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Ao longo do tempo, as ciências humanas e sociais adotaram diferentes conceitos para definir identidade. Tais conceitos subjazem a paradigmas e perspectivas teóricas que buscam explicar o ser humano a partir de visões próprias. Tantas perspectivas geraram diferentes formas de caracterizar identidade, que ora é tratada como propriedade do indivíduo, ora como produto emergente nas relações sociais; ora localiza-se na mente, ora nos comportamentos concretos; ora existente independente do contexto em que o indivíduo se encontra, ora apenas manifestada diante das configurações sociais em que a pessoa se localiza (De Fina & Georgakopoulou, 2011).

Rich (2014) destaca quatro categorias que, cronologicamente, marcaram as concepções acolhidas pelas ciências sociais acerca da identidade: a) a visão racionalista, lastreada pelos ideais iluministas, na qual a identidade era uma característica inerente humana, estando ela localizada internamente no indivíduo; b) as visões sociais, marcadas pelas teorias de autores como Marx e Freud, que buscavam compreender a identidade humana a partir de seu diálogo com o exterior, tendo seu foco as relações interpessoais, ou a interação com a organização social

para além das particularidades do indivíduo; c) as visões pós-modernas, que sustentam-se na égide do homem biopsicossocial e questionam possíveis determinismos vinculados à visão anterior e defendiam uma noção de self mais dinâmica, que se transformam continuamente quando em contato com sistemas culturais e relações interpessoais complexas, sem deixar de lado a agência do indivíduo nesse processo (Farias & Souza, 2011); d) mais recentemente, observa-se uma visão acerca da formação identitária baseada na concepção de humano enquanto ser constituído na linguagem. Adota-se, nessa perspectiva, um paradigma com base na noção de self narrativo, cuja construção decorre das trocas simbólicas presentes no intercâmbio entre os indivíduos e sociedade. Esta concepção se baseia em uma visão de identidade em constante construção e formada nesse diálogo entre indivíduo e cultura, no qual a pessoa constitui-se como ser de linguagem e possui um papel ativo nas relações sociais.

A partir da chamada virada linguística das ciências humanas e sociais, autores como Valsiner (2001, 2012) e Bruner (1991, 1987) propõem uma nova forma de abordar a psicologia em interface com a cultura. Nesta perspectiva, a ênfase é dada aos processos facilitados pela cultura, sendo esta uma provedora de ferramentas e signos que permitem ao indivíduo a construção de sentidos e a organização da prática social. Neste contexto, a linguagem emerge com um importante papel para o desenvolvimento humano, pois opera como uma ferramenta essencial “no processamento do mundo, no planejamento e na ação humana” (Correia, 2003, p. 509).

Dada a importância da linguagem e dos discursos e compreendendo sua relevância diante das trocas entre indivíduo e sociedade, entende-se que a forma de ter acesso e interpretar os dados provenientes deste campo de estudo é através da narrativa, visto que “a narrativa

possui características que a colocam em um lugar relevante na investigação da mente, tais como sequencialidade de eventos e envolvimento de estados mentais” (Correia, 2003, p. 509).

Este trabalho parte de uma vertente narrativista, a qual compreende identidade a partir de uma noção historiada de self. Ou seja, entende-se aqui que há uma construção de sentido de si a partir do processo narrativo, já que, segundo Oliveira (2006), este se expressa na forma de histórias – vividas, contadas, recontadas e intersubjetivamente transformadas. Guanes e Japur (2003) sugerem que a concepção de self narrativo

Refere-se às narrativas e explicações que as pessoas desenvolvem sobre si mesmas, através da organização temporal de eventos pessoais, quando então estabelecem conexões entre eventos vividos, na tentativa de construção de uma história que as tornem inteligíveis a elas mesmas e aos outros (p. 140).

Ou seja, a perspectiva narrativista assume que a pessoa se vale de recursos narrativos no intuito de elaborar as experiências vividas que, por sua vez, constituem uma noção de identidade que é sempre contextualizada. Conceber a identidade como um processo contextualizado implica em assumir que essa só possui materialidade quando observada no curso da experiência. Identidade é um processo dinâmico que se constrói continuamente na prática social. Por prática social, compreende-se toda interação, construções de sentido e trocas simbólicas entre indivíduo e mundo. Portanto, nesta perspectiva, não é possível estabelecer uma definição de identidade como estrutura rígida e definitiva. Esta se configura a partir da relação da pessoa consigo mesma, com os demais e com o mundo, então só pode ser compreendida quando tais referências são situadas em sua análise.

Destaca-se que o estudo das narrativas como ferramentas de construção de sentido e, portanto, vias de acesso às experiências de quem narra, segue em diferentes linhas. Genette (1988) adota três definições no intuito de abordar a narrativa e os processos que a transpassam. A primeira definição é a de história (story), que se refere ao conteúdo narrado, com ênfase aos fatos que estão sendo relatados pelo narrador. Uma segunda definição é a de narrativa (narrative), referindo-se ao discurso, seja ele oral ou escrito, utilizado para narrar a história desejada. Esta definição enquadra a narrativa como uma ferramenta discursiva que objetiva narrar histórias factuais ou não. Por fim, há a narração (narration). Esta definição refere-se ao ato de narrar. Neste ato, são empregados recursos cognitivos e discursivos de modo que o processo se apresente e repercuta conforme o intuito de quem narra. Ou seja, o narrar apresenta intencionalidade como característica fundamental.

Neste sentido, Bamberg (2007) advoga que, mais do que uma fotografia estática do que já ocorreu, as narrativas são ações e, como tais, exercem influência em tempo real na construção do self daquele que narra. O ato de narrar convoca o narrador a elaborar estratégias sobre o que dizer, sobre a forma adequada de transmitir o que se deseja e quais as possíveis e prováveis implicações daquilo que é narrado. Isso ocorre concomitantemente a um resgate de experiências passadas em diálogo com aspectos presentes e prospectivos. Para o autor, em contraste com uma visão de narrativa que toma como foco o “sobre o quê se fala”, é fundamental observar que há uma sobreposição dos tempos no ato de narrar, já que “o momento de narrar se

desenvolve como uma reação ao passado imediato da interação e, deste modo, orientado para o futuro: há uma antecipação da resposta que a audiência dará” (Bamberg, 2007, p. 3,

tradução nossa). Esta afirmação ratifica uma noção de narrativa ativa e orientada, não apenas operando como registro do passado.

Ao refletir acerca do papel das narrativas na construção de configurações do self, Bruner (1987) ressalta que a narrativa é a forma de representar a experiência vivida. De modo dialógico, as narrativas agem sobre a experiência ao passo que o indivíduo busca nelas as redes de significações que o orientam na prática social. Segundo o autor (Bruner, 1991), esta perspectiva fornece maiores explicações acerca do processo de representação do mundo e das experiências do que as visões que atribuem um modelo lógico-científico de formação da mente. Bruner enfatiza, portanto, que as experiências, organizadas em formato de narrativas, funcionam sob uma lógica que transcende o empirismo e representam melhor o diálogo e a convenção entre o indivíduo e a cultura.

Oliveira (2006) destaca que a narrativa possui dois vieses: a prática social, na medida em que está presente nas trocas sociais; e a autoepistemologia, pois o ato de contar uma história é uma atividade “por meio da qual o sujeito se reconhece e se transforma, ao engendrar novos

significados e comportamentos e ao tomar posição frente a eles, numa perspectiva ética” (p.

431). Ao realizar uma narrativa, seja ela sobre si próprio, sobre o outro ou ficcional, o indivíduo apresenta sobre quais aspectos ancora seu posicionamento diante das situações narradas. Este processo aprofunda o indivíduo na construção de repertórios sociais (Bamberg, 2012), guiando suas práticas e concepções.

Ao constituir uma narrativa, a pessoa dialoga consigo mesma e com a história e cultura na qual está imersa. Gergen (1994) aborda a importância do outro, enquanto coparticipante na organização do self. Segundo o autor, ao desenvolver uma narrativa, a pessoa traz outros indivíduos relevantes, que atuam como apoiadores deste processo construtivo. O self, portanto,

“não é fundamentalmente uma propriedade do indivíduo, mas dos relacionamentos – produto do intercâmbio social” (p. 186).

Em concordância com este paradigma, Falmagne (2004) afirma que o self se constitui tomando por base três instâncias, que dialogam constantemente: a) o nível macro, ou societal; b) o nível local e; c) o nível ontológico. O nível societal é composto pelos discursos hegemônicos, transmitidos na socialização, e pela base material-histórica na qual estes discursos se sustentam. O nível local se relaciona com o papel social ocupado pelo indivíduo (por exemplo, a posição de mulher, de abrigada, de usuária de substância psicoativa etc.). Por último, o ontológico, que versa sobre a particularidade de cada indivíduo. Para compreender a constituição do self, é necessário entender como estas instâncias dialogam e como o indivíduo se constitui e se relaciona a partir disso.

Nessa proposta teórica, Campos (2011) traz o conceito de “identidade” como sendo o enquadre do self diante da prática social. Identidade, portanto, equivale ao self em contexto.

Buscando especificar estas definições, Vieira e Henriques (2014) expressam que a identidade atua como uma qualidade do self, que funciona proporcionando uma “integração sincrônica e

diacrônica do self capaz de situar a pessoa em algum nicho psicossocial” (p. 163). É dessa

forma que a dinâmica do self se relaciona com a performance social de cada indivíduo, em determinado contexto, dialogando constantemente com a realidade em que o indivíduo se insere.

Narrativa e identidade se vinculam, portanto, pois é no ato de narrar que as trocas simbólicas entre pessoa e mundo se evidenciam e se relacionam. É nesse processo que emergem os posicionamentos de quem narra, bem como os recursos discursivos elencados para situá-los diante do contexto vivido.