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3.3 Identidade e Posicionamentos

4.4.5 Análise de dados

As falas gravadas foram interpretadas com base em um processo de análise narrativa. Há diferentes formas de executar tal análise. Autores como Bamberg & Georgakopoulou (2008), Bamberg (2005, 2012), Barrett & Stauffer (2009) refletem acerca da análise de narrativas e apresentam propostas concernentes a esta perspectiva. Os autores convergem ao atribuírem ao processo de investigação narrativa uma ferramenta importante para os estudos sobre identidade. Através da análise narrativa, o pesquisador se aproxima dos sentidos de si elaborados pelos participantes em interação com si mesmos, com o outro e com a cultura (Moutinho, & Conti, 2016).

O modelo de análise narrativa a ser explicitado parte da abordagem explorada por Bamberg em seus estudos (1997, 2012b). Destaca-se que, para Bamberg (2012b), a narrativa é mais que um texto, mas uma prática. Ao estudar narrativas, é preciso destacar conteúdos textuais, gestos, silêncios e demais aspectos que auxiliem a contextualizar o conteúdo narrado. As narrativas evidenciam trajetórias que transitam entre passado e presente, dialogando com intencionalidades e expectativas futuras.

Segundo o autor, ao conceber a narrativa como contexto de análise, ela apresenta-se em duas dimensões: a) a dimensão da experiência, na qual o indivíduo relata através do processo narrativo as experiências que viveu; e b) a dimensão dos meios e ferramentas utilizadas pelo indivíduo para dar sentido à narrativa. O primeiro refere-se ao já citado processo de análise de narrativa (research with narrative), e o segundo refere-se ao processo de análise narrativa (research on narrative). É possível, portanto, que o pesquisador foque seu trabalho analítico priorizando uma das dimensões, a partir do que se encaixa melhor à sua pesquisa. Bamberg (2012b), entretanto, sinaliza que esta segmentação é didática e que ambas as dimensões acabam sendo abarcadas durante uma pesquisa que adota a narrativa.

Uma questão fundamental ao se realizar uma análise narrativa neste modelo é identificar os posicionamentos. Bamberg (2012a, 2012b) explana que a partir da narrativa é possível perceber como o indivíduo se posiciona e, desta forma, abre-se espaço para identificar questões relevantes acerca da agentividade deste indivíduo, ou seja, sua forma ativa de ser-no-mundo e de interpretá-lo. Moutinho e Conti (2016) e Deppermann (2013) apresentam a concepção de posicionamento trazida por Bamberg, explicitando como o estudo destes posicionamentos opera durante o processo de análise narrativa. Compreende-se aí o objetivo central da análise narrativa, nesta perspectiva: compreender como o indivíduo interpreta a si mesmo e cria significados e – consequentemente – ações no mundo a partir destas interpretações.

Bamberg busca integrar uma proposta que compreende o indivíduo como “ser posicionado” (na qual o a direção mundo-sujeito predomina, sendo o sujeito menos ativo no processo) e uma proposta que versa sobre o indivíduo que “posiciona a si mesmo” (na qual a direção predominante é a sujeito-mundo, sendo este mais ativo no processo). “A posição, nesse entendimento, é defendida como uma construção de sentidos na qual o narrador assume um lugar moral” (Moutinho & Conti, 2016, p. 2), no qual entra em jogo a agentividade da pessoa. Conforme relatado, a pessoa varia seus posicionamentos considerando três instâncias: a) a posição que o indivíduo ocupa perante ele mesmo durante a narrativa (Eu-Eu); b) a posição em que o indivíduo ocupa entre os outros personagens da narrativa (Eu-Outro); e c) a posição em que o indivíduo ocupa entre ele e o discurso dominante no qual se insere (eu-narrativa

dominante). Nesse último caso, a identificação do discurso dominante depende do foco da

investigação, embora este foco não impeça o narrador de posicionar-se em relação a outros discursos. Neste estudo, o discurso dominante elencado para contraste é o discurso jurídico sobre a infância e adolescência proposto pelo ECA. Esse público é tomado como prioritário para as políticas públicas e cabe ao Estado, à família e à sociedade a sua proteção e garantia de direitos. Demais aspectos sobre essa narrativa dominante serão apresentados ao longo das discussões.

Essas posições se apresentam de múltiplas formas ao longo da narrativa, não assumindo um caráter estanque ou sempre explicitamente delimitado. A análise destes posicionamentos torna possível compreender melhor como o indivíduo que narra concebe sua participação na cultura e como opera diante desta. Daí a relevância dessa modalidade de análise em estudos que abordam a questão da identidade. Compreender a narrativa como um processo de construção constante de posicionamentos e não a restringindo a uma verdade sobre o passado permite a análise dos dados aqui produzidos através da perspectiva teórica adotada.

Cabe pontuar que Bamberg e colaboradores (Bamberg, 1997, 2007, 2010; Bamberg & Georgakopoulou, 2008; Korobov & Bamberg, 2006) têm voltado suas análises às chamadas “pequenas histórias”. Tais histórias são produzidas nos diálogos cotidianos e casuais, não aparecendo como respostas expressas a perguntas que demandam narrativas extensas. Bamberg (2007, 2010) advoga a favor da relevância das pequenas histórias para a compreensão dos posicionamentos diante da narração. Entretanto, esta pesquisa se vale das chamadas “grandes histórias” que, segundo Freeman (2010), apresentam semelhante capacidade de acesso ao processo de construção identitária, por dar espaço ao processo reflexivo dos sujeitos que, ao serem inquiridos, remontam a memórias pessoais e autobiográficas que endossam a narrativa. O estudo das grandes narrativas pode ser preterido quando o interesse do pesquisador se volta a fenômenos que dificilmente serão debatidos em situações cotidianas, por apresentarem uma representação subjetiva negativa, ou serem tabus em uma dada comunidade, por exemplo.

Neste contexto de pesquisa, o debate sobre desinstitucionalização – em especial, a compulsória por maioridade – é uma atitude que, apesar de fazer parte do cotidiano institucional, ainda é permeado por conteúdos subjetivos que geram hesitação e dificilmente emergiria em situações corriqueiras. Deste modo, corrobora-se aqui com a perspectiva de Moutinho (2010) que apresenta a fragmentação de grandes histórias em unidades menores com sentido. Esses fragmentos, aqui nomeados excertos, operam como pequenas histórias com enredo próprio que compõem a narrativa maior. Mantém-se, entretanto, a concepção de

narrativa adotada pela perspectiva de Bamberg aqui pontuada, sendo tratada como um ato de produção constante e não como uma representação literal do passado.

Moutinho e Conti (2016) apresentam um grupo de indicadores analíticos que lastreiam a análise narrativa. Esses indicadores são utilizados para guiar o pesquisador no processo de análise, pois a identificação desses elementos corrobora a identificação dos aspectos de coesão do texto e permitem o seu encaixe à proposta teórica adotada. São estes: personagem (os agentes presentes na narrativa), atividade (as ações executadas), recursos explicativos (justificativas de ações e qualidades atribuídas pelo narrador), qualificadores e contexto (tempos e espaços que emergem na narrativa). As autoras abrem espaço para que outros indicadores surjam, caso a pesquisa exija.

Sugere-se que o pesquisador identifique esses indicadores ao longo da narrativa, tornando lúcido o modo como eles emergem em quaisquer dimensões de posicionamento que o indivíduo esteja executando. O pesquisador pode optar por organizar os dados em tabelas, separando-as por tema abordado, contexto narrado, personagens, posicionamentos ou quaisquer categorias relevantes para a pesquisa. Cabe ao pesquisador, nesse processo, identificar tensões, lacunas e contradições que surjam ao longo da narração.

O estudo das identidades a partir dessa teoria possibilita ao pesquisador explorar dilemas clássicos das abordagens que trabalham com a noção de posicionamento: constância e mudança, especificidade e universalidade, agentividade e influência do mundo externo (Deppermann, 2013). A identidade aqui não é entendida como estrutura, mas como posicionamento que emerge diante dos contextos em que o indivíduo opera. Em contrapartida, a instituição possui acompanhamento psicológico para as adolescentes em situação de abrigamento e, caso necessário, será possível fortalecer esse acolhimento.