécie de compensação desse estigma social

(“não ter casa, nem pai, nem mãe”). É nesse sentido que essas metarrelações possibilitam que os leitores assumam atitudes específicas em relação aos personagens e fatos no decorrer da narrativa (“e pensando em Deus, pensou

também nos capitães da areia”). Essa empatia acaba contribuindo para uma

percepção ética do leitor e uma tomada de consciência em relação aos problemas coletivos, interferindo, assim, em crenças e valores dos leitores.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente pesquisa tratou da obra Capitães da Areia, de Jorge Amado ― um autor imbuído de preocupações políticas e uma história militante. A obra, no que se refere à questão dos menores abandonados, reveste-se de um caráter diacrônico ao esboçar um painel da realidade brasileira de forma clara e contundente, despertando no leitor um olhar agudo e o lado da solidariedade, sensível à dor do outro.

Como pesquisador na área da Linguística Aplicada, a leitura de Capitães da

Areia me fez refletir sobre as críticas mais acirradas de que a obra de Jorge Amado

foi alvo e o preconceito por parte de uma elite literária que censurou ostensivamente sua escrita pouco ortodoxa, seus pronomes colocados de forma tão rebelde e seu descaso com alguns padrões gramaticais. Entretanto, a Gramática Sistêmico- Funcional (HALLIDAY, 1994; HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004) e suas ampliações como a Linguística Crítica (FOWLER, 1991) e a Avaliatividade (MARTIN, 2000, 2003) ― que servem de base para esse estudo ― me auxiliaram na identificação das estruturas de linguagem específicas que contribuíram para o significado que o texto de Jorge Amado revela.

Em relação ao texto literário, meu interesse aqui foi compreender que escolhas semânticas em Capitães da Areia determinaram o sentido do discurso político-ideológico da obra.

Para Halliday (1985), o uso é a marca fundamental de caracterização de uma língua. É nesse sentido que, por meio de uma análise da microestrutura do texto em

Capitães de Areia, compreendemos a genialidade do autor expressa nas inúmeras

possibilidades representacionais do seu texto que oscila entre documento literário e poesia.

Além disso, para a Linguística Crítica (FOWLER,1991), as diferenças de expressão implicam distinções ideológicas. Por isso, em Capitães da Areia, o problema do abandono e a crítica social subjacente são retratados numa instância de linguagem coloquial, própria da literatura oral, quase em estado puro. Aí reside toda a beleza do texto amadiano que tem um propósito comunicativo específico (FAIRCLOUGH, 1992), diretamente relacionado ao contexto de produção, de consumo e de circulação a que se destinou na época de sua publicação.

Faz-se necessário lembrar que a crítica social na obra está subjacente a um contexto de repressão que permeia muitas obras do autor e percorre os demais

contextos de situação e cultura na década de 30. Por esse motivo, as escolhas lexicogramaticais de Jorge Amado em Capitães da Areia viabilizam a Avaliatividade predominantemente de forma explícita, o que aproxima seu texto de um público mais leigo, estabelecendo empatia e cumplicidade entre autor, personagem e leitor.

Com este estudo pretendi mostrar que uma análise linguística com base na microestrutura textual, principalmente no que se refere ao gênero literário, pode trazer ao professor subsídios para uma análise literária mais fecunda e menos preconceituosa. Quando o professor de língua e literatura se despoja dessa visão mais elitista presente nos meios acadêmicos ― e a análise por meio das metafunções da GSF possibilita esse olhar diferenciado ― os alunos aprendem a ouvir o texto e descobrir em que medida ele é ou não coerente com suas propostas latentes. Todas essas constatações, portanto, criam possibilidades para o aluno desvelar as diversas ideologias que permeiam os discursos, inclusive aqueles que se revestem de um esnobismo intelectual ancorado nos cânones literários.

Por fim, meu registro aqui é no sentido de apontar o quanto foi enriquecedor para mim como professor, e também como leitor, conhecer a teoria da Gramática Sistêmico-Funcional, a qual me trouxe subsídios dos quais eu não dispunha para fazer uma análise mais profunda e, no caso da obra de Jorge Amado, estabelecer uma ponte entre o erudito e o popular a fim de compreender a originalidade literária desse autor. Também a Teoria da Avaliatividade, que me apresentou a possibilidade de reconhecer elementos de caráter avaliativo, não reconhecidos na sintaxe da gramática tradicional, mas que, de maneira implícita ou explícita, são inerentes ao ato discursivo; e a Linguística Crítica, que tem como meta "a recuperação dos sentidos sociais expressos no discurso pela análise das estruturas linguísticas à luz dos contextos interacionais e sociais mais amplos” (FOWLER et al., 1979, p.195- 196).

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ANEXO 1

Resumo de Capitães da Areia

O romance apresenta um Prefácio e três partes subdivididas em capítulos variados.

O Prefácio ― cartas à redação de um jornal de Salvador ― é um pretexto para que o romance se

inicie. Nele fica evidente o confronto entre classes sociais: meninos infratores de um lado e poderosos de outro, representados aqui pela polícia, instituições como o Reformatório de menores e a Igreja católica, dura e convencional.

Na primeira parte ― Sob a lua num velho trapiche abandonado ― o narrador apresenta os

componentes do bando e conta suas aventuras. Formado por meninos de rua entre 8 e 16 anos, o grupo se refugia num armazém abandonado. Pedro Bala é o líder, como ficam evidenciadas desde o início suas características de herói. Filho de um líder grevista morto por uma bala, o jovem de 15 anos é o único loiro entre crianças mulatas e negras.

Os demais garotos também compartilham de histórias de abandono e miséria. Professor é o único que sabe ler no grupo, furta livros e conta histórias aos meninos, sabe desenhar muito bem. Sem-Pernas é coxo, daí seu apelido. Sua deficiência e agressões que sofreu na polícia tornaram-no agressivo, debochador e egoísta. Pirulito, um garoto magro e alto, sonha em seguir vida religiosa. Gato é simulador, malandro típico que gosta de prostitutas. João Grande é um rapaz forte e protetor dos menores. Boa-vida, mulato feio e malandro, capoeirista e compositor de sambas.

Há também personagens que, embora não vivam no trapiche, exercem forte influência sobre a vida dos garotos. São eles João de Adão e Padre José Pedro. Aquele é um estivador negro fortíssimo, antigo grevista que conhecera o pai de Pedro Bala. Este, religioso que acredita poder ajudar os capitães, é um homem simples e de pouca inteligência. Entretanto, sua compreensão de fé e justiça diverge totalmente das concepções do clero na época. É censurado por ajudar os meninos e até advertido pelo arcebispo por manter contato com os garotos “bandidos”, no dizer das beatas.

A segunda parte ― Noite da grande paz, da grande paz dos teus olhos ― destaca a figura de Dora, uma garota de 13 para 14 anos, cujos pais foram mortos pela varíola. Perambulando pelas ruas com seu irmãozinho, é levada ao trapiche por João Grande e Professor. Lá, os garotos querem estuprá-la, mas Pedro Bala e João Grande não permitem. Dora se integra no grupo e os capitães passam a vê-la como a mãe e irmã que não possuem. A necessidade afetiva desses menores carentes encontra na bondade sincera de Dora um bálsamo para os seus sofrimentos e carências maternais. Independente de sua condição feminina, ela passa a participar das ações do grupo e assumir seu amor por Pedro Bala, ainda que não passe de algo pueril. Numa das ações dos capitães Pedro Bala e Dora são presos, mas os outros meninos do bando conseguem fugir. Dora é levada a um orfanato e Pedro Bala ao Reformatório de Menores. Nessas instituições, ficam evidentes as péssimas condições de higiene, alimentação ruim e castigos físicos e psicológicos. Pedro Bala, com a ajuda dos capitães da areia, consegue fugir e salvar Dora do orfanato. Ambos estão fracos e doentes. Dora finalmente se entrega ao amor de Pedro Bala e morre. Nesse momento dramático do romance, encerra-se um ciclo na vida dos garotos. A morte de Dora representa o surgimento dos ideais de cada um dos meninos. Sua morte é o encerramento de um ciclo e começo de outro.

Na terceira parte ― Canção da Bahia, canção da liberdade ― resolvem-se os destinos dos capitães da areia. Temos nesse momento o retrato da marginalização definitiva de uns em contraste com a redenção de outros. Através do contato com um senhor que se interessa pelo talento do garoto, Professor parte para estudar pintura no Rio de Janeiro, tornando-se um célebre pintor que retrata crianças pobres. Pirulito torna-se frade capuchinho. Após assalto, Sem-Pernas é encurralado pela polícia e, para não ir para a cadeia, suicida-se, atirando-se do alto do elevador Lacerda. O Gato muda-se para Ilhéus com sua amante Dalva, tornando-se um estelionatário conhecido. João Grande

torna-se marinheiro. Pedro Bala segue seu destino e torna-se líder de grupos revolucionários e comunistas, acompanhando a trajetória do pai, morto durante uma greve de estivadores do porto.

ANEXO 2

“Deus sorri como um negrinho”

NOTA: Os trechos analisados estão sublinhados.

O menino era tentação por demais grande.

Nem parecia um meio-dia de inverno. O sol deixava cair sobre ruas uma claridade macia, que não queimava, mas cujo calor acariciava como a mão de uma mulher. No jardim próximo as flores desabrochavam em cores. Margaridas e onze-horas, rosas e cravos, dálias e violetas. Parecia haver na rua um perfume bom, muito sutil, mas que Pirulito sentia entrar nas suas narinas e como que embriagá-lo. Tinha comido na porta de uma casa de portugueses ricos as sobras de almoço que fora quase um banquete. A criada, que lhe trouxera o prato cheio, dissera, mirando as ruas, o sol de inverno, os homens que passavam sem capa:

– Tá fazendo um dia lindo.

Essas palavras foram com Pirulito pela rua. Um dia lindo, e o menino ia despreocupado, assoviando um samba que lhe ensinara o Querido-de-Deus, recordando que o padre José Pedro prometera tudo fazer para lhe conseguir um lugar no seminário. Padre José Pedro lhe dissera que toda aquela beleza que caía envolvendo a terra e homens era um presente de Deus e que era preciso agradecer a Deus. Pirulito mirou o céu azul onde Deus devia estar e agradeceu num sorriso e pensou que Deus era realmente bom. E pensando em Deus pensou também nos Capitães da Areia. Eles furtavam,

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