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CAPÍTULO 6: A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DE SI PELA REPRESENTAÇÃO DO MUNDO

6.1 Legitimidade e representatividade do Presidente Lula

É importante, de início, ressalvar que a análise deste tema não se confunde com a que se fez no capítulo 4, relativa à apresentação do “eu”. Aqui se trata de examinar os pressupostos da visão que o Presidente Lula apresenta de sua legitimidade e

representatividade singulares, a que já nos referimos algumas vezes ao longo deste estudo.

Esta temática aparece com muita nitidez no trecho do texto I em que o Presidente Lula fala sobre a consciência que tem acerca da responsabilidade que carrega, em razão da expectativa e da esperança geradas por sua eleição: “Embora tenha sido eleito Presidente do Brasil, tenho a nítida noção do que a nossa vitória representa de esperança, não apenas aqui dentro, mas para a esquerda em todo o mundo e sobretudo para a esquerda na América Latina” (I, 18). Este trecho já revela um aspecto de sua singularidade: o fato de ser um presidente de esquerda em um grande país emergente. Essa circunstância aumentaria a exigência em torno de seu governo, o que ele expressa da seguinte maneira:

[...] nós temos que fazer as coisas muito bem pensadas. Porque qualquer Governo, em qualquer país do mundo pode errar e não acontecerá nada, porque é muito normal que os governantes errem, mas eu não posso errar. E não posso errar porque eu não fui eleito pelo apoio de um canal de televisão. Eu não fui eleito pelo apoio do sistema financeiro. Eu não fui eleito por interesse dos grandes grupos econômicos. E eu não fui eleito por obra da minha capacidade ou da minha inteligência. Eu fui eleito pelo alto grau de consciência política da sociedade brasileira, no dia 27 de outubro de 2002.

Encontram-se, neste trecho, elementos que nos habilitam a analisar, em dois níveis, os pressupostos do discurso do Presidente Lula acerca de sua representatividade. Em um nível mais factual, podem-se localizar referências que permitiriam explicar suas derrotas eleitorais anteriores. O Presidente Lula, como locutor, refere-se interdiscursivamente a enunciados que circularam abundantemente em diversos meios – jornalísticos, acadêmicos e outros – e que atribuíram, por exemplo, a eleição do Presidente Fernando Collor de Melo, em 1989, à influência da televisão, ou a eleição do Presidente Fernando Henrique Cardoso, nas eleições presidenciais seguintes (1994 e 1998), ao apoio de grupos econômicos e financeiros. Obviamente, por contraste, o político Lula representaria interesses divergentes daqueles, que não se explicitam neste trecho.

A explicação que o Presidente Lula dá para sua eleição em 2002 (“fui eleito pelo alto grau de consciência política da sociedade brasileira”), portanto, não se refere à natureza dos apoios que recebeu ou dos interesses que o promoveram. Impõe, assim, um outro nível de análise, de caráter mais teórico, para buscar determinar de que lugar é possível afirmar que sua eleição decorra de maior “consciência política da sociedade brasileira”. Colocando a questão em termos bem simples, podemos dizer que esse lugar

certamente não coincide com o dos defensores da democracia liberal, que consideram que os eleitores votam, de acordo com sua consciência e livre arbítrio, nos candidatos que melhor atendem a seus desígnios. Dessa forma, a democracia representativa tenderia a consagrar aqueles que melhor conviessem à vontade soberana da maioria da sociedade.

A perspectiva a partir da qual o Presidente Lula fala é, necessariamente, outra. Para iniciar a análise, é possível partir dos próprios dados fornecidos pelo texto, ainda que, como vimos, sejam de natureza heterogênea. O Presidente Lula afirma explicitamente não ter sido eleito pelo apoio de canal de televisão ou de grupos econômicos. Ora, ao mencionar essa possibilidade de apoios, está-se referindo ao conjunto de mecanismos que influenciam – e, segundo sua visão, influenciaram – os votos do cidadão, já que esses agentes sociais não votam diretamente. Segundo a concepção que parece embasar a opinião manifestada pelo Presidente, esses mecanismos contribuem para conformar e disseminar um conjunto de ideias que correspondem a interesses específicos de determinados estratos da sociedade, mas que são apresentados como se visassem à satisfação da sociedade como um todo. Pode-se, então, entender, que o “alto grau de consciência política da sociedade brasileira”, responsável pela eleição do Presidente Lula, corresponda àquele que permitiu ao eleitorado, segundo essa visão, superar as perspectivas ideológicas que haviam prevalecido anteriormente e sufragar o candidato que atendia melhor aos interesses efetivos, e não ilusórios, da maioria da população.

Ainda que pequemos por simplismo, não avançaremos na fundamentação dessa visão crítica da democracia liberal, para não nos afastarmos da análise de nosso objeto, que, por si só, não nos permitiria ir muito mais longe. Em uma visão mais clássica de esquerda, essa visão fundamentaria a representação na inserção de classe do político. Ainda que o Presidente Lula faça referência a sua origem operária – como no trecho “E não é em qualquer dia, em qualquer mês, em qualquer século que um torneiro mecânico ganha a Presidência da República deste país” (I, 29) – esta não é a visão que prevalece nos textos em análise. No trecho a seguir, o Presidente Lula parece interpretar de que maneira sua atuação política lhe confere uma capacidade singular de representação, ao projetar em outras pessoas as qualidades que parece ver em si:

[...] não faltarei a vocês. Não deixarei de fazer as coisas que temos que fazer. E espero dar a minha contribuição para que outros companheiros ganhem as eleições em outros países do mundo, para que a gente possa, de uma vez por todas, começar a eleger pessoas que tenham mais sensibilidade, pessoas que

tenham mais compromisso, pessoas que acreditem que é possível a gente mudar a História da Humanidade. (I, 43)

Essa percepção difusa de uma legitimidade peculiar, de uma capacidade de representação superior está presente em vários trechos do corpus, como em:

Eu sei a expectativa que estou gerando nas mulheres, nos homens e nas crianças. Eu nunca vi, na História do Brasil, tanta expectativa, tanta esperança e tanta gente pedindo a Deus para a gente acertar. E tanta gente pedindo, não emprego, mas dizendo para mim: “Lula, como é que eu faço para ajudar o nosso Governo a dar certo?” (I, 20)

Trago a Davos o sentimento de esperança que tomou conta de toda a sociedade brasileira. O Brasil se reencontrou consigo mesmo, e esse reencontro se expressa no entusiasmo da sociedade e na mobilização nacional para enfrentar os enormes problemas que temos pela frente. (II, 4)

Talvez a fórmula mais marcante usada para descrever a legitimidade singular que o Presidente Lula se atribui consista justamente na ideia, repetida no texto IV (parágrafo 13), de que sua eleição significou o reencontro do Brasil consigo mesmo. Essa formulação, calcada na imagem de elevada popularidade do Presidente Lula, parece dar margem a alguns questionamentos. Do estrito ponto de vista da democracia representativa, seria possível arguir que sua representatividade não tem razão para arrogar-se superior à de outros presidentes eleitos, em condições semelhantes. Nas ocasiões adequadas, como, por exemplo, no discurso que proferiu em Davos, o Presidente Lula não deixa de recordar também estar ciente de ter sido investido no cargo como representante eleito do povo brasileiro, isto é, de acordo com as regras da democracia representativa:

Sou o Presidente de todo o povo brasileiro e não apenas daqueles que votaram em mim. Estamos construindo um novo contrato social, em que todas as forças da sociedade brasileira estejam representadas e sejam ouvidas. (II, 28)

Depreende-se, portanto, da análise do conjunto do corpus que o Presidente Lula sugere mais de uma forma de caracterizar sua capacidade singular de representar o povo brasileiro, que dificilmente poderia ser enquadrada em um conceito clássico de representante de classe, ou mesmo de líder populista. A relativa oscilação entre as maneiras de apresentar sua representatividade pode atender às exigências das diferentes situações de interação em que se encontra.

Uma análise que pode ser útil no entendimento da imagem que o Presidente Lula procura reforçar acerca de sua representatividade, sobretudo nos primeiros pronunciamentos, é a das ocorrências do item lexical esperança. O vocábulo aparece 4 vezes no texto I (parágrafos 18, 20, 21, 22), 4 vezes no texto II (parágrafos 4, 27, 30,

33) e ressurge nos textos V (parágrafo 87) e VI (parágrafo VI). É sintomático que o vocábulo apareça com mais frequência nos textos iniciais, mais próximos da eleição, pois ele carrega forte carga intertextual, relacionada a um dos slogans de campanha eleitoral de 2002, a emblemática frase “a esperança venceu o medo”. Analisando estruturalmente as quatro ocorrências desse substantivo no texto II, observa-se que ele aparece sempre sem complementos ou adjuntos. Os argumentos que poderiam acompanhar o substantivo, indicando quem experimenta a esperança ou a que objeto ela se dirige, são omitidos, dando a esse vocábulo um valor indefinido e, em alguma medida, mais abstrato. Essa imprecisão do sentido da esperança gera efeitos ideológicos, pois indica uma personificação da esperança no Presidente Lula, compatível com ideia de uma legitimidade singular de que ele estaria investido, como representante do país, conforme a análise que apresentamos.