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Análise do Discurso: o desconforto na linguagem e no mundo atual

3. DISCURSOS E CONTRADISCURSOS NA REDE

3.1 Análise do Discurso: o desconforto na linguagem e no mundo atual

Pêcheux propõe, através dos princípios e métodos da Análise do Discurso Francesa, doravante denominada AD, “uma forma de reflexão sobre a linguagem que aceita o desconforto de não se ajeitar nas evidências e no lugar já-feito” (ORLANDI in PECHÊUX, 2002, p.07). Defende a investigação pelos entremeios, “não deixando de levar em conta a presença forte da reflexão sobre a materialidade da linguagem e da história” (idem, ibidem, p.09). Busca combinar “uma teoria social do discurso com um método de análise textual, trabalhando principalmente com o discurso político escrito” (FAIRCLOUGH, 2008, p.51). Para o autor, os fatos históricos sempre afetam o discurso, o qual mostra os efeitos da luta ideológica no funcionamento da linguagem e, de modo inverso, a existência de materialidade lingüística na ideologia. Essa questão, inclusive, consiste no ponto central de sua construção teórica (POSSENTI in MAINGUENEAU, 2008, p.09).

Pêcheux avalia que o ponto-chave das disciplinas de interpretação diz respeito à existência do outro nas sociedades e na história, possibilitando haver ligação, identificação ou transferência, ou seja, a configuração de uma relação, abrindo a possibilidade de interpretar. “É porque há essa ligação que as filiações históricas podem se organizar em memórias e as relações sociais em redes de significantes.” (2002, p.54). O discurso existe como estrutura e como acontecimento, sendo esse último o encontro de uma atualidade com uma memória (idem, ibidem, p.17). “Diante de qualquer fato, de qualquer objeto simbólico somos instados a interpretar, havendo uma injunção a interpretar. Ao falar, interpretamos. Mas, ao mesmo tempo, os sentidos parecem já estar sempre lá” (ORLANDI, 2003, p.10). Reunindo estrutura e acontecimento, a forma material é vista como o acontecimento do significante em um sujeito afetado pela história. “Aí entra então a contribuição da Psicanálise, com o deslocamento da noção de homem para a de sujeito. Este, por sua vez, se constitui na relação com o simbólico, na história.” (ORLANDI, 2003, p.19).

A perspectiva utilizada nesta pesquisa pressupõe que a interpretação das montagens discursivas surge como tomadas de posição, reconhecidas como tais, ou seja, como efeitos de

identificação assumidos e não negados. A descrição de um enunciado ou de uma seqüência de enunciados coloca em jogo o discurso-outro como espaço virtual de leitura desse enunciado ou dessa seqüência, através da detecção de lugares vazios, de elipses, de negações e de interrogações. “Todo enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido para derivar para um outro.” (PÊCHEUX, 2002, p.53). Toda seqüência de enunciados é uma série de pontos de deriva possíveis, oferecendo lugar à interpretação. Para Orlandi, “o discurso é efeito de sentido entre locutores.” (2003, p.21).

A Análise do Discurso busca investigar a língua em uso, privilegiando não só forma, mas função e, sobretudo, processo. Observa como as pessoas interagem através da linguagem e da interpretação das funções, que se realizam em uma forma lingüística presente em um discurso contextualizado. Esse campo de estudo surgiu da articulação entre a Lingüística, o Materialismo Histórico e a Psicanálise (ORLANDI, 2003, p.19). Trabalhando na confluência dessas áreas de conhecimento, ultrapassa as fronteiras e produz um novo recorte de disciplinas, constituindo um objeto novo que vai afetar essas formas de conhecimento em seu conjunto: o discurso.

É a partir de Freud que começamos a suspeitar do que escutar, logo o que falar (e se calar), quer dizer; que este “querer dizer” do falar e do escutar descobre, sob a inocência da palavra e da escuta, a profundidade assinalável de um duplo fundo, o “querer dizer” do discurso do inconsciente – esse duplo fundo de que a lingüística moderna, nos mecanismos de linguagem, pensa os efeitos e as condições formais. (PÊCHEUX, 2002, p.18)

O discurso é um lugar de produção de sentidos e de processos de identificação dos sujeitos. Através dele, é possível compreender melhor o lugar da interpretação na relação do homem com sua realidade, na articulação do simbólico com o político. Fairclough destaca que, historicamente, “diferentes discursos se combinam em condições sociais particulares para produzir um novo e complexo discurso” (2008, p.22).

Os discursos não apenas refletem ou representam entidades e relações sociais, eles as constroem ou as ‘constituem’; diferentes discursos constituem entidades-chaves (sejam elas a ‘doença mental’, a ‘cidadania’ ou o ‘letramento’) de diferentes modos e posicionam as pessoas de diversas maneiras como sujeitos sociais (por exemplo, como médicos ou pacientes), e são esses efeitos sociais do discurso que são focalizados na análise de discurso (idem, ibidem, p.22)

Os discursos se manifestam nos modos particulares de uso da linguagem e de outras formas simbólicas, como, por exemplo, as imagens visuais (idem, ibidem, p.22). Assim, será

adotado nesta pesquisa o conceito de discurso e de análise do discurso “tridimensional” proposto por Fairclough (idem, p.22). Ele consiste no fato de que qualquer “evento” discursivo, ou seja, qualquer exemplo de discurso é considerado como texto, exemplo de prática discursiva e de prática social, simultaneamente (idem, ibidem, p.22). Como texto, entende-se qualquer produto escrito ou falado, até mesmo conversas ou entrevistas, bem como imagens visuais e textos que “são combinações, por exemplo, de palavras e imagens – por exemplo, na publicidade” (idem, ibidem, p.22).

Existem muitas conexões entre a linguagem e a prática social, visto que ambas moldam a realidade e são moldadas por ela. “Na condição de seres sociais, não é difícil acatarmos a idéia de Pêcheux, para quem nossos corpos são perpassados pela linguagem.” (SILVA in SILVA;VIEIRA, 2002, p.8). Cabe, então, ao analista do discurso relacionar a linguagem à sua exterioridade, lembrando que aquela tanto serve para comunicar quanto para não comunicar.

Dentro do campo da Análise do Discurso, a Análise do Discurso Crítica se constitui em uma vertente que busca demonstrar como os efeitos constitutivos do discurso reforçam identidades sociais, relações sociais e sistemas de conhecimentos e crenças, ainda que nenhum desses aspectos seja aparente aos participantes do discurso. “A Análise do Discurso Crítica não só descreve, mas também mostra como o discurso é moldado pelas relações de poder e ideologia.” (idem, ibidem, p.10). Grande parte do trabalho dessa corrente se dirige ao resgate de ideologias que desempenham um papel relevante na reprodução ou na resistência à dominação ou à desigualdade social. Defende que uma mudança na prática discursiva provoca uma mudança na prática social e vice-versa.

O que diferencia a Análise do Discurso Crítica de outros enfoques é a dimensão ideológica na construção do sujeito. Para a Análise do Discurso Francesa, o sujeito é assujeitado pela ideologia e se encontra na confluência da História, da Linguagem e da Psicanálise. “A linguagem serve para comunicar e não comunicar. As relações de linguagem são relações de sujeitos e de sentidos e seus efeitos são múltiplos e variados” (ORLANDI, 2003, p. 21). Na perspectiva da AD Crítica inglesa, o sujeito é tido como um agente processual com graus relativos de autonomia, mas “como arquiteto dos processos discursivos por meio da natureza de ator ideológico, a qual também é construída pelo discurso.” (VIEIRA in SILVA;VIEIRA, 2002, p.154). Compreendida dessa forma, a linguagem não é apenas uma forma de representação do mundo, mas também de ação sobre o mundo e sobre o outro.

Como não existem idéias fora dos quadros da linguagem, entendida no seu sentido amplo de instrumento de comunicação verbal ou não-verbal, essa visão de mundo não existe desvinculada da linguagem. Por isso, a cada formação ideológica corresponde uma formação discursiva, que é um conjunto de temas e de figuras que materializa uma dada visão de mundo (FIORIN, 2004, p.32).

A formação discursiva é ensinada a cada membro de uma sociedade ao longo do processo de aprendizagem lingüística. É com essa formação discursiva assimilada que o homem constrói seus discursos e reage, lingüisticamente, aos acontecimentos. “Assim como uma formação ideológica impõe o que pensar, uma formação discursiva determina o que dizer.” (idem, ibidem, p.32). O discurso é mais o lugar da reprodução que o da criação. Numa formação social, existem tantas formações discursivas quantas forem as formações ideológicas. Assim como a ideologia dominante é a da classe dominante, o discurso dominante é o da classe dominante.

O discurso como o lugar de acesso e observação da relação entre a materialidade específica da ideologia e a materialidade da língua. A partir daí a ideologia deixa de ser concebida como o era na filosofia ou nas ciências sociais para adquirir um novo sentido: o que se estabelece quando pensamos a própria produção dos sujeitos e dos sentidos. Inverte-se o pólo de observação: não se parte dos sentidos produzidos, observa-se o modo de produção de sentidos e da constituição dos sujeitos. E aí não se pode prescindir, de um lado, da linguagem, de outro, da ideologia. Não como ocultação da realidade mas como princípio mesmo de sua constituição. As chamadas evidências que estão sempre já-lá (ORLANDI in MALDIDIER, 2003, p.12)

Para Foucault, cabe aos analistas de discurso investigarem, nas formações discursivas, interesses com especificações sócio-históricas variáveis. Afinal, são as formações discursivas que delimitam aquilo que pode ou deve ser dito em um dado contexto. “As regras de formação discursiva são condições de existência (mas também de coexistência, de manutenção, de modificação e de desaparecimento) em uma dada repartição discursiva.” (1987, p. 43).

De acordo com a Análise do Discurso francesa, toda formação discursiva é derivada de uma formação ideológica. Na concepção de Pêcheux, o sujeito-falante resulta de um processo histórico-social, influenciado por uma ideologia que tanto o transforma quanto determina seu discurso. Foucault e Maingueneau defendem a idéia de que o sujeito, ao passar de um ambiente para outro, assume os discursos institucionais possíveis conforme o seu trânsito. A esse processo de adaptação discursiva dá-se o nome de assujeitamento. Esse sujeito assujeitado é aquele que se apropria de um discurso preexistente e faz uso dele a partir de regras também preexistentes (ORLANDI, 2003, p.46-47).

Desta forma, os conceitos da AD francesa, assim como os pressupostos teóricos das demais correntes críticas de Análise do Discurso, como a AD Critica de origem inglesa, apresentam-se como fundamentais na construção do objeto de estudo deste trabalho.

As abordagens críticas diferem das abordagens não-críticas não apenas na descrição das práticas discursivas, mas também ao mostrarem como o discurso é moldado por relações de poder e de ideologia e os efeitos construtivos que o discurso exerce sobre as identidades sociais, as relações sociais e os sistemas de conhecimento e crença, nenhum dos quais é normalmente aparente para os participantes do discurso (FAIRCLOUGH, 2008, p.31-32)

A Teoria Social do Discurso, de origem inglesa, e a Escola Francesa de Análise do Discurso têm em comum a dimensão crítica do olhar sobre a linguagem como prática social. A primeira, entretanto, busca examinar não somente o papel da linguagem na reprodução das práticas sociais e das ideologias, mas também seu papel fundamental na transformação social. Para Fairclough, o discurso é moldado pela estrutura social e, ao mesmo tempo, constitutivo da estrutura social (MAGALHÃES in FAIRCLOUGH, 2008, p.11). Ele buscou, em sua teoria, resgatar o conceito de “interdiscurso” de Pêcheux (idem, ibidem, p.12).

De acordo com Pêcheux, há uma divisão discursiva entre dois espaços. Um é o da manipulação de significações estabilizadas, normatizadas por uma “higiene pedagógica do pensamento”. O outro é o de transformações do sentido, escapando às normas estabelecidas a priori. “Um trabalho do sentido sobre o sentido, tomados no relançar indefinido das interpretações.” (2002, p.51). Para o autor, o princípio desse tipo de prática de leitura consiste em multiplicar as relações entre o que é dito, em um determinado lugar, de um jeito e não de outro, com o que é dito noutro lugar e de outra maneira, com o intuito de se colocar em posição de “entender” a presença de não-ditos no interior do que é dito. “Interrogar-se sobre a existência de um real próprio às disciplinas de interpretação exige que o não-logicamente-estável não seja considerado a priori como um defeito, um simples furo no real.” (idem, ibidem, p.43). Pêcheux avalia que, entendendo-se o “real” em vários sentidos, é possível existir um outro tipo de real diferente dos que foram evocados. “Um real constitutivamente estranho à univocidade lógica, e um saber que não se transmite, não se aprende, não se ensina, e que, no entanto, existe produzindo efeitos.” (idem, p.43).

Orlandi analisa que o discurso é movimento dos sentidos, errância dos sujeitos, lugares provisórios de conjunção e dispersão, de unidade e de diversidade, de indistinção, de incerteza,

de trajetos, de ancoragem e de vestígios. “De um lado, é na movência, na provisoriedade, que os sujeitos e os sentidos se estabelecem, se cristalizam, permanecem.” (2003, p.10).

Os enunciados investigados nesta pesquisa apontam para uma ruptura com a univocidade lógica do real apresentado no discurso publicitário das grandes marcas mundiais em questão, produzindo novos efeitos de sentido em relação a essas marcas.