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CAPÍTULO 1: PERCURSO TEÓRICO DA QUESTÃO DA IMAGEM DE SI NO DISCURSO

1.3 As retomadas contemporâneas da noção de ethos

1.3.3 Análise do Discurso de linha francesa

A Análise do Discurso de linha francesa incorporou a questão do ethos, oriunda da retórica antiga, principalmente no trabalho de Dominique Maingueneau, a partir da

década de 1980. Em texto referente aos elementos que compõem a “cena enunciativa”, Maingueneau recorda que “o discurso é inseparável daquilo que poderíamos designar muito grosseiramente de uma ‘voz’” (1989, p. 45). Essa “voz” do discurso corresponderia à dimensão que a retórica entendia por ethé, propriedades que os oradores revelavam a propósito deles mesmos pelo modo de se expressarem. Segundo Maingueneau, a eficácia dos ethé “se origina no fato de que eles atravessam, carregam o conjunto da enunciação sem jamais explicitarem sua função” (1989, p. 45).

Antes de apresentar o que Maingueneau chama de sua “concepção pessoal” do ethos, convém recordar a exposição que faz, de maneira bastante explícita, de alguns dos pressupostos teóricos que condicionariam a integração da problemática do ethos à Análise do Discurso. Segundo ele, a AD precisaria realizar, para tanto, um “duplo deslocamento”:

Em primeiro lugar, precisa afastar qualquer preocupação “psicologizante” e “voluntarista”, de acordo com a qual o enunciador, à semelhança do autor, desempenharia o papel de sua escolha em função dos efeitos que pretende produzir sobre seu auditório. Na realidade, para a AD, esses efeitos são impostos, não pelo sujeito, mas pela formação discursiva. [...]

Em segundo lugar, a AD deve recorrer a uma concepção do ethos que, de alguma forma, seja transversal à oposição entre o oral e o escrito. (Maingueneau, 1989, p. 44- 45)

Deixemos de lado, por ora, o segundo deslocamento, que decorre do fato de a retórica ter-se ocupado, tradicionalmente, de textos orais, o que exige uma adaptação da noção de ethos para aplicar-se também a textos escritos. Concentremo-nos no primeiro deslocamento, isto é, na necessidade de descartar “qualquer preocupação ‘psicologizante’ e ‘voluntarista’”, na forma como o enunciador poderia escolher o papel que lhe conviesse para produzir os efeitos desejados sobre os interlocutores. Com efeito, o ajuste teórico proposto por Maingueneau decorre do postulado, característico da AD daquele período, do assujeitamento do sujeito no discurso, que não lhe daria margens para produção autônoma de “efeitos de sentido”. As propriedades do locutor decorrentes de seu modo de expressão não atenderiam a eventuais estratégias ou desígnios próprios, pois seriam sobredeterminadas pela formação discursiva.

É interessante que os termos “psicologizante” e “voluntarista” apareçam associados, como se correspondessem ao mesmo nível de análise. Na verdade, eles dizem respeito a momentos complementares da abordagem do fenômeno discursivo. A preocupação “psicologizante” corresponde ao interesse em analisar motivações – conscientes ou inconscientes – na construção da imagem do locutor no discurso; a preocupação “voluntarista” corresponde ao reconhecimento da competência do locutor

em estabelecer objetivos relativos ao processo de construção de sua imagem e em formular as estratégias mais adequadas a seus fins. Nenhumas destas preocupações é considerada pertinente pelas vertentes da Análise do Discurso que preconizam a preponderância da formação discursiva sobre o sujeito, ao qual não se reservaria sequer um papel subsidiário na construção do sentido.

Essa visão, em parte modificada por textos mais recentes da AD de linha francesa relativos ao tema, teve a virtude de problematizar a intencionalidade e a autonomia do sujeito, temas que não eram questionados pela Retórica clássica ou pela Nova Retórica. No momento inicial, sob forte influência do pensamento de Althusser, essa problematização parecia ter levado a AD ao polo oposto. O próprio Maingueneau parece consciente desse processo de radicalização, ao reconhecer que “caso nos contentemos em explicar a adesão dos sujeitos através da projeção de estruturas socioeconômicas (pertencer a tal grupo social obriga a acreditar em determinado discurso), manteremos uma relação de exterioridade entre discurso e sociedade”. E, em favor de uma visão do discurso como um dispositivo constitutivo da construção do sentido e dos sujeitos, conclui que

em AD a reatualização aparente da retórica, através das diversas tendências da pragmática, vem acompanhada de um recuo em relação a seus pressupostos. Nada mais estranho, em sua perspectiva, do que a imagem de um discurso veiculando “ideias” graças a diversos “procedimentos”. Devolver todo seu peso ao sujeito, ao destinatário, ao lugar, ao momento, aos gêneros da enunciação, não deve, em caso algum, corresponder à justaposição de “fundo” e “forma”. (Maingueneau, 1989, p. 49-50)

Voltemos à reformulação da questão do ethos por Maingueneau. Ela parte da constatação inicial de que qualquer texto, oral ou escrito, é dotado de um tom, que indica uma fonte enunciativa, a qual não se ancora no mundo real, mas é um construto textual. Os indícios textuais fazem o co-enunciador13 construir a figura de um

enunciador, um “fiador”, investido de caráter e corporalidade.

O “caráter” corresponde a um feixe de traços psicológicos. Quanto à “corporalidade”, ela é associada a uma compleição corporal, mas também a uma forma de vestir-se e mover-se no espaço social. O ethos implica assim um controle tácito do corpo, apreendido por meio de um comportamento global. Caráter e corporalidade do fiador apóiam-se, então, sobre um conjunto difuso de representações sociais valorizadas ou desvalorizadas, de estereótipos sobre os quais a enunciação se apóia e, por sua vez, contribui para reforçar ou transformar. (Maingueneau, 2005, p. 72)

O ethos assim considerado se desenvolve em relação à cena da enunciação. Ao conjunto de fatores que interferem nas escolhas do locutor para a representação de seu fiador, Maingueneau (2005, p. 75) chama cena de enunciação, que seria integrada por

13 Ainda que recorra ao termo destinatário com alguma frequência, Maingueneau afirma preferir àquele o termo “co-enunciador” (emprestado de Cullioli), “porque ele convém melhor ao caráter fortemente interativo da comunicação verbal”. (Maingueneau, 2005, p. 91)

três cenas: cena englobante, que diz respeito ao estatuto pragmático do discurso (literário, filosófico, religioso etc.); cena genérica, que define a instituição discursiva ou o contrato associado ao gênero (editorial, sermão, visita médica etc.); e cenografia, que concerne à apresentação específica do texto (um sermão pode ser proferido em cenografia professoral, profética etc.).

O ethos constrói-se de forma dinâmica pelo destinatário, a partir da fala do enunciador; não se apresenta diretamente, mas de forma “lateral”. O ethos não deve ser encarado meramente como meio de persuasão, mas, sim, como parte constitutiva da cena de enunciação, que ele deve validar por sua própria enunciação. Essa visão interativa do ethos enseja a seguinte formulação por parte de Maingueneau:

O enunciador não é um ponto de origem estável que se “expressaria” dessa ou daquela maneira, mas é levado em conta em um quadro profundamente interativo, em uma instituição discursiva inscrita em uma certa configuração cultural e que implica papéis, lugares e momentos de enunciação legítimos, um suporte material e um modo de circulação para o enunciado. (Maingueneau, 2005, p. 75)

Dessa forma, a cena da enunciação deve ser considerada dentro de uma moldura abrangente, que abarque a inserção institucional da enunciação e dos interlocutores, as representações prévias do ethos do enunciador, as expectativas relativas ao gênero do texto e ao posicionamento ideológico dos participantes da cena, entre outros fatores. No corpus considerado na presente pesquisa, por exemplo, serão relevantes para a construção do ethos, em cada cena de enunciação, a participação específica do locutor na instituição em que fala, a composição do auditório a que se dirige, a predisposição recíproca e o conhecimento prévio entre enunciador e do co-enunciador, entre diversos outros fatores, sem excluir o que o locutor possa falar de si (ethos dito). Assim resume Maingueneau os fatores que interagem na conformação do ethos:

O ethos de um discurso resulta de uma interação de diversos fatores: ethos pré- discursivo, ethos discursivo (ethos mostrado), mas também de fragmentos do texto em que o enunciador evoca sua própria enunciação (ethos dito): diretamente (“é um amigo que lhes fala”), ou indiretamente, por exemplo, por meio de metáforas ou de alusões a outras cenas de fala [...]. A distinção entre ethos dito e ethos mostrado inscreve-se nos extremos de uma linha contínua, já que é impossível definir uma fronteira nítida entre o “dito” sugerido e o “mostrado”. O ethos efetivo, o que tal ou qual destinatário constrói, resulta da interação dessas diversas instâncias, cujo peso respectivo varia segundo os gêneros de discurso. (Maingueneau, 2008, p. 71)

Com a breve apresentação de alguns aspectos da concepção de Maingueneau da problemática do ethos, percebe-se que a perspectiva discursiva descortina novos horizontes analíticos para essa noção, pois o ethos se constitui pelo discurso, não é uma imagem exterior à fala. Sendo o ethos um processo de interação e de influência entre interlocutores, é um objeto privilegiado da Análise do Discurso, que deve procurar

apreendê-lo nas situações comunicativas precisas, integradas às conjunturas sociais e históricas que as conformam.