• Nenhum resultado encontrado

ARTES DE FAZER E DE USAR A AVALIAÇÃO: TRAJETÓRIAS, TÁTICAS E

2 PROPOSIÇÃO DE UM MÉTODO MISTO DE ANÁLISE DE POLÍTICAS

2.2 ARTES DE FAZER E DE USAR A AVALIAÇÃO: TRAJETÓRIAS, TÁTICAS E

A obra de Certeau (2013) sobre o papel das artes do fazer na invenção do cotidiano é um trabalho vigoroso, resultado de pesquisas de diversas pessoas, sobre um tema que à época ainda não era tão presente em análises de pesquisa social (OLIVEIRA, SGARBI, 2007).

Na apresentação do livro, Giard (2013) resume bem as principais preocupações de Certeau (2013), sobre a necessidade de construir não só uma teoria do cotidiano e dos usos, mas do poder de criação dos sujeitos, ainda que anônimos, operando um deslocamento da

“atenção do consumo supostamente passivo dos produtos recebidos para a criação anônima, nascida na prática do desvio no uso desses produtos” (GIARD, 2013, p. 12).

Assim, a sua obra busca recuperar as marcas deixadas pra trás nos objetos – discursos,

habitus, itens, procedimentos... – pelas diferentes formas de uso que a eles foram atribuídas.

Para tanto, de acordo com Giard (2013), Certeau dividiu sua análise em três níveis: “as modalidades da ação, as formalidades das práticas, os tipos de operação especificados pelas maneiras de fazer” (p. 20).

Grosso modo, podemos dizer, então, que Certeau estava preocupado com as maneiras com as formas, as materialidades e os suportes pelos quais a ação criativa acontece, lançando “uma interrogação sobre as operações dos usuários, supostamente entregues à passividade e à disciplina” (CERTEAU, 2013, p. 37, grifo do autor).

Todavia, ao contrário do que possa parecer num primeiro momento, a teoria proposta por Certeau não é dos indivíduos, mas, sim, das relações sociais que constroem as formas de uso:

De um lado, a análise mostra antes que a relação (sempre social) determina seus termos, e não o inverso, e que cada individualidade é o lugar onde atua uma pluralidade incoerente (e muitas vezes contraditória) de suas determinações relacionais. De outro lado, e sobretudo, a questão tratada se refere a modos de operação ou esquemas de ação e não diretamente ao sujeito que é o seu autor ou veículo (ibidem, ibidem)

Para andar pelo caminho que sugere Certeau, é imprescindível entender a diferença entre o que ele chama de trajetórias, estratégias e táticas (2013, p. 44). Para ele, as trajetórias são como transcrições, projeções, relatos que por mais precisos que sejam, deixam escapar situações como a forma, os significados e os usos que existiram: “Tem-se então um traço no lugar dos atos, uma relíquia no lugar das performances: esta é apenas o seu resto, o sinal de seu apagamento” (ibidem, p. 93, grifo do autor).

Assim, Certeau sugere que pensemos nas modalidades de ação, nas maneiras de fazer e de utilizar as coisas, que pensemos em estratégias e táticas, e no jogo que criam “mediante a estratificação de funcionamentos diferentes e interferentes” (ibidem, p. 87).

Em poucas palavras, podemos dizer que estratégias são as maneiras de uso do forte, e táticas são as maneiras de uso do fraco, já que “a tática é determinada pela ausência de poder, assim como a estratégia é organizada pelo postulado de um poder” (ibidem, p. 95, grifo do autor).

Logo, as estratégias são o “cálculo das relações de força que se torna possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder é isolável de um ‘ambiente’” (ibidem, 45).

São ações sobre as relações de força que buscam a criação de um espaço seguro no qual suas regras são válidas. Para isso, é fundamental que a estratégia consiga criar um próprio, um lugar de querer e poder de onde a estratégia opera para proteger-se e buscar conquistas o que lhe é externo.

A ação de construção do próprio demanda “uma vitória sobre o tempo” (ibidem, p. 94), na medida em que se funda um lugar autônomo, no qual a estratégia pode perdurar; “um domínio dos lugares pela vista” (ibidem, ibidem), uma vez que a partir dele é possível dominar um espaço, alterar suas relações de força e expandir suas ações; e legitima-se através de um poder-saber, que organiza em discursos coerentes ideias que de outras forma estariam dispersas.

Podemos afirmar, então, que “As estratégias são, portanto, ações que, graças ao postulado de um lugar de poder (a propriedade de um próprio), elaboram lugares teóricos (sistemas e discursos totalizantes), capazes de articular um conjunto de lugares físicos onde as forças se distribuem” (ibidem, p. 96).

Já as táticas são “um cálculo que não pode contar com um próprio, nem portanto com uma fronteira que distingue o outro como totalidade visível. A tática só tem por lugar o do outro. [...] Ela não dispõe de base onde capitalizar os seus proveitos, preparar suas expansões e assegurar uma independência em face das circunstâncias” (ibidem, p. 45-46).

Deste modo, a tática é uma ação sobre o próprio do outro, que busca se valer das regras da estratégia para obter uma vantagem sua, ainda que não possa mantê-la: “Aproveita as ‘ocasiões’ e delas depende, sem base para estocar benefícios, aumentar a propriedade e prever saídas” (ibidem, p. 95). Por isso, a tática é um fazer sempre de resistência, pois, ainda que opere de maneira aquiescente ao que lhe diz a estratégia, o faz tendo em vista desejos próprios. Sua única vantagem é a mobilidade que possui em relação ao tempo, ao poder, à visão e ao saber: enquanto as estratégias precisam se fortalecer para vencerem o tempo, e o fazem obedecendo à visão e ao saber que elas mesmas instituíram e que lhes limita, as táticas não têm fidelidade, operam por pura astúcia.

Por esses motivos, enquanto a linguagem da estratégia é o discurso, a da tática é a retórica, a busca pelo convencimento, pela sedução, pela persuasão que permitem modificar, ainda que por alguns instantes, aquilo que o próprio quer, desestabilizando o seu sentido para obter uma vantagem e em seguida recuperá-lo (ibidem).

Adverte-se, contudo, que não existe sentido de exclusão entre retórica e discurso, uma vez que os discursos contêm aspectos retóricos. A retórica de que fala Certeau tem um sentido dos enunciados de persuasão e convencimento que não chegam a se condensar em uma

formação discursiva uma vez que não possuem a regularidade para tanto. São frases, proposições, atos de fala ou unidades de signos que, embora sejam enunciados e embora possam falar sobre diferentes objetos, possuem restrições quanto a sua modalidade enunciativa, já que sempre falam do lugar do outro. Além disso, não necessitam e nem podem organizar uma existência de coerência duradoura, sendo capazes de funcionar somente para aquele golpe particular, não possuindo a regularidade suficiente em sua dispersão para constituírem uma formação discursiva particular, como adverte o próprio Foucault (2008), quando fala sobre os domínios de memória e os enunciados semi-mortos, que são enunciados que guardam poder de verdade por já terem sido ditos um dia, mas cuja modalidade enunciativa enfraqueceu-se a ponto de não mais constituírem uma formação discursiva.

É certo que, por vezes, conceitos como o de retórica pareçam fugidios – e, na verdade, o são, como o próprio Certeau admite – mostrando-se de difícil compreensão ou uso. Contudo, como o próprio autor adverte, aquilo de que fala acontece em um espaço bem definido e que só pode ser apreendido por procedimentos, os quais definem como “esquemas de operações e manipulações técnicas” (ibidem, p. 103).

Então, é preciso, sem dúvidas, entender os próprios conceitos de Certeau como procedimentos particulares, que nos permitem organizar ideias e percorrer leituras. Ao deslocar o uso de sua compreensão passiva e ao deslocar o uso do sujeito que age, Certeau permite pensar as estratégias e táticas enquanto formas de usar os objetos do mundo social, sem que estejam, necessariamente, atreladas a um grupo social específico ou a condições tempo espaciais particulares.

Além disso, conceitos como o de trajetória nos permitem entender que, em alguns momentos, com as fontes disponíveis, não é possível entender as estratégias e táticas – as formas de agir – mas tão somente relatar sobre o que aconteceu – e não como se usou o que aconteceu.

Finalmente, existe em Certeau uma utilização dos procedimentos de Foucault e Bourdieu. Diante da consciência de que seus objetos acontecem dentro de um comércio intelectual e social, que cria as condições de sua existência, Certeau (2013) entende que é preciso uma forma de apreender as condições nas quais as artes de fazer ocorrem.

Neste sentido, o autor começa analisando a teoria proposta por Foucault, reconhecendo o poder que os procedimentos foucaultianos têm para descrever e explicar o funcionamento do próprio, especialmente no sentido do saber e da ordenação que cria a partir de seus lugares teóricos, em relação com o adensamento que os faz acontecer enquanto discurso. O que os procedimentos foucaultianos não conseguem, entretanto, é descrever e

explicar “o que é que acontece com outros procedimentos, igualmente infinitesimais, que não foram ‘privilegiados’ pela história, mas nem por isso deixam de exercer uma atividade inumerável entre as malhas das tecnologias instituídas” (ibidem, p.110). Assim, os procedimentos foucaultianos encontram seu limite no que se condensa a ponto de formar um

próprio, e dos sentidos do saber e da ordenação desse próprio.

Em relação à Bourdieu, Certeau (2013) explora o poder dos procedimentos em explicar as regras do jogo (habitus) e delimitar onde o jogo acontece (campo). De maneira semelhante ao que fala sobre Foucault, Certeau defende que os procedimentos de Bourdieu são eficazes para apreender o próprio, nos sentidos de sua economia: como e qual é o mercado, o que se compra, por que se compra, quanto paga.

Mas, afirma Certeau (ibidem), os procedimentos de Bourdieu limitam-se quando “sempre supõe o duplo vínculo dessas práticas a um lugar próprio (patrimônio) e um princípio coletivo de gestão (a família, o grupo). O que acontece, porém quando esse duplo postulado está ausente?” (ibidem, p. 116). Limitam-se ainda quando compreende a estratégia em sentido restrito, já que não existe “intenção estratégica” de escolher a melhor opção possível, “mas apenas um ‘mundo presumido’ como a repetição do passado” (ibidem).

Nesta abordagem, um dos sentidos de ruptura que se coloca tradicionalmente entre Bourdieu e Certeau é a relação que os usuários constroem com o espaço. Tomando por base a ausência de um próprio e de uma gestão, bem como a relação entre intenção estratégica e estratégica enquanto habitus, se pode pensar a forma como o espaço das cidades é usado a partir um ponto de vista tático, tendo em vista obter as melhores vantagens possíveis em seus deslocamentos, mas o fazem sem que criem um campo específico, sem que haja a condensação de um habitus, ou uma espécie de gestão (dos capitais, da doxa), e o fazem dentro de um próprio que não é deles, já que não decidem as rotas de ônibus, os fluxos das vias, etc. Ou, como resume Dosse (2013): “O espaço praticado para Certeau, se encarnava no caminhar de seus habitantes. Ele estabeleceu uma distinção entre a cidade, que considerava como uma língua, um campo de possíveis, e o ato de caminhar que a atualizava e advinha de

enunciações dos pedestres” (p. 90).

Em suma, Certeau reconhece a importância e o poder dos procedimentos propostos por Foucault e por Bourdieu, mas pretende expandi-los, sobretudo para lidar com as táticas e a retórica. Além disso, a teoria proposta por Certeau é bastante fugidia, não dando conta de aspectos como a economia das artes do fazer, a sua relação com os subespaços do espaço social ou a maneira como as estratégias conseguem se condensar em um discurso. Por isso, tomando por base as considerações de Certeau, constrói-se essa tese utilizando como base os

seus procedimentos, bem como os de Bourdieu, com foco, sobretudo, em entender a economia e a espacialização social das trajetórias, estratégias e práticas; e os de Foucault, tendo em vista perceber como os enunciados se estruturam, como se dá sua relação com a produção social e a sua materialidade, enfim, como os discursos estruturam seu(s) sentido(s).