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2 PROPOSIÇÃO DE UM MÉTODO MISTO DE ANÁLISE DE POLÍTICAS

2.7 ANÁLISE DO DISCURSO

Em Arqueologia do Saber, Foucault constrói um espaço teórico e metodológico de análise situado na história das ideias, a partir da colocação em suspensão de elementos que até

então eram considerados básicos, como a leitura do documento como fonte histórica, o sentido de continuidade do tempo, a construção de história global, e as limitações da metodologia empregada até então, em virtude de ela ter sido elaborada tendo em mente esses elementos (FOUCAULT, 2008a).

Deste modo, embora a Arqueologia do Saber descreva um método de análise dos discursos, existem componentes teóricos extremamente fortes, quando o autor busca criar uma suspensão dos conceitos e métodos até então utilizados, desconfiando da suficiência deles, devido ao seu vínculo com os pressupostos teóricos de que o documento não é um relato, e, sim uma descrição da realidade; de que existe na história uma teleologia, um sentido de continuidade coerente; de que a história não é outra, senão a global, a qual, na verdade, é um tipo de história.

Para realizar essa empreitada, Foucault propôs focar sua análise na “descrição dos acontecimentos discursivos” (ibidem, p. 30), no sentido das regras de construção e de escolha dos diferentes enunciados que formam um discurso, enquanto um acontecimento singular, mas conectado a outros. Os discursos acontecem dentro de um espaço conhecido como “campo dos acontecimentos discursivos [... que é o] conjunto sempre finito e efetivamente limitado das únicas sequências linguística que tenham sido formuladas” (ibidem).

Logo, enquanto a língua representa todas as possibilidades de formulação de enunciados, o campo dos acontecimentos discursivos compreende apenas aquele conjunto de enunciados que foi efetivamente formulado dentro de uma formação discursiva.

Neste sentido, Foucault não busca nem a história dos pensamentos nem das mentalidades, pois, respectivamente, não se preocupa nem com o sentido subjetivo, de intenção do sujeito, tampouco o sentido alegórico dos enunciados; nem busca a coerência interna, o processo de construção de determinada forma de pensar (ibidem). Assim, a preocupação de Foucault não está diretamente voltada nem para os fatores psicológicos dos sujeitos nem para os fatores estruturais da língua.

Para entender o projeto de análise de Foucault, é fundamental compreender o que Foucault chama de “formações discursivas” (ibidem, p. 35). A descrição do que é a formação discursiva ocorre, inicialmente, a partir de uma negação: a formação discursiva não é o conjunto de enunciados que falam sobre o mesmo objeto, nem é o conjunto de mesmo estilo, nem é um sistema de sentido interno coerente, tampouco é o conjunto que trata sobre o mesmo tema.

Por isso, a formação discursiva não pode ser descrita através da redução ao objeto, à modalidade enunciativa (estilo, forma, materialidade), à coerência interna (elaborada pelos

conceitos formativos) ou ao tema (a estratégia de formulação), porque, embora envolva esses elementos, eles não dão conta de explicar o sistema de dispersão que torna os enunciados acontecimentos únicos, ou seja, não dão conta de explicar como ocorrem os movimentos de aproximação e de distanciamento entre os enunciados, que formará sua regularidade:

No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva (ibidem, p. 43, grifo do autor). O produto de uma formação discursiva, e também das condições possibilitadas por uma prática discursiva particular, é o discurso, que pode ser descrito como:

conjunto de enunciados, na medida em que se apoiem na mesma formação discursiva; ele não forma uma unidade retórica ou formal, indefinidamente repetível e cujo aparecimento ou utilização poderíamos assinalar (e explicar, se for o caso) na história; é constituído de um número imitado de enunciados para os quais podemos definir um conjunto de condições de existência” (ibidem, p. 132-133)

Como se vê, todo discurso é composto por enunciados. Inicialmente, Foucault afirma que o enunciado é o átomo do discurso (ibidem, p. 90), a unidade mínima em que é possível analisar qualquer discurso. Em seguida, o autor contrapõe a ideia de enunciado à de proposição, à de frase e à de ato de fala.

Um enunciado não pode ser igualado a uma proposição, pois não compreende apenas um sentido lógico de teste de premissas, como se vê no exemplo: “ ‘Ninguém ouviu’ e ‘é verdade que ninguém ouviu’ são indiscerníveis do ponto de vista lógico e não podem ser consideradas como duas proposições diferentes. Ora, enquanto enunciados, estas duas formulações não são equivalentes nem intercambiáveis” (ibidem, p. 91).

Quanto à frase, o autor argumenta que embora seja a construção mais próxima de um enunciado, e que, frequentemente, haja equivalência, há enunciados que não são frases: “um quadro classificatório das espécies botânicas é constituído de enunciados, não de frases [...]; uma árvore genealógica, um livro contábil, as estimativas de um balanço comercial, são enunciados: onde estão as frases?” (ibidem, p. 93).

Além disso, há objetos que são enunciados sem frases – ou que necessitariam de várias frases para serem descritos: “um gráfico, uma curva de crescimento, uma pirâmide de idades, um esboço de repartição, formam enunciados; quanto às frases de que podem estar acompanhados, elas são sua interpretação ou comentário; não são o equivalente deles” (ibidem).

Enunciados também não podem ser diretamente identificados a atos de fala, a atos de enunciação, porque esses são apenas a materialidade do enunciado, de tal forma que, regularmente, precisam de mais de um enunciado para acontecerem.

O que seria então um enunciado? De acordo com Foucault, um enunciado não é somente um elemento do discurso ou um recorte, uma forma de compreender os signos presentes em um texto, ele é uma (1) função de organização “que se exerce verticalmente, em relação às diversas unidades, e que permite dizer, a propósito de uma série de signos, se elas estão aí presentes ou não” (ibidem, p. 98); e (2) uma função de existência “que pertence, exclusivamente, aos signos, e a partir da qual se pode decidir, em seguida, pela análise ou pela intuição, se eles ‘fazem sentido’ ou não, segundo que regra se sucedem ou se justapõem” (ibidem). Em resumo, enunciados são os átomos dos discursos ao mesmo tempo em que não são um elemento em si, mas uma função dentro do discurso.

Composto por enunciados, o discurso acontece também em virtude de práticas discursivas, que não são nem a forma como o indivíduo se expressa, tampouco sua competência em discursar ou sua atividade racional, mas, sim o “conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em uma dada época e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou linguística, as condições de exercício da função enunciativa” (ibidem, p. 133). Portanto, as práticas discursivas são as regras, variantes no tempo, no espaço e segundo condições sociais, que permite aos enunciados existirem enquanto função.

Como dito anteriormente, além das práticas discursivas, todo discurso ocorre segundo sua formação discursiva específica, a qual está conectada as suas regras de formação, que são as probabilidade condicionadas de organização dos elementos formativos “objetos, modalidade de enunciação, conceitos, escolhas temáticas” (ibidem) e de existência dos enunciados, através de processos de “coexistência, de manutenção, de modificação e de desaparecimento” (ibidem).

Quanto ao objeto, Foucault defende que sua análise deve levar em vista a compreensão da superfície de existência (ibidem, p. 45), seu local de acontecimento, o qual não define como o objeto existirá, apenas permite que exista; as instâncias de delimitação (ibidem, p. 46), que definem quem pode falar e sobre o que pode falar; e as grades de especificação (ibidem), que são as estruturas de separação dos objetos.

Para esse tipo de análise, segundo o autor, convém lembrar que o objeto discursivo não preexiste a si mesmo, não é uma coisa em cárcere à espera da libertação (ibidem; idem, 2008b); que as relações discursivas são de terceira ordem, pois ocorrem acima das relações

sociais primárias (ou reais) e das relações sociais secundárias (ou reflexivas), operando, portanto, no limite entre o interior e o exterior do discurso, articulando esses diferentes níveis de relações.

Assim, os objetos discursivos não são meras relações significante-significado, descrições ou libertações de objetos do real social (como um cachimbo) ou de objetos da reflexão social (o que se pensa, como se vê e se pinta um cachimbo); são objetos de criação própria, com elementos e funções particulares.

Outro ponto focal da formação discursiva é o das modalidades enunciativas, as quais se relacionam com um status (FOUCAULT, 2008a, p. 56) do indivíduo que fala, sua posição social e sua relação com outras posições sociais; com os lugares institucionais (ibidem, p. 57) de onde se fala, e que exprime a acumulação histórica de uma legitimidade; e a posição discursiva (ibidem, p. 58) que está relacionada a como o sujeito se coloca, coloca o seu discurso em relação aos objetos enunciados. Com essa construção, Foucault questiona a subjetividade a compreensão do discurso enquanto manifestação do sujeito: “O discurso, assim concebido, não é a manifestação, majestosamente desenvolvida, de um sujeito que pensa, que conhece, e que o diz: é, ao contrário, um conjunto em que podem ser determinadas a dispersão do sujeito e sua descontinuidade em relação a si mesmo” (ibidem, p. 61).

Continuando sua construção, Foucault (ibidem) analisa a construção da coerência interna através da formação dos conceitos. Logo no início, adverte que embora sua análise se baseie na suspensão dos discursos, isso não quer dizer que um discurso não posa ser lógico ou coerente. O interesse do autor é no sentido de entender como se constrói essa coerência.

Para isso, é necessário investigar as disposições das séries enunciativas (ibidem, p. 63), que é a maneira como os enunciados são dispostos no discurso, envolvendo os tipos de correlação (ibidem), quer dizer, a forma como os enunciados são conectados e relacionados; e os esquemas (ibidem), que envolvem as combinações dos enunciados para um sentido específico.

Além disso, se deve observar as formas que os enunciados coexistem dentro de um determinado campo enunciativo, ou seja, como se dá a relação de presença (ibidem), na qual um enunciado apoia-se em outros de mesmo objeto, para tomá-los como verdade ou para criticá-los ou rejeitá-los; a relação de concomitância (ibidem, p. 64), na qual enunciados de objetos distintos ocorrem em conjunto para criarem um sentido de coerência; ou a relação com um domínio de memória (ibidem), que é quando os enunciados valem-se de enunciados semi-mortos, enunciados não discutidos, assumidos ou rejeitados, mas dos quais ainda existe memória da força de verdade.

Ainda a respeito dos conceitos e do sentido de coerência, Foucault (ibidem) fala sobre a importância dos procedimentos de intervenção (ibidem, p. 64-65) que são as alterações sofridas pelos enunciados tendo em vistas conservar o sentido de coerência, tais como a reescrita, a transcrição, a tradução, a aproximação, delimitação, transferência, sistematização.

O último ponto descrito por Foucault (ibidem) sobre sua versão da análise do discurso é a estratégia discursiva, ou tema discursivo, que é a forma macro como os conceitos e objetos se agrupam.

O primeiro elemento de destaque na análise das estratégias são os pontos de difração, que regulam a utilização de elementos incompatíveis dentro de um mesmo discurso (ibidem, p. 73). Assim, há pontos de incompatibilidade (ibidem), que aponta para a dificuldade de objetos e conceitos serem utilizados no mesmo enunciado, ainda que possam ser usados no mesmo discurso; pontos de equivalência (ibidem), que indicam que os elementos incompatíveis são equivalentes e podem ser utilizados como alternância – não sendo necessário usá-los como exclusão; e de pontos de ligação de uma sistematização, que acontecem quando elementos incompatíveis possuem elementos derivativos que podem ser usados em conjunto sem perder de vista a coerência.

O segundo ponto a compreender é a estrutura de tomada de decisão sobre que enunciados devem entrar e sair, que lacunas e não ditos devem estar num discurso – o que o autor chama de economia da constelação discursiva (ibidem, p. 74). Neste sentido, todo discurso organiza tanto um já-dito (ibidem, p. 28), quando “compra” enunciados anteriores a ele, e um jamais-dito (ibidem, p. 28), quando opera pela renúncia à compra ou pela ocultação do que concatena.

A última consideração que Foucault faz a respeito das estratégias discursivas é sobre a relação entre o discurso e as práticas não discursivas. Essa relação é definida pela função que o discurso exerce e pelos regimes e processos de apropriação do discurso (ibidem, p. 75). Assim, a expectativa de uso e de apropriação não discursiva do discurso também influencia a formação dos discursos.

De acordo com Fischer (2001), os caminhos apresentados por Foucault podem resumir-se em uma disposição à análise do discurso através da análise dos enunciados, que são, em suma, formados por um referencial, ou seja, daquilo a que se refere o enunciado e o que o particulariza; do sujeito, no sentido do lugar social e da função que enuncia e organiza o conjunto de enunciados; da relação do enunciado com outros uma vez que todo enunciado, embora um acontecimento único, atualiza outros; e da materialidade específica, posto que cada materialidade influencia e é influenciada por aquilo que enuncia, de modo que

certas materialidades permitem certos enunciados e repelem outros (ibidem; FOUCAULT, 2008a).

Outra preocupação importante em relação à análise do discurso é a de superar seu sentido superficial de organização e de superação de opostos e buscar sua dimensão simbólica através da observação dos abrigos, dos deslocamentos e dos silêncios (FOUCAULT, 2008a). Nesse sentido, entende-se abrigo como enunciado ou conjunto de enunciados que buscam superar as fissuras entre o sujeito e o tempo, de modo a criar um senso de continuidade, como se tudo o que traz o tempo tivesse sido planejado pelo sujeito (idem; MEDEIROS, MELLO NETO, CATANI, 2015). Já deslocamentos são os movimentos e transferências de um enunciado para outra positividade, outra disciplina ou de um saber para um discurso, de maneira que ele mantenha seu referente, mas perca a relação com os enunciados de seu lugar primeiro, podendo assim ser modificado (FOUCAULT, 2008a). Finalmente, os não-ditos são os enunciados que poderiam constar naquela formação discursiva específica em virtude de sua forte relação com os enunciados ali presentes, mas que são silenciados, pois, de outra forma retirariam força ao discurso (ibidem).

Assim, a análise do discurso constitui-se não só como um ferramental metodológico qualitativo para analisar os dados da Avaliação Capes, mas, sobretudo, uma forma de pensar como se estruturam as estratégias e como as táticas aparecem na dispersão pouco regular de enunciados retóricos através dos diferentes textos. Chega-se, então, a um ponto em que, através da conjugação da análise do discurso com estatística descritiva compõem-se a metodologia mista utilizada nesta tese.

Contudo, como se viu, o método misto aqui proposto também é teórico, com Certeau como ponto central. Por isso, toda a análise transcorre tendo suas categorias, estratégias e táticas como guia. Essas estratégias e táticas ocorrem em espaços sociais e segundo não só regras evidenciadas em discursos, mas conforme regras desconhecidas mas acumuladas historicamente, sendo necessário, trazer para o método uma forma de pensar o espaço social e a formação dessas regras. E aí que entra Bourdieu, que, além de propor o modelo geral de espacialização social utilizado nesta análise, também contribui com a compreensão dos espaços sociais específicos em que as estratégias e táticas da Avaliação Capes ocorrem: o campo científico e o campo administrativo. Finalmente, existem muitas formas históricas de campo administrativo, levando à necessidade de localizar historicamente o tipo de campo administrativo em que ocorre a Avaliação Capes. Por isso, traz para o método as contribuições de Neave e Janela sobre o Estado Avaliador e sua inserção no contexto

brasileiro, o qual tem como uma das principais características a formação de uma democracia delegativa, que traz modificações às características tradicionais de um Estado Avaliador.

Deste modo, o método de compreensão de regras e usos de regras se completa ao construir sua metodologia de análise, definir suas categorias teóricas centrais, e situar onde e como, social e historicamente elas ocorrem.

3. TRAJETÓRIA E USOS DA AVALIAÇÃO DA CAPES NO E PELO