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CAPÍTULO 1: PERCURSO TEÓRICO DA QUESTÃO DA IMAGEM DE SI NO DISCURSO

1.3 As retomadas contemporâneas da noção de ethos

1.3.4 Análise do Discurso Crítica

O levantamento bibliográfico realizado para esta pesquisa tende a indicar que o tema do ethos e da imagem de si no discurso não tem sido tratado com frequência pelos principais autores da Análise do Discurso Crítica (ADC). Com efeito, esse tema não parece, ao menos à primeira vista, guardar maior afinidade com a preocupação comum aos teóricos da ADC de “difundir ainda mais a importância da linguagem na produção, na manutenção e na mudança das relações sociais de poder, além de aumentar a consciência de como a linguagem contribui para a dominação de uma pessoa sobre outra, tendo em vista que essa consciência é o primeiro passo para a emancipação” (Vieira, 2002, p. 149). Norman Fairclough (2001), contudo, apresenta uma interessante discussão do tema e formula uma proposta abrangente de entendimento da questão do ethos discursivo, da qual não chega a extrair todas as consequências analíticas.

Usando um tipo de exposição característico de seu trabalho, apoiado em análises de casos concretos, Fairclough introduz a discussão do tema ao associar um comportamento de falta de polidez ao “conceito mais geral de ethos”. Explica que o ethos é a forma como “o comportamento total de um(a) participante, do qual seu estilo verbal (falado e escrito) e tom de voz fazem parte, expressa o tipo de pessoa que ele(a) é e sinaliza sua identidade social, bem como sua subjetividade” (Fairclough, 2001, p. 181- 182). Comparando o comportamento de participantes em situações reais de interação – uma envolvendo uma relação tradicional entre médico e paciente e a outra envolvendo a interação entre um médico adepto de terapias alternativas e holísticas e um paciente – o autor caracteriza o primeiro como exemplo de ethos científico e o segundo como ilustrativo de “um ethos do mundo da vida”. Essa caracterização parte do pressuposto de que o comportamento dos participantes de situações de interação – em especial seu desempenho verbal – sinaliza sua identidade.

Do ponto de vista analítico, a inferência do ethos dos dois participantes acima mencionados implica pouco mais do que a identificação de uma categoria que possa caracterizar um conjunto de traços de comportamento. A definição apresentada por Fairclough, contudo, traz a grande virtude de reconhecer na intertextualidade a matriz do reconhecimento do ethos:

A questão do ethos é intertextual: que modelos de outros gêneros e tipos de discurso são empregados para constituir a subjetividade (identidade social, ‘eu’) dos participantes de interações? No caso do exemplo 1, os modelos foram tirados do discurso científico; no caso do exemplo 2, de discursos do mundo da vida.

A constituição de imagens discursivas dos sujeitos se faz por meio de “projeção de ligações em determinadas direções intertextuais de preferência a outras” (Fairclough, 2001, p. 207-208). Pode-se entender que a margem de escolha à disposição dos sujeitos pressupõe que esses não são inteiramente assujeitados pela formação discursiva. Ao contrário, são sujeitos ativos, habilitados a operar escolhas e a interferir na construção de sua imagem. Está evidente a relação entre esta noção de ethos e a vertente crítica de Análise do Discurso adotada por Fairclough, que enxerga na linguagem um instrumento de emancipação.

Se a análise levada a cabo por Fairclough tem um alcance relativamente limitado, ainda que fuja do determinismo de outras correntes, ele amplia consideravelmente o alcance do conceito de ethos:

O conceito de ethos constitui um ponto no qual podemos unir as diversas características, não apenas do discurso, mas também do comportamento em geral, que levam a construir uma versão particular do ‘eu’. Dentro dessa configuração os aspectos da análise textual nos quais me concentrei neste capítulo – controle interacional, modalidade e polidez – todos têm um papel. Com efeito, a maior parte, se não a totalidade das dimensões analiticamente separáveis do discurso e do texto, tem algumas implicações, diretas ou indiretas, para a construção do ‘eu’. (Fairclough, 2001, p. 209)

Fairclough preconiza maior atenção dos estudos da linguagem para a questão da construção do “eu”, observando que, tradicionalmente, os estudos linguísticos que lidaram com a questão do “eu” se centraram na expressão ou na emotividade, deixando de fora a perspectiva crucial do papel do discurso na constituição ou na construção do “eu”.

Quando se enfatiza a construção, a função da identidade da linguagem começa a assumir grande importância, porque as formas pelas quais as sociedades categorizam e constroem identidades para seus membros são um aspecto fundamental do modo como elas funcionam, como as relações de poder são impostas e exercidas, como as sociedades são reproduzidas e modificadas. Focalizar a expressão, por outro lado, marginalizou completamente a função de identidade como aspecto menor da função interpessoal. (Fairclough, 2001, p. 209)

A preocupação de conceder à função identitária da linguagem seu devido peso está evidente na obra de Fairclough de 2003, em que, entretanto, não é retomado o conceito de ethos. Nessa obra, no contexto da segunda leitura de sua recontextualização da Linguística Sistêmica Funcional, de Halliday (Resende e Ramalho, 2006, p. 56-61), Fairclough propõe usar o termo “Identificação” para caracterizar “um dos três grandes tipos de sentido no texto” (Fairclough, 2003, p. 159), sendo Ação e Representação os

outros dois tipos. O significado identificacional, segundo Fairclough, relaciona-se dialeticamente com os significados acional e representacional.

De certa forma, pode-se entender que a questão do ethos deixa de ocupar um espaço relevante, na teoria de Fairclough, em razão de sua maneira de encarar a identidade, a qual tende a afastá-lo de uma preocupação com uma imagem de si produzida, essencialmente, na instância da enunciação. Para Fairclough, a identidade importa, sobretudo, como capacidade de assumir papéis sociais, formular seus interesses e agir de acordo com eles. Ele critica a ideia, advogada por teorias pós-estruturalistas e pós-modernas, de que a identidade seja um efeito do discurso, construída no discurso. Trata-se, antes de mais nada, de uma questão de consciência: “A consciência de si é uma pré-condição para processos sociais de identificação, para a construção de identidades sociais, inclusive identificação social no discurso e em textos”14. Quando

analisa a construção da “imagem” de homens públicos – Tony Blair, por exemplo – está mais preocupado com a questão da “estetização da política” do que com a instância enunciativa.