Ao analisar as “dimensões de análise do grupo” (Quadro 1) e a “associação de idéias do grupo” (Fig. 1), podemos perceber que, apesar de reconhecer o caráter crônico, incapacitante e progressivo da DP e ter nos remédios a principal “arma” contra essa ameaça, o grupo não se percebe na experiência da doença.
Para esses sujeitos, a doença de Parkinson é compreendida como um agente externo que promove irregularidades, alterações e desequilíbrio no funcionamento do corpo e que ameaça sua identidade que é representada pela possibilidade da manutenção dos papéis sociais (através da execução das atividades significativas) e é intrinsecamente ligada à percepção do outro.
Estes dados corroboram com a atual visão de saúde na qual ela deixa de ser considerada como uma oposição à doença e passa a ser compreendida numa relação dialética com a mesma, ou seja, a visão de saúde deixa de ter um caráter puramente organicista e passa a englobar também, aspectos sociais e mentais.
Essa nova visão é balizada pela definição de saúde da OMS (1976) pela qual “a saúde é um estado de completo bemestar social e não apenas a ausência de distúrbios e doenças” configurandose numa quebra de paradigmas.
Segundo Alves (2004 apud Fernandes, 2004), a passagem da concepção dicotômica ‘saúde x doença’ para o entendimento da ‘saúdedoença’ como um processo “promove um entendimento mais amplo da saúde, no qual estão reunidos e irremediavelmente entrelaçados a saúde, a doença; a vida e a morte” (p.174).
Herzlich (1999), concorda com Alves (op. cit.) quando afirma que a experiência da doença é apreendida na vivência com a sociedade, na qual a busca do equilíbrio do homem em seu meio se dá a partir das condições humanas (ligadas não apenas ao caráter orgânico) e sociais.
Em seu estudo (realizado no fim da década de 60, na França) voltado a estudar as representações da saúde/doença vigentes á época, Herzlich (op.cit.) concluiu que essas representações estavam organizadas em torno de um núcleo figurativo construído através da polarização do indivíduo/sociedade e da atividade/inatividade, em especial a atividade produtiva. Assim, a saúde representava participação e integração social através da participação nos sistema produtivo e a doença, impossibilidade de participação e por conseguinte, exclusão.
Em nosso estudo, podemos apontar resultados semelhantes visto que para este grupo a representação de doença é fortemente associada à idéia de: 1. inatividade (dependência funcional); 2. à percepção do outro (que os fazem sentir doentes ou não) e 3. ao estado emocional – que é intrinsecamente ligado á reação dos outros perante a doença.
Assim, ao associarem a doença de Parkinson à dependência funcional e afirmarem não se sentirem doentes, os participantes buscam ajustar os componentes do senso comum às pressões do cotidiano mantendo, dentro do máximo possível, suas atividades rotineiras sem alterações, tanto no que diz respeito à independência funcional quanto à autonomia, visto que ao precisarem modificar sua rotina necessitando de ajuda de terceiros para executar as tarefas significativas e para tomar decisões e planejar sua vida, eles irão se reconhecer (e serem reconhecidos) como dependentes, confirmando então o estado de doença e por conseguinte ameaçando seu lugar no contexto social, ou seja, sua identidade social.
Berger e Luckman (1999), afirmam que a construção da identidade se dá a partir das interações sociais, sendo determinadas pelas estruturas sociais presentes.De acordo com os
autores, essas identidades construídas podem ser observadas nos comportamentos do cotidiano, numa relação dialética com o seu meio. Complementando esse pensamento, Roazzi (2004), afirma que a construção da identidade se dá a partir da relação com o outro “num processo dinâmico e mutável de construção do ‘eu’, composto de elementos individuais ou psicológicos e sociais que se expressam na medida em que há a vivência de um sentimento de ‘pertença’ e ao mesmo tempo de estranhamento, de diferenciação, do grupo que participa” (p.162).
Mead (1934 apud Jovchelovitc, 1995), afirma que é o “outro generalizado” que dá unicidade ao “Eu”, desta forma, a importância da vida em comunidade se dá porque ela evidencia um “nós” necessário para a construção de um “Eu” – a vida privada, segundo o autor, surge a partir da vida privada.
Sobre os fenômenos corporais que necessitam de elucidação, a exemplo da dependência funcional, Cardoso e Gomes (2000), afirmam que esta elucidação é apoiada em noções, símbolos e esquemas de referências interiorizados de acordo com seus meios sociais e culturais. Concordando com esse pensamento, Herzlich (1999), associa os fenômenos biológicos, incluindo aqui a experiência do adoecer, a pilares da relação do indivíduo com o social e diz que essa acepção vem se ampliando com o avanço da ciência na área.
No que diz respeito à manutenção da identidade e do sentimento de pertença, Goffman (1975), afirma que a identidade é produzida e reproduzida principalmente na relação com o outro e pelo outro, na relação de alteridade.
Diante de uma situação estigmatizadora, neste caso a dependência funcional, o autor afirma que o idoso pode responder de duas maneiras, uma direta – tentando corrigir o que considera a base de seu “defeito” e outra indireta, “dedicando um grande esforço individual no domínio de áreas de atividades consideradas geralmente como fechadas, por motivos físicos e circunstanciais, a pessoas com o seu “defeito”. (p.19).
Assim, diante da possibilidade da perda da identidade e conseqüente perda do seu papel social, o grupo aponta para a relação destas perdas com a qualidade de suas vidas.
Dado o caráter multidimensional do constructo qualidade de vida, encontramos divergências em torno do grau de influência de seus preditores, mas há um consenso geral em torno da idéia de que o envelhecimento com qualidade de vida é visto como um processo de sucessivas adaptações onde, segundo Baltes (1991), o idoso realiza “otimizações seletivas com compensações”.
Com a crescente limitação funcional imposta pela DP, e no intuito de ampliar suas possibilidades de participação social, o grupo aqui estudado, selecionou metas e objetivos mais significativos (manutenção da casa e da vida social, p. ex.), otimizando suas habilidades residuais e apoiandose no efeito benéfico dos remédios.
De acordo com Bosi, (1994), é preciso que os idosos, para terem qualidade de vida, tenham “interesses, trabalhos e responsabilidades que tornem sua sobrevivência digna” (p.81). E parece ser esta a intenção do grupo estudado, visto que tenta manter o máximo possível, suas atividades rotineiras.
Neste sentido, Baltes (1995), com a teoria do curso de vida, afirma que as prioridades e investimentos pessoais para a manutenção da qualidade de vida não são arbitrários e envolvem concepções subjetivas do curso de vida.Para o autor, as atividades significativas, são enfrentadas de maneiras diferentes devido aos diferentes valores, expectativas sociais e oportunidades.
Para Ericson (1950), ‘geratividade’ e ‘integridade do ego’ são atividades evolutivas de idosos e que produzem senso de completude e unidade, interferindo em sua qualidade de vida. Para o autor, geratividade são atividades que contribuem para as gerações futuras, não só através do meio de produção material, mas também de manutenção e cuidado.Alcançar a
integridade do ego, ainda segundo o autor, passa pela revisão de sua vida, dandolhe sentido e reorganizando criativamente sua personalidade.
Além da preocupação em manter sua rotina e as atividades significativas, o que se percebe neste grupo é a assunção, juntamente com sua família, da responsabilidade do nível da qualidade de suas vidas, visto que em nenhum momento o grupo mencionou a responsabilidade da esfera pública, incluindo aqui as esferas do governo, no favorecimento da qualidade de vida.
Esse fato parece apontar para a falta de uma cultura política que, a exemplo do que afirma Bredemeier (2003), faz com que a sociedade brasileira ainda não se permita lutar por seus direitos, encarando conquistas como concessões, assumindo individualmente o ônus da manutenção de sua qualidade de vida.
Essa falta de cultura política é agravada, ao nosso ver, pelo distanciamento já comentado anteriormente, entre a legislação vigente e a realidade dos idosos visto que, apesar de terem consciência de seus direitos, ao não verem suas necessidades contempladas, os mesmos desacreditam no poder público e saem em busca de soluções individualizadas ou, no máximo, do apoio das associações.
Este dado nos chama a atenção já que apesar de todos eles receberem a medicação necessária através da liminar enviada pela ASP ao Ministério da Saúde, visando à garantia da distribuição gratuita dos remédios a seus associados, os mesmos não aludem ao governo, a co responsabilidade pela qualidade de suas vidas.No que diz respeito à relação da ASP com a qualidade de suas vidas, apesar de apresentarse também como possibilidade de luta por direitos perante o poder público, a ASPPE é compreendida principalmente como um espaço de orientação, solidariedade e aceitação onde os mesmos participam das atividades buscando socializarse e orientarse.
Acreditamos que esta não alusão à importância da gratuidade dos remédios possa se dar neste grupo porque os mesmos têm um padrão de vida acima da média dos brasileiros (todos recebem mais que 5 salários mínimos).
Os dados obtidos a partir da aplicação do PDQ39 confirmam as informações colhidas nas entrevistas no que diz respeito à relevância do outro na experiência da doença de Parkinson. Esta relevância é fortemente sinalizada nas dimensões: 1. Mobilidade – incluindo a dificuldade em movimentarse em público, participar de atividades sociais e o medo de cair; 2. Estigma – ao sentir embaraço em público por ter DP e preocupação com a reação das pessoas; 3. Suporte Social com a presença de problemas de relacionamento com pessoas próximas e 4. Comunicação – principalmente no que diz respeito ao sentimento de ser ignorado por outras pessoas.
Na dimensão Atividade de Vida Diária, 50% dos participantes da pesquisa apontaram a dificuldade em cortar comida como sendo a tarefa mais prejudicada pela DP, associada á escrita, sendo que nas entrevistas, “comer em público” foi uma das atividades mais evitadas pelo grupo, confirmando mais uma vez, sua preocupação com a reação dos outros.
Sobre a dimensão Cognição, apenas um dos participantes citou ter problemas para se concentrar e com a memória, não referindo porém nas entrevistas, qualquer dificuldade vivida por conta dessa alteração.Da mesma forma, a dimensão Desconforto Corporal apesar de ser assinalada por dois participantes, não foi mencionada nas entrevistas.
Por fim, a dimensão Bemestar Emocional, foi representada por um estado de choro, amargura e raiva por respectivamente 2 e 3 participantes, e, apesar de não ter sido exposto claramente nos discursos do grupo, pôdese notar sua presença implícita nos discursos.
8. CONCLUSÃO
Este estudo permitiu trazer à discussão algumas construções e apropriações sociais elaboradas pelos sujeitos ao experienciarem a doença de Parkinson, permitindo também, observar a relação dessas construções com a percepção de qualidade de vida dos mesmos.
Ao optar pela associação de idéias na perspectiva de grupo pudemos apreender a representação social do grupo sem desconsiderar os elementos presentes nos discursos individuais.
A compreensão da elaboração das representações do grupo se deu a partir da junção de elementos presentes no conjunto das respostas obtidas nas entrevistas e no confronto dessas respostas com os achados da aplicação do PDQ39.O resultado deste trabalho permitiu a interpretação ora apresentada: a doença de Parkinson para esse grupo significa uma ameaça à sua identidade uma vez que pode impedílo de desempenhar seus papéis sociais devido à dependência funcional gerada pela doença. Essa perda de independência, ao gerar perda de identidade, acarreta então uma diminuição da qualidade de vida.
Mas é importante lembrar que as representações não foram plenamente mapeadas visto que alguns elementos presentes em discursos individuais como por exemplo, a associação da DP à idade (sujeito 6) ou a percepção de qualidade de vida relacionada também à mais tempo para lazer (sujeito 7), não fizeram parte do somatório das respostas por terem sido citadas apenas por um sujeito cada.
Esse dado nos leva a pensar em duas possibilidades: 1. que talvez um número maior de sujeitos iria apontar mais dados semelhantes e assim nos ajudar a vislumbrar outras representações da doença de Parkinson e sua relação com a percepção de qualidade de vida e
2. que estes dados isolados demonstram uma possibilidade de mudança no núcleo figurativo construído por eles, demonstrando o caráter dinâmico das representações sociais.
A partir dos dados encontrados, podemos concluir também que, a doença de Parkinson, por não ter um rol de imagens a que possa ser vinculada e por seu caráter de desordem e de falta de domínio sobre si, gerou uma necessidade no grupo de selecionar imagens antigas (tradicionais) para que a mesma fosse ancorada. Assim, na eminente contradição entre reconhecer o caráter crônico e progressivo da doença de Parkinson e referir não se sentirem doentes, os sujeitos buscaram neutralizar o impacto do diagnóstico da doença de Parkinson á idéia de que estar doente é estar acamado, “arriado” – demonstrando clara resistência à doença de Parkinson.
Por outro lado, construíram um padrão de núcleo figurativo onde a doença de Parkinson é ligada a uma “ameaça externa à independência funcional e conseqüentemente à sua identidade”. Esse núcleo, por sua vez, influencia o modo com que esse grupo interpreta e se comporta no cotidiano.
Ao se comportarem e participarem do seu entorno social balizado pelo núcleo figurativo, o grupo também é influenciado por esse contexto que confere legitimidade adicional à estrutura das representações, objetivandoas.
Essa dinâmica indivíduosociedade neste contexto gera emoções que são traduzidas pelo medo de: 1. o desconhecido – pois o processo de agravamento dos sintomas é individual e não há como percebêlo antecipadamente; 2. da dependência funcional – que é o produto final da doença de Parkinson. e pela angústia. Esses sentimentos aflorados geram um movimento de transformação/negação dos sintomas tendo como objetivo final, a defesa de sua identidade através da manutenção da independência funcional o maior tempo possível.
No que diz respeito à percepção da qualidade de vida, tanto o discurso quanto o comportamento do grupo nos permite concordar com a teoria do ciclo da vida (Baltes 1991),
que afirma que a qualidade de vida tem uma relação intrínseca com a capacidade do idoso gerenciar o uso de estratégias para lidar com situações estressantes, realizando otimizações seletivas de suas habilidades remanescentes para compensar deficiências eventualmente encontradas.
Mas é importante também pontuar que neste estudo, a percepção de qualidade de vida foi intimamente ligada à possibilidade de executar de forma independente, as atividades significativas, sendo esse fato o principal preditor de qualidade de vida, configurando a ligação entre qualidade de vida e exercício dos valores pessoais.
Esse fato nos aponta para o perigo de transformar o constructo ‘qualidade de vida’ em jargão ou modismo onde o que vale para um, vale para todos, descaracterizando a particularidade da percepção individual como sugere a OMS.
Não podemos deixar de mencionar o papel dos remédios como importante coadjuvante na percepção de qualidade de vida visto que os mesmos para esse grupo, são compreendidos como uma defesa contra a “ameaça” que é a doença de Parkinson.
O que nos chama a atenção, porém, como já mencionado nas discussões, é o fato de que apesar de todo o grupo receber os remédios gratuitamente através da ASPPE, não a vincularam claramente à possibilidade de instrumento pela luta de seus direitos perante o poder público, denotando, ao nosso ver, uma falta de consciência política.
A esse respeito, o fato de todos os componentes do grupo contarem apenas com o suporte da família e amigos, sem procurar a esfera pública para tal, apenas confirma nossa convicção.
Por fim, este estudo nos permitiu compreender a importância da teoria das representações sociais para a elaboração de estratégias de intervenções não só na área de saúde mas também na área social visto que, através da apreensão das RS de determinado grupo sobre determinado objeto, é possível compreender como os sujeitos sociais se
apropriam e dão sentido à realidade e essa compreensão pode servir de diretriz para efetuar mudanças. Além disso, o estudo também apontou a importância que a compreensão dos universos consensuais pode ter na formulação de políticas públicas voltadas a atender as reais necessidades dos sujeitos sociais com vistas, em última instância, a promover a melhoria dos padrões de qualidade de vida dos mesmos.
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